Podemos distinguir três grupos de verdades necessárias: as necessidades lógicas, físicas e metafísicas. No primeiro grupo estão verdades como “Se Sócrates é grego, é grego”; no segundo, verdades como “Nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz”; e no terceiro, verdades como “A água é H2O”. Iremos incluir na necessidade física outras necessidades naturais, como a necessidade biológica e a química. E iremos falar em geral de necessidade lógica, incluindo nela a necessidade analítica e a necessidade lógica estrita. Veremos depois a diferença entre estes dois tipos de necessidades lógicas.
Precisamente porque a necessidade metafísica não é definível em termos substanciais, é muito importante encontrar definições adequadas dos outros tipos de necessidades. Pois é legítimo esperar que o contraste com as necessidades lógicas e físicas ajude a compreender a misteriosa necessidade metafísica. Irei mostrar que há duas formas de definir as necessidades lógicas e físicas que são inaceitáveis por vários motivos e que constituem obstáculos poderosos a uma compreensão correcta da necessidade metafísica.
Precisamos de compreender adequadamente as relações entre os diferentes tipos de necessidades, o que podemos fazer com a ajuda do Diagrama 1:
Este diagrama sistematiza as relações entre os diferentes tipos de necessidade que caracterizam as teorias essencialistas mais comuns. Assim, este tipo de teoria essencialista defende que há necessidades físicas que não são necessidades metafísicas. Por exemplo, apesar de ser fisicamente necessário que nenhum objecto viaje mais depressa do que a luz, um essencialista poderá defender que este facto não é metafisicamente necessário; em mundos possíveis com leis da física diferentes talvez os objectos viajem mais depressa do que a luz. Por outro lado, há necessidades metafísicas que não são necessidades lógicas, como a água ser H2O.
O Diagrama 2 sistematiza as mesmas relações, agora no que respeita à possibilidade:
Assim, apesar de ser logicamente possível que a água seja CO2, tal não é metafisicamente possível. E apesar de ser metafisicamente possível que um objecto viaje mais depressa do que a luz, tal não é fisicamente possível.
Uma forma mais radical de essencialismo defende que tudo o que é fisicamente necessário é metafisicamente necessário — isto é, defende que não há mundos possíveis com leis da física diferentes das leis da física do mundo actual, e portanto que em nenhum mundo possível há objectos que viajem mais depressa do que a luz. Isto é equivalente a modificar o Diagrama 1, alargando o domínio da necessidade metafísica de modo a coincidir com o domínio da necessidade física.
Uma forma de anti-essencialismo defende que tudo o que é logicamente possível é metafisicamente possível, e portanto que a água poderia ser CO2. Isto é equivalente a modificar o Diagrama 2, alargando o domínio da possibilidade metafísica de modo a coincidir com o domínio da possibilidade lógica.
Podemos tentar definir a necessidade física e lógica em termos de mundos possíveis, do seguinte modo:
Este tipo de definições é usado por Anna Sherratt (Sherratt, 2001). Contra este tipo de definições levanta-se o argumento das necessidades lógicas indesejadas. Há duas versões deste argumento, consoante se aplica à necessidade física ou à necessidade analítica.
Um filósofo pode defender que tanto as leis da física como as leis da lógica obtêm em todos os mundos possíveis, isto é, que tanto é verdade em todos os mundos possíveis que nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz como é verdade em todos os mundos possíveis que 2 + 2 = 4. Dadas as definições apresentadas, este filósofo terá de aceitar que todas as necessidades físicas são necessidades lógicas, o que é inaceitável. Defender que as leis da física obtêm em todos os mundos possíveis não é defender que as leis da física são leis da lógica. Claro que se pode defender as definições apresentadas sustentando que é a teoria filosófica que afirma que as leis da física são verdadeiras em todos os mundos possíveis que é deficiente. Mas esta defesa não nos leva muito longe, pois as definições dos diferentes tipos de necessidade devem ser tanto quanto possível compatíveis com os diferentes tipos de teorias modais substanciais — e é possível apresentar definições nas quais faça sentido dizer que tanto as leis da física como da lógica são verdadeiras em todos os mundos possíveis, sem que isso implique que as necessidades físicas são necessidades lógicas.
Estritamente falando, uma verdade como “Nenhum solteiro é casado” não é uma verdade lógica. Mas podemos transformá-la numa verdade lógica substituindo sinónimos por sinónimos, o que nos permitirá obter a verdade lógica “Nenhum não casado é casado”. Podemos assim distinguir a necessidade lógica estrita, puramente formal, da necessidade analítica, mais abrangente. Podemos por isso dizer que uma frase como “Nenhum solteiro é casado” é uma necessidade analítica, mas não uma necessidade lógica estrita. Ora, qualquer filósofo quererá dizer que apesar de a existência de solteiros casados, estritamente falando, não ser uma impossibilidade lógica, tal não é todavia realmente possível — não há qualquer mundo possível com solteiros casados. Isto significa que se definirmos “logicamente necessário” e “analiticamente necessário” em termos de mundos possíveis, todas as necessidades lógicas serão por definição necessidades analíticas e vice-versa, porque todas serão verdadeiras nos mesmos mundos possíveis. Ora, é falso que todas as necessidades analíticas sejam necessidades lógicas estritas. Assim, as definições em termos de mundos possíveis impedem-nos de distinguir as necessidades analíticas das lógicas. A resposta a este problema poderá ser afirmar que há realmente mundos possíveis com solteiros casados, mas que esses mundos são meramente possíveis num sentido logicamente estrito. Mas a ideia de que há mundos possíveis com solteiros casados não é aceitável por mais liberais que sejamos no que respeita ao casamento.
Podemos tentar definir a necessidade física e lógica em termos de derivabilidade, do seguinte modo:
Este tipo de definições é usado por Bob Hale (Hale, 1996), Jonathan Lowe (Lowe, 1998) e Nathan Salmon (Salmon, 1989). Contra este tipo de definições levanta-se uma vez mais uma versão do argumento das necessidades lógicas indesejadas.
Uma dada proposição p é derivável de um certo conjunto de premissas Γ se, e só se, não há qualquer maneira de as premissas Γ serem todas verdadeiras e a conclusão falsa. Ora, se p é necessariamente verdadeira, não há qualquer maneira de ser falsa. O que significa que p é derivável de qualquer conjunto Γ de premissas. Logo, p será também derivável das leis da lógica. O que significa que qualquer proposição que seja verdadeira em todos os mundos possíveis será uma necessidade lógica — o que é falso. Por exemplo, um filósofo que defenda que as leis da física são verdadeiras em todos os mundos possíveis, não é um filósofo que defende que as leis da física são logicamente necessárias. Em conclusão, as definições em termos de derivabilidade são deficientes; na melhor das hipóteses, poderão funcionar apenas no caso de aceitarmos doutrinas modais substanciais, como a existência de mundos possíveis com leis da física diferentes. Mas uma definição que não é neutra quanto a questões substanciais é uma má definição — é como definir “aborto” como “assassínio de inocentes”: uma mera falácia.
Além do problema das necessidades lógicas indesejadas, ambas as definições propostas sofrem de um problema mais simples: não há leis da metafísica, nem da analiticidade. Assim, quaisquer definições em termos de domínios de leis serão incompletas porque não poderão incluir a necessidade metafísica — que é precisamente o que queremos esclarecer.
A minha forma alternativa de definir os diferentes tipos de necessidades e possibilidades é a seguinte:
Estas definições têm duas vantagens. A primeira é a sua neutralidade. Estas definições são compatíveis com as principais teorias modais substanciais. Tanto podemos defender que há mundos possíveis com leis da física diferentes das nossas, como que não há mundos possíveis com leis da física diferentes das nossas. Tanto podemos defender que as verdades lógicas são verdadeiras em todos os mundos possíveis, como podemos defender que as verdades lógicas não são verdadeiras em alguns mundos possíveis.
A segunda vantagem é o facto de permitirem compreender melhor a natureza da necessidade metafísica. A definição apresentada não reduz a necessidade metafísica a algo não modal. A necessidade metafísica é apenas a verdade em todos os mundos possíveis, e a verdade em todos os mundos possíveis é em si um conceito modal. Mas as definições de necessidade lógica e física são reduções bem-sucedidas. A necessidade lógica é reduzida à verdade lógica; e a necessidade física é reduzida à derivabilidade a partir das leis da física. Esta assimetria é saudável, pois reflecte a natureza dos diferentes conceitos de necessidade em causa. Falar de necessidade lógica é apenas uma maneira de falar; falar de necessidade física é apenas uma maneira de falar; mas falar de necessidade metafísica não é apenas uma maneira de falar que possa substituir-se por outra maneira de falar que não seja modal. Um dos problemas das definições que criticámos é precisamente o facto de darem a ideia errada de que a necessidade metafísica está a par dos outros tipos de necessidades — é algo que podemos reduzir a conceitos não modais.
O resultado apresentado por Sherratt constitui uma redução ao absurdo não intencionada do tipo de definições que critico, baseadas em domínios de leis. No artigo “Are the Laws of Logic Necessary or Contingent?” Anna Sherratt mostra que, definindo os diferentes tipos de necessidades em termos de domínios de leis, a questão de saber se as leis da lógica são necessárias ou contingentes não recebe uma resposta interessante em qualquer caso: a resposta é sempre trivial. Mas sem dúvida que não é trivial afirmar que as verdades da lógica obtêm em todos os mundos possíveis, ou que não obtêm em alguns mundos possíveis. Contudo, não podemos compreender estas afirmações se não compreendermos que o que estamos a perguntar é se as verdades lógicas são ou não metafisicamente necessárias, entendendo a necessidade metafísica como um tipo diferente de necessidade.
O resultado de Sherratt não é difícil de duplicar no caso das leis da física. Serão as leis da física necessárias ou contingentes? Se não dispomos de um conceito claro de necessidade metafísica, nenhuma resposta é informativa. Pois é trivial que as leis da física são fisicamente necessárias; e é trivial que não são logicamente necessárias. O que dá sentido à pergunta é a necessidade metafísica: nós queremos saber se as leis da física obtêm em todos os mundos possíveis, ou se há mundos possíveis com leis da física diferentes. E esta é uma questão que faz tudo o sentido e cuja resposta, negativa ou positiva, não é trivial.
Nathan Salmon defende no artigo “The Logic of What Might Have Been” algumas ideias que são também o resultado de definir as diferentes necessidades em termos de domínios de leis. Para Salmon há mundos possíveis com solteiros casados — mas esses mundos não são analiticamente possíveis, são apenas possíveis num sentido lógico estrito. E há mundos em que a água não é H2O — mas esses mundos não são metafisicamente possíveis, são apenas logicamente possíveis. Estas ideias estranhas resultam de uma má definição dos diferentes tipos de necessidades. Temos de pensar que há mundos possíveis com solteiros casados se acharmos que a necessidade analítica e a necessidade lógica se definem em termos de derivabilidade a partir de domínios de leis — pois a forma de fugir ao problema da derivabilidade vácua é afirmar que há uma maneira de os solteiros serem casados (e assim as necessidades lógicas estritas já não são necessidades analíticas). Mas o resultado é inaceitável. As definições que proponho não têm este tipo de resultado inaceitável.
As definições em termos de domínios de leis dão a falsa ideia de que todos os tipos de necessidade estão a par no sentido em que todas as necessidades são redutíveis a domínios não modais de leis. Ora, isto impede uma correcta compreensão da natureza da necessidade metafísica, que além de não ser redutível a domínios não modais de leis, tem uma característica muito diferente dos outros domínios de necessidades e possibilidades. A modalidade metafísica é, por definição, absoluta, ao passo que as outras modalidades não o são. (O que eu entendo por “modalidade absoluta” e “relativa” é diferente do que Bob Hale entende e poderemos falar das diferenças mais tarde.) O importante é compreender o seguinte: se dizemos que algo é metafisicamente necessário, queremos dizer que é verdadeiro em todos os mundos possíveis — trata-se de um tipo de necessidade irrestrita. E se dizemos que algo é metafisicamente possível, queremos dizer que é verdadeiro em alguns mundos possíveis. O mesmo não acontece com outros tipos de necessidade e possibilidade. Por exemplo, apesar de ser logicamente possível que a água seja CO2, ou que haja solteiros casados, não se segue daí que há mundos possíveis em que a água é CO2 ou em que há solteiros casados — intuitivamente, porque tais estados de coisas não são realmente possíveis, apesar de a lógica não ter poder para provar que tais estados de coisas são impossíveis. Do mesmo modo, a lógica não tem poder para provar que é falso que a neve é verde, mas daí não se segue que a neve seja verde.
Eis as definições de modalidades absolutas e relativas:
Se pensarmos que a necessidade metafísica está a par das outras necessidades porque todas se definem do mesmo modo, não compreendemos a diferença fundamental que as separa. A possibilidade lógica, por exemplo, não é absoluta; e a necessidade física também não. Isto significa que do facto de algo ser logicamente possível não se segue que haja um mundo possível em que isso é o caso; e do facto de algo ser fisicamente necessário não se segue que isso é verdade em todos os mundos possíveis. Mas se algo é metafisicamente possível, há um mundo possível em que isso é o caso; e se é metafisicamente necessário, isso é o caso em todos os mundos possíveis. Contudo, se definirmos todas as necessidades e possibilidades em termos de domínios de leis, esta diferença fundamental perde-se. Nas definições que proponho, esta diferença fundamental está claramente presente, pois a necessidade metafísica é a única definida em termos da totalidade de mundos possíveis.
Em conclusão, definir todos os tipos de necessidades em termos de domínios de leis, usando mundos possíveis ou derivabilidade, é um caminho seguro para a confusão conceptual. Quando seguimos este caminho, a necessidade metafísica surge-nos como algo misterioso, pois escapa sempre a qualquer tentativa de definição em termos de domínios de leis. Contudo, se tivermos à nossa disposição definições adequadas dos diferentes tipos de necessidades podemos compreender melhor a necessidade metafísica, ainda que não possamos reduzi-la a algo mais simples. Mas nem tudo é susceptível de definições redutoras. A necessidade metafísica é implicitamente definida através do contraste com os outros tipos de necessidades susceptíveis de redução, e descrevendo algumas das suas propriedades mais importantes, das quais destaquei o seu carácter absoluto. As definições que proponho permitem fazer ambas as coisas e por isso defendo que são superiores às definições em termos de domínios de leis.(2)