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23 de Agosto de 2004   Ética

Ética e relativismo cultural

Harry Gensler
Tradução de Paulo Ruas
Relativismo Cultural (RC): “Bem” significa “socialmente aprovado”. Escolhe os teus princípios morais segundo aquilo que a tua sociedade aprova.

O relativismo cultural (RC) defende que o bem e o mal são relativos a cada cultura. O “bem” coincide com o que é “socialmente aprovado” numa dada cultura. Os princípios morais descrevem convenções sociais e devem ser baseados nas normas da nossa sociedade.

Começaremos por ouvir uma figura ficcional, a que chamarei Ana Relativista, e que nos explicará a sua crença no relativismo cultural. Ao ler o que se segue, ou explicações semelhantes, proponho-lhe que reflicta até que ponto esta é uma perspectiva plausível e se se harmoniza com o seu ponto de vista. Depois de ouvirmos o que Ana tem para dizer, consideraremos várias objecções ao RC.

1. Ana Relativista

O meu nome é Ana Relativista. Aderi ao relativismo cultural ao compreender a profunda base cultural que suporta a moralidade.

Fui educada para acreditar que a moral se refere a factos objectivos. Tal como a neve é branca, também o infanticídio é um mal. Mas as atitudes variam em função do espaço e do tempo. As normas que aprendi são as normas da minha própria sociedade; outras sociedades possuem diferentes normas. A moral é uma construção social. Tal como as sociedades criam diversos estilos culinários e de vestuário, também criam códigos morais distintos. Aprendi-o ao estudar antropologia e vivi-o no México quando estive lá a estudar.

Considere a minha crença de que o infanticídio é um mal. Ensinaram-me isto como se se tratasse de um padrão objectivo. Mas não é; é apenas aquilo que defende a sociedade a que pertenço. Quando afirmo “O infanticídio é um mal” quero dizer que a minha sociedade desaprova essa prática e nada mais. Para os antigos romanos, por exemplo, o infanticídio era um bem. Não tem sentido perguntar qual das perspectivas é “correcta”. Cada um dos pontos de vista é relativo à sua cultura, e o nosso é relativo à nossa. Não existem verdades objectivas acerca do bem ou do mal. Quando dizemos o contrário, limitamo-nos a impor a nossas atitudes culturalmente adquiridas como se se tratassem de “verdades objectivas”.

“Mal” é um termo relativo. Deixem-me explicar o que isto significa. Quero dizer que nada está absolutamente “à esquerda”, mas apenas “à esquerda deste ou daquele” objecto. Do mesmo modo, nada é um mal em absoluto, mas apenas um mal nesta ou naquela sociedade particular. O infanticídio pode ser um mal numa sociedade e um bem noutra.

Podemos expressar esta perspectiva claramente através de uma definição: “X é um bem” significa “a maioria (na sociedade em questão) aprova X”. Outros conceitos morais como “mal” ou “correcto”, podem ser definidos da mesma forma. Note-se ainda a referência a uma sociedade específica. A menos que o contrário seja especificado, a sociedade em questão é aquela a que pertence a pessoa que formula o juízo. Quando afirmo “Hitler agiu erradamente” quero de facto dizer “de acordo com os padrões da minha sociedade”.

O mito da objectividade afirma que as coisas podem ser um bem ou um mal de uma forma absoluta — e não relativamente a esta ou àquela cultura. Mas como poderemos saber o que é o bem ou o mal em termos absolutos? Como poderíamos argumentar a favor desta ideia sem pressupor os padrões da nossa própria sociedade? As pessoas que falam do bem e do mal de forma absoluta limitam-se a absolutizar as normas que vigoram na sua própria sociedade. Consideram as normas que lhes foram ensinadas como factos objectivos. Essas pessoas necessitam de estudar antropologia, ou viver algum tempo numa cultura diferente.

Quando adoptei o relativismo cultural tornei-me mais receptiva a aceitar outras culturas. Como muitos outros estudantes, eu partilhava a típica atitude “nós estamos certos e eles errados”. Lutei arduamente contra isto. Apercebi-me de que o outro lado não está “errado” mas que é apenas “diferente”. Temos, por isso, que considerar os outros a partir do seu próprio ponto de vista; ao criticá-los, limitamo-nos a impor-lhes padrões que a nossa própria sociedade construiu. Nós, os relativistas culturais, somos mais tolerantes.

Através do relativismo cultural tornei-me também mais receptiva às normas da minha própria sociedade. O RC dá-nos uma base para uma moral comum no interior da cada cultura — uma base democrática que abrange as ideias de todos e assegura que as normas tenham um amplo suporte. Assim, posso sentir-me solidária com pessoas que partilham comigo uma mesma comunidade, ainda que outros grupos possuam diferentes valores.

Antes de avançar para a secção 1.2, reflicta sobre as suas reacções iniciais ao relativismo cultural. O que lhe agrada ou desagrada neste ponto de vista? Que objecções tem a colocar?

2. Objecções ao RC

Ana deu-nos uma formulação clara de um ponto de vista acerca da moral que muitas pessoas consideram atractiva. Reflectiu bastante acerca da moral e isto permite-nos aprender com ela. Contudo, estou convencido de que a sua perspectiva básica neste domínio está errada. Suponho que Ana acabará por concordar à medida que as suas ideias ficarem mais claras.

Deixem-me indicar o principal problema. RC força-nos a conformar-nos com as normas sociais — ou contradizemo-nos. Se “bem” e “socialmente aprovado” significam a mesma coisa, seja o que for ao qual o primeiro termo se aplique também o segundo lhe é aplicável.

Assim, o seguinte raciocínio seria válido:

Isto e aquilo são socialmente aprovados. Logo, isto e aquilo são bens.

Se o relativismo cultural fosse verdadeiro, não poderíamos consistentemente discordar dos valores da nossa sociedade. Mas este resultado é absurdo. Claro que é possível consistentemente discordar dos valores da nossa sociedade. Podemos afirmar consistentemente que algo é socialmente aprovado e negar que seja um “bem”. Isto não é possível se o RC for verdadeiro.

Ana poderia aceitar esta consequência implausível e dizer que é contraditório discordar moralmente da maioria. Mas esta seria uma consequência especialmente difícil de ser aceite. Ana teria de aceitar que os defensores dos direitos civis estariam a contradizer-se ao discordarem da perspectiva aceite pelos segregacionistas. E teria de aceitar a perspectiva da maioria em todas as questões morais — mesmo que perceba que a maioria é ignorante.

Suponha que Ana tinha aprendido que a maioria das pessoas da sua cultura aprovam a intolerância e também a ideia de ridicularizar pessoas de outras culturas. Teria ainda assim de concluir que a intolerância é um bem (apesar de esta atitude contrariar as suas próprias intuições).

A intolerância é socialmente aprovada. Logo, a intolerância é um bem.

Ana teria que aceitar a conclusão (aceitar que a intolerância é boa) ou rejeitar o relativismo cultural. Se quiser ser consistente é necessário modificar pelo menos uma destas perspectivas.

Eis uma dificuldade ainda mais grave. Imaginemos que Ana encontrava alguém chamada Rita Rebelde, oriunda de um país Nazi. Na terra natal de Rita, os judeus e os críticos do governo são colocados em campos de concentração. Sucede que a maioria das pessoas, mal informadas sobre o que se passa, aprovam esta política. Rita é uma dissidente. Defende que esta política, apesar do apoio da maioria das pessoas, está errada. Se Ana quisesse aplicar o RC a esta situação particular teria que dizer a Rita algo do género:

Rita, a palavra “bem” refere-se ao que é aprovado pela tua cultura. Como essa cultura aprova o racismo e a opressão, deves aceitar esta atitude como um bem. Não podes pensar diferentemente. A perspectiva minoritária está sempre errada — o “bem” é, por definição, aquilo que socialmente é aprovado.

A perspectiva do RC é intolerante para com as minorias (que automaticamente estão erradas) e forçaria Rita a aceitar o racismo e a opressão como sendo bons. Isto decorre da definição de “bem” como algo “socialmente aprovado”. Ao compreendê-lo, talvez abandone o RC.

O racismo é um bom teste para a ética. Uma perspectiva ética satisfatória deve fornecer-nos os meios para combater actos racistas. O RC falha neste aspecto, dado estar comprometido com a tese segundo a qual as acções racialmente motivadas são boas numa dada sociedade se essa sociedade as aprova. Se Rita seguisse o RC, teria que concordar com a atitude racista da maioria, ainda que as pessoas estivessem mal informadas ou fossem ignorantes. O relativismo cultural parece bastante insatisfatório neste ponto.

A educação moral é também um bom teste ético. Se aceitassemos o RC, como educaríamos os nossos filhos em questões de ordem moral? Ensinar-lhes-íamos que pensassem e agissem de acordo com as normas da sua sociedade, qualquer que esta fosse. Estaríamos a ensiná-los a serem conformistas. Ensinar-lhes-íamos, por exemplo, que os seguintes raciocínios são correctos:

“A minha sociedade aprova A; logo, A é bom”.

“O meu grupo aprova que nos embebedemos às sextas-feiras à noite e conduzamos no regresso a casa; logo, esta é uma boa atitude”.

“A minha sociedade é Nazi e aprova o racismo; logo, o racismo é um bem”.

Aceitar o RC priva-nos de exercer qualquer sentido crítico acerca das normas da nossa sociedade. Estas normas não podem estar erradas — ainda que resultem da estupidez e da ignorância.

Do mesmo modo, as normas de outras sociedades (mesmo as da terra natal de Rita) não podem estar erradas ou serem criticadas. O RC contraria o espírito crítico que é próprio da filosofia.

3. Diversidade moral

O relativismo cultural considera o mundo como algo que está dividido de uma forma nítida em sociedades distintas. Em cada uma delas não existe desacordo em questões morais ou apenas em pequena escala, dado que a perspectiva maioritária determina o que é considerado um bem ou um mal nessa sociedade. Mas o mundo não é assim. Pelo contrário, o mundo é uma mistura confusa de sociedades e grupos sobrepostos; e os indivíduos não seguem necessariamente o ponto de vista da maioria.

O relativismo cultural ignora o problema dos subgrupos. Todos nós fazemos parte de grupos sobrepostos. Cada um de nós, por exemplo, faz parte de uma nação, de um estado, de uma cidade, de um bairro. Além disso, cada um de nós pertence a várias comunidades, profissionais, religiosas, grupos de amigos, etc. É frequente estes grupos terem valores que estão em conflito. De acordo com o RC, quando afirmo “O racismo é um mal” pretendo dizer “A minha sociedade desaprova o racismo”. Mas a que sociedade nos referimos? Talvez a maioria das pessoas que pertencem à minha comunidade religiosa e ao meu país desaprove o racismo, enquanto a maioria dos que fazem parte do meu grupo profissional e familiar o aprovem. O relativismo cultural poderia dar-nos meios para nos conduzirmos correctamente no plano moral apenas se cada um de nós pertencesse a uma única sociedade. Mas o mundo é bastante mais complicado do que este quadro sugere. Até certo ponto, todos nós somos indivíduos multi-culturalizados.

O RC não tenta estabelecer normas comuns entre sociedades. À medida que a tecnologia invade o planeta, as disputas morais entre diferentes sociedades têm tendência para se tornarem mais importantes. O país A aprova a existência de direitos iguais para as mulheres (ou outras raças e religiões), mas o país B desaprova-o. Que deve fazer uma companhia multinacional que opera nos dois países? Ou as sociedades A e B têm conflitos de valores que conduzem à guerra. Dado que o relativismo cultural pouco nos ajuda acerca destes problemas, oferece-nos uma base muito pobre para responder às exigências da vida no século XXI.

Como responder à diversidade cultural entre sociedades? Ana rejeita a atitude dogmática do género “Nós estamos certos e eles errados”. Percebe a necessidade de compreender as sociedades e culturas diferentes da sua própria a partir do ponto de vista dessas culturas e sociedades. Estas são ideias positivas. Mas, em seguida, afirma também que nenhum dos lados pode estar errado. Isto limita a nossa capacidade para aprender. Se a nossa cultura não pode estar errada, não pode aprender com os seus próprios erros. Compreender as normas de outras culturas não permitirá ajudar-nos a corrigir os erros das nossas próprias sociedades.

Aqueles que acreditam em valores objectivos vêem estes assuntos de um modo diferente. Poderiam defender algo como isto:

Existem verdades para descobrir no domínio moral, mas nenhuma cultura possui o monopólio destas verdades. As diferentes culturas necessitam de aprender umas com as outras. Para que tomemos consciência dos erros e dos nossos valores, é necessário conhecer como procedem as outras culturas, e de que forma reagem ao que nós fazemos. Aprender com diferentes culturas pode ajudar-nos a corrigir os nossos valores e a aproximar-nos da verdade acerca do modo como devemos viver.

4. Valores objectivos

É necessário falar um pouco mais acerca da objectividade dos valores. Este é um tópico bastante vasto e importante.

A perspectiva objectivista (também designada realismo moral) defende que certas coisas são objectivamente um bem ou objectivamente um mal, independentemente do que possamos sentir ou pensar. Martin Luther King, por exemplo, defendia que o racismo está objectivamente errado. Que o racismo esteja errado era para ele um facto. Qualquer pessoa e cultura que aprovasse o racismo estariam erradas. Ao dizer isto, King não estava a absolutizar as normas da nossa sociedade; discordava, pelo contrário, das normas amplamente aceites. Fazia apelo a uma verdade mais elevada acerca do bem e do mal, uma verdade que não estava dependente do modo de pensar ou sentir das pessoas neste ou naquele momento. Fazia apelo a valores objectivos.

Ana rejeita a crença em valores objectivos e chama-lhe “o mito da objectividade”. Nesta perspectiva, as coisas são um bem ou um mal apenas relativamente a esta ou àquela cultura. Não são objectivamente boas ou más, como King pensava. Mas serão os valores objectivos realmente um “mito”? Para responder a isto convém examinar o raciocínio de Ana.

Ana tinha três argumentos contra a objectividade dos valores. Não existem verdades morais objectivas porque:

De facto, qualquer destes argumentos cede com facilidade se o examinarmos cuidadosamente.

  1. "Dado que a moral é um produto da cultura, não podem existir verdades morais objectivas”. O problema deste raciocínio é que um produto da cultura pode expressar uma verdade objectiva. Qualquer livro é um produto cultural; no entanto, muitos livros exprimem verdades objectivas. Da mesma forma, um código moral pode ser um produto cultural e expressar verdades objectivas acerca da maneira como as pessoas devem viver.

  2. “Visto as diferentes culturas discordarem amplamente sobre a moral, não podem existir verdades morais objectivas”. O simples facto de existir desacordo não mostra, no entanto, que não existe verdade neste domínio e que nenhum dos lados está certo ou errado. O extenso desacordo entre diferentes culturas acerca de antropologia, religião, e até em física, não impede a existência de verdades objectivas nestes domínios. Logo, o desacordo em questões morais não mostra que não exista verdade nestes assuntos.

    Podemos igualmente questionar-nos se as diferentes culturas divergem assim tão profundamente sobre a moral. Na maior parte das culturas existem normas muito semelhantes quanto a matar, roubar e mentir. E muitas das diferenças podem ser explicadas em resultado da aplicação dos mesmos valores básicos a diferentes situações. A Regra de Ouro “Trata os outros como queres ser tratado” é quase universalmente aceite em todo o mundo. E as diferentes culturas que constituem as Nações Unidas concordaram em larga medida a respeito dos direitos humanos mais elementares.

  3. “Como não existe uma maneira clara de resolver diferenças morais, não é possível que existam verdades morais objectivas”. Mas podem existir maneiras claras de resolver pelo menos um grande número de diferenças morais. Precisamos de uma forma de raciocinar em ética que faça apelo às pessoas inteligentes e com suficiente abertura de espírito de todas as culturas — isto faria pela ética o que se obteve em ciência com o método experimental.

    Ainda que não existisse uma maneira sólida de conhecer verdades morais, daí não se segue que tais verdades não existam. Existem verdades que não conhecemos inequivocamente. Terá chovido neste lugar 500 anos atrás? Há seguramente uma verdade acerca disto que nunca conheceremos. Apenas uma pequena percentagem de verdades são conhecidas. Logo, podem existir verdades morais objectivas mesmo que não possamos sabê-lo.

O ataque de Ana aos valores morais objectivos falhou. Mas isto não encerra o tema porque há mais argumentos. O debate sobre a objectividade dos valores é importante. Antes de terminar gostaria de clarificar alguns aspectos.

O ponto de vista objectivista afirma que algumas coisas são objectivamente um bem ou um mal, independentemente do que possamos pensar ou sentir; contudo, esta perspectiva está preparada para aceitar algum relativismo noutras áreas. Muitas regras sociais são claramente determinadas por padrões locais:

É necessário respeitar este género de regras locais; ao proceder de outra maneira podemos ferir as pessoas, quer porque chocamos contra os seus carros quer porque ferimos os seus sentimentos. Na concepção objectivista, a exigência de não magoar as outras pessoas é uma regra de um género diferente — uma regra moral — não determinada por costumes locais. Considera-se que as regras morais possuem mais autoridade que as leis governamentais ou as regras de etiqueta; são regras que qualquer sociedade deve respeitar se quiser sobreviver e prosperar. Se visitamos um lugar cujos padrões permitem magoar as pessoas por razões triviais, então esses padrões estão errados. O relativismo cultural disputa esta afirmação. A ideia é que os padrões locais são determinantes ainda que se trate de princípios morais básicos; assim, ferir outras pessoas por motivos triviais é um bem se esta atitude for socialmente aprovada.

Respeitar as diferenças culturais não nos transforma em relativistas culturais. Este é um falso estereótipo. O que caracteriza o relativismo cultural é a afirmação de que tudo o que é socialmente aprovado é um bem.

5. Ciências sociais

Há um estereótipo bastante divulgado que afirma que todos os especialistas em ciências sociais são relativistas culturais. Na verdade, os especialistas em ciências sociais defendem um âmbito variado de perspectivas sobre os fundamentos da ética. Muitos rejeitam este género de relativismo. O psicólogo moral Lawrence Kohlberg, por exemplo, considerava o relativismo cultural uma abordagem relativamente imatura da moralidade, típica de adolescentes e de adultos jovens.

Kohlberg afirmava que todos nós, independentemente da nossa cultura, desenvolvemos o pensamento moral através de uma série de estádios. Os primeiros quatro são os seguintes:

  1. Punição/obediência: o “mal” é o que implica punição.
  2. Recompensas: o “bem” é aquilo que nos dá o que desejamos.
  3. Aprovação familiar: o “bem” é o que agrada à mamã e ao papá.
  4. Aprovação social: o “bem” é aquilo que é socialmente aprovado.

Quando são muito novas, as crianças pensam na moral em termos de punições e obediência. Mais tarde, começam a pensar em termos de recompensa e, em seguida, em termos de aprovação familiar. Mais tarde ainda, na adolescência ou quando são adultos jovens, atingem a fase do relativismo cultural. Nesta fase, o “bem” coincide com o que é socialmente aprovado, o grupo de amigos em primeiro lugar, e depois a sociedade como um todo. É dada importância ao tipo de vestuário que se usa e ao género certo de música que se ouve — onde “género certo” significa seja o que for que é socialmente aprovado. São muitos os jovens estudantes liceais que se debatem com estas questões. Talvez por isso levem a sério o relativismo cultural — mesmo que o ponto de vista seja implausível quando o analisamos cuidadosamente.

Segundo Kohlberg, que fase sucede ao relativismo cultural? Por vezes, confusão e cepticismo; de facto, um curso de ética pode promover esta atitude. A seguir, passamos para o estádio 5 (semelhante ao utilitarismo das regras) ou para o estádio 6 (próximo da Regra de Ouro). Ambos procuram avaliar as normas convencionais racionalmente.

Não estou a referir Kohlberg com o objectivo de argumentar que, sendo correcta a sua perspectiva, o relativismo cultural está errado. Esta perspectiva é controversa. São vários os psicólogos que propõem uma sequência diferente dos estádios morais ou que rejeitam a ideia de que existem estádios. Além disso, o relativismo cultural já foi adequadamente demolido; não é necessária a ajuda da psicologia. Mencionei Kohlberg porque muitas pessoas se sentem pressionadas a aceitar o relativismo cultural em virtude do mito de que todos os especialistas em ciências sociais são relativistas culturais. Mas este género de consenso não existe. Kohlberg e muitos outros especialistas em ciências sociais rejeitam enfaticamente o relativismo cultural. Vêem nele um estádio imaturo do pensamento moral que nos faz conformar com a nossa sociedade.

A abordagem de Kohlberg coloca, no entanto, um problema acerca do significado de “bem”. As pessoas podem querer dizer com esta palavra diferentes coisas em estádios diferentes; numa criança, “bem” pode significar “o que agrada à mamã e ao papá”. Logo, devemos dirigir a nossa atenção para aquilo que as pessoas com maturidade moral têm em vista com esta palavra. Se o nosso argumento estiver correcto, uma pessoa com maturidade moral, quando utiliza este termo, não pretende afirmar que “bem” significa “socialmente aprovado”.

6. Sumário

O relativismo cultural afirma que “bem” significa o que é “socialmente aprovado” pela maioria de uma dada cultura. O infantícidio não é objectivamente um bem ou um mal; pelo contrário, é um bem numa sociedade que o aprove e um mal numa sociedade onde não obtenha aprovação.

O relativismo cultural considera que a moral é um produto da cultura. Afirma que as diferentes sociedades discordam amplamente sobre a moral e que não temos meios claros para resolver as diferenças. Os relativistas culturais consideram-se pessoas tolerantes; olham para as outras culturas não como estando “erradas” mas como “diferentes”.

Apesar de inicialmente plausível, o relativismo cultural tem vários problemas. Por exemplo, torna impossível discordar dos valores da nossa sociedade. Acontece, por vezes, afirmarmos que, apesar de socialmente aprovada, uma certa atitude não é boa. E isto está em contradição com o RC.

Além disso, o relativismo cultural implica que a intolerância e o racismo sejam um “bem” se a sociedade o aprovar. Leva-nos ainda a aceitar as normas da nossa sociedade acriticamente.

O relativismo cultural combate a ideia de que existem valores objectivos. O ataque pode ser desmontado com facilidade se o examinarmos cuidadosamente.

São muitos os especialistas em ciências sociais que se opõem ao relativismo cultural. O psicólogo Lawrence Kohlberg, por exemplo, defende que as pessoas de todas as culturas passam pelos mesmos estádios de desenvolvimento moral. O relativismo cultural representa um estádio relativamente baixo no qual simplesmente nos conformamos com os valores da sociedade em que vivemos. Em estádios mais avançados, o relativismo cultural é rejeitado; consideramos criticamente as normas aceites e pensamos pela nossa cabeça em questões de ordem moral. Como fazer tal coisa é o tema deste livro.

7. Orientação do estudo (questões)

  1. Como é que o relativismo cultural define o “bem”? De que métodos dispõe para formar crenças morais?
  2. Ana foi educada para acreditar em valores objectivos. Indique duas experiências que a conduziram a aceitar o relativismo cultural? (ponto 1)
  3. Quando Ana rejeitou os “valores objectivos” ou o “mito da objectividade”, o quê, exactamente, foi rejeitado? Que significa dizer que “bom” é um termo relativo?
  4. Por que razão o relativismo cultural nos torna, hipoteticamente, mais tolerantes a respeito de outras culturas?
  5. Que benefícios hipotéticos extrai a sociedade de Ana do relativismo cultural?
  6. Esquematize (numa página) as suas reacções iniciais ao relativismo cultural. Parece-lhe plausível? O que lhe agrada e desagrada nesta perspectiva? Consegue pensar numa forma de mostrar a sua falsidade?
  7. Por que razão o relativismo cultural nos conduz a conformar-nos com os valores da sociedade?
  8. Na perspectiva do relativismo cultural o que significa “a tolerância é um bem”? Por que razão esta perspectiva não implica necessariamente que a tolerância é um bem?
  9. Explique a história acerca de Rita Rebelde — e em que medida representa um problema para a perspectiva de Ana.
  10. Como se pode aplicar o relativismo cultural ao racismo e à educação moral?
  11. Explique o problema dos subgrupos sociais (ponto 3).
  12. É possível estabelecer normas comuns entre sociedades com base no relativismo cultural?
  13. Esboce os modos como um relativista cultural e um defensor da objectividade dos valores responderiam a esta questão: “O conhecimento de outras culturas pode permitir-nos corrigir erros nos valores da nossa própria cultura”.
  14. Qual a perspectiva de Martin Luther King acerca de valores objectivos? Em que medida difere da perspectiva de Ana? (ponto 4)
  15. Explique e critique os três argumentos de Ana para rejeitar valores objectivos.
  16. Na perspectiva objectivista, de que modo diferem as regras morais das regras legais e de etiqueta?
  17. Será que todos os especialistas em ciências sociais são relativistas morais? Qual o ponto de vista do psicólogo Kohlberg acerca do relativismo cultural?
  18. Esboce os estádios de desenvolvimento moral de Kholberg.
Harry Gensler
Ethics: A contemporary introduction (Routledge, 1998)
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ISSN 1749-8457