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Crítica
19 de Outubro de 2005   Filosofia

A historicidade da filosofia

Desidério Murcho

Refere-se por vezes a historicidade da filosofia, sem que os estudantes compreendam cabalmente do que se trata. Outras vezes, esquece-se este aspecto da filosofia. Estas linhas pretendem esclarecer este aspecto da filosofia.

Em primeiro lugar, a historicidade da filosofia não é a ideia de que os problemas da filosofia surgem nas obras dos filósofos do passado. Os problemas da filosofia surgem naturalmente quando qualquer pessoa se põe a pensar em alguns aspectos da realidade:

Além de surgirem naturalmente, os problemas da filosofia não existem apenas nas obras dos filósofos do passado — pelo simples motivo de que também há filosofia no presente. Aliás, há mais filósofos hoje em dia do que em todas as épocas históricas juntas. Tal como há mais artistas e cientistas do que houve no passado. Portanto, a chamada “historicidade da filosofia” não quer dizer nem que a filosofia não é uma disciplina viva, que surge sempre que nos pomos a pensar, nem quer dizer que a filosofia é uma coisa só do passado.

Em segundo lugar, e mais importante, a historicidade da filosofia não é também a ideia de que o trabalho que nos resta fazer hoje é meramente compreender, comentar e analisar as obras dos filósofos do passado. Esta seria uma visão muito redutora da filosofia, e não corresponde sequer ao que os mais importantes filósofos da actualidade fazem (pense-se em Kripke ou Derrida, por exemplo). Este aspecto é muitíssimo importante porque determina o tipo de ensino que a filosofia exige. Dado que a filosofia não é o mesmo do que a história da filosofia, nem o mesmo do que a história das ideias, ensinar filosofia não pode ser como ensinar história da pintura; tem de ser, ao invés, algo mais parecido ao ensino da pintura em si. E, como é óbvio, no ensino da pintura em si estudam-se também os grandes mestres do passado. Mas o objectivo final é saber pintar quadros, e não apenas saber apreciar a obra dos grandes pintores do passado. O mesmo acontece no ensino da filosofia: o objectivo não é apenas compreender os grandes filósofos do passado e do presente, se bem que isso também seja feito; o objectivo é saber fazer filosofia.

O que dificulta a compreensão da relação peculiar que a filosofia mantém com a sua história é o facto de o progresso em filosofia ser muito diferente do tipo de progresso que se observa na ciência. Na ciência há, pelo menos aparentemente (apesar de filósofos como Kuhn negarem em parte esta ideia), uma acumulação de resultados. Isto tem implicações importantes no ensino, pois significa que não se perde tempo a ensinar a física de Ptolomeu, por exemplo, para depois a comparar com a física de Newton, comparando depois esta com a física de Einstein. Ao invés, ensinam-se os resultados mais recentes e operatórios da física, sem mencionar teorias que entretanto foram ultrapassadas por teorias melhores. O mesmo não se pode fazer em filosofia: não se pode ensinar unicamente a mais recente teoria dos universais, por exemplo, ou a mais recente teoria ética, como se fossem teorias consensualmente aceites pelos especialistas. É que, ao contrário do que acontece em ciência, não há em filosofia um corpo vasto de conhecimentos consensuais e cristalizados. A filosofia é, essencialmente, discussão de ideias e especulação. Isto tem implicações importantes para o ensino da filosofia, pois não se pode dar ao estudante a ideia falsa de que as últimas teorias hermenêuticas, fenomenológicas, existencialistas, pós-modernistas, marxistas ou fascistas são a última palavra, no mesmo sentido em que a física de Einstein é, até hoje, a última palavra nessa área.

No caso da física, por exemplo, a simples compreensão e domínio do que se sabe hoje exige anos de estudo. Só a nível do doutoramento, e só em algumas universidades, pode um estudante de física dominar já suficientemente o que se sabe para se poder dedicar à investigação — isto é, ao estudo do que não se sabe, procurando dar a sua contribuição. Mas isto não acontece na filosofia. Em filosofia, é necessário relativamente pouco tempo para se chegar às fronteiras do conhecimento. Se uma pessoa não pode começar a filosofar cabalmente desde logo é só porque apesar de não haver praticamente qualquer corpo estabelecido de teorias, em filosofia, há no entanto dois factores importantes que o impedem. São estes factores que fazem a diferença entre um domínio profissional da filosofia e uma atitude meramente amadora ou de senso comum perante a filosofia.

O primeiro factor é o saber-fazer envolvido na filosofia. Para se fazer filosofia é preciso dominar os instrumentos do ofício: saber discutir ideias, saber traçar distinções importantes, saber distinguir versões subtilmente diferentes de teorias análogas e, claro, compreender os problemas da filosofia. Sem estas competências fundamentais não é possível fazer filosofia competentemente; não é sequer possível fazer história da filosofia competentemente.

O segundo factor é o que nos importa aqui, pois está relacionado com a história da filosofia. Esse factor foi apresentado de forma muito directa no manual A Arte de Pensar: 10.º ano (Didáctica, 2003):

Quando discutimos uma ideia filosófica verificamos muitas vezes que essa ideia tem uma história; houve outras pessoas que a defenderam ou atacaram. É por isso importante saber o que os grandes filósofos pensaram. Nada há de extraordinário nisto. Se estás preocupado em saber se o relativismo é ou não aceitável, é uma boa ideia tentar saber o que as outras pessoas pensaram sobre isso. Afinal, pode ser que o que elas pensaram te ajude a pensar melhor — quer concordes, quer discordes delas. (Vol. 1, pág. 18)

O que está em causa é de facto banal e muito simples, mas é muitas vezes mal compreendido, com elucubrações obscurantistas sobre a “historicidade do pensar”. Outras vezes, talvez para fugir aos obscurantismos, é pura e simplesmente ignorado, como acontece com alguns manuais escolares (é o caso do manual 705 Azul, de Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho, Texto Editora, 2003). O problema de ignorar a história da filosofia não é uma questão de apresentar menos erudição. O problema é que se ignorarmos a história da filosofia estaremos a trilhar caminhos que já foram trilhados — como se estivéssemos a redescobrir a pólvora. Isso é pura e simplesmente perder tempo. Se certo tipo de teorias já foram exploradas e já conhecemos os seus problemas, se certas distinções fundamentais já foram exploradas, então estaremos a perder tempo se as ignorarmos — pois voltaremos a percorrer os mesmos passos. É um pouco como um músico que, desconhecendo a grande tradição atonal, reinventa ignorantemente esta forma musical.

Precisamente como no caso da música, não se trata de dizer que uma pessoa não pode hoje defender, por exemplo, uma certa versão da ética das virtudes de Aristóteles. Sem dúvida que pode — e há quem o faça, como a filósofa Philippa Foot. Só que irá defender uma versão sofisticada, que não sofre dos problemas que ao longo dos séculos foram apontados não apenas à teoria de Aristóteles, mas também às outras grandes teorias éticas alternativas, como o deontologismo e o consequencialismo. E é esta diferença de sofisticação que faz a diferença entre uma postura amadora e simplista em filosofia e uma postura profissional e sofisticada. Quem está na filosofia a sério tem de estar informado sobre o que os outros filósofos — do passado e do presente — defendem, tem de conhecer os seus argumentos e as suas teorias, e tem de estar a par da discussão filosófica.

Em suma, a necessidade de estudar os grandes filósofos do passado e do presente resulta da necessidade de não se perder tempo a defender o que já foi defendido e discutido, por um lado, e da necessidade de tentar ir um pouco mais longe na compreensão das coisas do que foram os nossos antepassados e os nossos colegas contemporâneos.

No ensino, esta ancoragem histórica é particularmente importante, sob pena de se pretender estudar filosofia sem filósofos. Em alguns manuais escolares (como no referido 705 Azul), a filosofia é apresentada no primeiro capítulo ao longo de muitas páginas sem se apresentar um único filósofo, clássico ou contemporâneo. Isto dá ao estudante uma ideia falsa da filosofia, pois não o ensina a ter uma atitude adequada perante a história da filosofia. O oposto disto é transformar a filosofia em mera história da filosofia, substituindo o trabalho verdadeiramente filosófico e criativo da filosofia pela mera compreensão do que dizem os grandes filósofos do passado e do presente. O correcto ensino da filosofia está entre estes dois extremos — entre o extremo da a-historicidade de alguns manuais escolares e o extremo redutor em que a filosofia se transforma em mera história da filosofia. O que é difícil é dar ao estudante a ideia correcta de que tem de compreender correctamente os filósofos do passado e do presente que serão leccionados, mas que isso é um meio para pensar por si e para tomar uma posição fundamentada. Se não nos esforçarmos por fazer isso, o ensino da filosofia transforma-se em rapsódias de temas modernaços, sem qualquer referência a filósofos centrais do passado e do presente, ou em meras historietas das ideias filosóficas, sem que ao estudante seja dada a experiência do filosofar. E é precisamente esta experiência que urge reivindicar. E isso exige um equilíbrio entre os dois opostos redutores: o que reduz a filosofia à sua história e o que esquece a história da filosofia.

Desidério Murcho

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ISSN 1749-8457