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28 de Novembro de 2008   Filosofia da ciência

Indução e filosofia da ciência

Stephen Law
Tradução Carlos Marques

A filosofia da ciência é uma das mais velhas subdivisões da filosofia, remontando pelo menos a Aristóteles. Está hoje em rápido crescimento, uma vez que os grandes avanços científicos do último século têm levado os filósofos a pensar mais cuidadosamente sobre a ciência. Estes filósofos poderão vir a influenciar o futuro da ciência.

A filosofia da ciência implica reflexão filosófica sobre a ciência. Os filósofos da ciência não colocam questões científicas — essa é a tarefa dos cientistas. Em vez disso, os filósofos da ciência enfrentam questões sobre a ciência. Por exemplo: o que é a ciência? O que distingue a ciência da não ciência? Qual o papel da observação na ciência? Como progride a ciência? Outras questões focam-se nos conceitos que a ciência aplica. Por exemplo, o que é uma lei da natureza? Outra preocupação filosófica é a de se saber até que ponto temos justificação para acreditar que as entidades inobservadas são reais. Devemos supor que os electrões existem realmente, ou são apenas “ficções” úteis?

O equilíbrio dos indícios

Algumas das questões mais centrais e importantes colocadas por filósofos da ciência dizem respeito ao problema da confirmação. Os cientistas constroem teorias que pensar ser confirmadas pelo que observam. Essa confirmação, no entanto, faz-se por graus. Uma teoria pode ser ligeiramente confirmada por alguma evidência ou pode ser confirmada mais fortemente. Supomos que quanto mais fortemente uma teoria científica for confirmada pela evidência disponível, mais racional se torna nela acreditar. Uma pergunta relativa à confirmação em que podemos pensar é a seguinte: o que faz uma teoria ser mais fortemente confirmada do que outra? Outra pergunta, mais fundamental, é a de saber se as nossas teorias científicas podem ser alguma vez confirmadas. O filósofo do século XVIII David Hume argumentou que apesar de supormos que aquilo que observámos até hoje confirma as nossas teorias científicas, tais observações não fornecem de facto qualquer confirmação. Se Hume tiver razão, todas as teorias, quer a teoria de que a Terra gira em torno do Sol, quer a teoria de que o núcleo da Terra é feito de queijo, são igualmente racionais. O problema que Hume levanta é conhecido como o “problema da indução”. Trata-se de um problema que numerosos pensadores na filosofia tentaram enfrentar.

O problema da indução

Todos nos baseamos enormemente no raciocínio indutivo. Supomos que em virtude de o Sol ter nascido todos os dias no passado, temos boas razões para supor que nascerá amanhã. Porém, se o filósofo David Hume tiver razão, o passado não fornece qualquer espécie de pista para o que acontecerá no futuro.

Grandes esperanças

A forma de argumento mais fiável é a dedução. Num argumento dedutivo válido, as premissas implicam logicamente a conclusão. Tomando um exemplo simples:

Sócrates é homem.
Todos os homens são mortais.
Logo, Sócrates é mortal.

Se dizemos que as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa é porque nos envolvemos numa contradição.

Num argumento indutivo, por contraste, as premissas não fornecem supostamente uma garantia de que a conclusão é verdadeira. Em vez disso, espera-se que as premissas forneçam apenas indícios de que a conclusão é verdadeira. Eis um exemplo:

O ganso 1 é branco.
O ganso 2 é branco.
O ganso 3 é branco.
O ganso 1000 é branco.
Portanto, todos os gansos são brancos.

Se observamos mil gansos e se todos eles são brancos, concluímos que todos os gansos são brancos. Supomos que as premissas do nosso argumento tornam razoável aceitar a conclusão. Porém, é claro que não há contradição lógica em supor que apesar de os primeiros mil gansos observados serem brancos, o próximo possa não sê-lo.

Baseamo-nos a toda a hora em argumentos indutivos. Quando fazemos uma previsão do que acontecerá no futuro ou acerca do que está a acontecer, ou aconteceu, em zonas do universo que não observámos, baseamo-nos no raciocínio indutivo para justificar as nossas posições.

Por exemplo, suponho que a cadeira onde estou sentado aguentará o meu peso. Que justifação tenho para acreditar nisso? Bem, a cadeira sempre aguentou o meu peso no passado. Portanto, concluo que aguentará também desta vez. É evidente que o facto de a cadeira ter aguentado comigo no passado não me dá garantia lógica de que agora aguentará. É possível que a cadeira se desmorone. Ainda assim, supomos que o facto de a cadeira ter sempre aguentado comigo me dá razões para acreditar que continuará a fazê-lo. Os cientistas também se baseiam enormemente no raciocínio indutivo. Constroem teorias que valem supostamente em toda a parte e em qualquer época, incluindo o futuro. Justificam as teorias apresentando as suas observações. Contudo, as afirmações acerca do que foi observado não implicam logicamente as afirmações acerca do que acontecerá no futuro. Assim, se os cientistas querem justificar estas teorias, não o podem fazer através de argumentação dedutiva. Em vez disso, têm de basear-se no raciocínio indutivo.

Não é, portanto, a razão o guia da vida, mas o hábito que por si só determina em todos os caso a mente a supor o futuro conforme ao passado.
David Hume, Tratado Sobre A Natureza Humana

É a natureza uniforme?

O filósofo David Hume coloca a questão de saber se podemos ou não justificar alguma vez este tipo de conclusões acerca do que não observámos. Hume afirma que quando raciocinamos indutivamente fazemos um pressuposto: pressupomos que a natureza é uniforme, pressupomos que existem os mesmos padrões gerais subjacentes à natureza. O que aconteceria se não partíssemos deste pressuposto? Nesse caso, não poderíamos tirar as conclusões que tiramos. Eu não concluiria que a cadeira onde me sento agora aguentará comigo, em virtude de ela ter sempre aguentado comigo no passado. É porque acredito que as mesmas regularidades gerais subjazem à natureza, incluindo no futuro, que suponho que a cadeira aguentará comigo da próxima vez que nela me sentar. Mas é aí que Hume detecta um problema. Sempre que raciocinamos indutivamente pressupomos que a natureza é uniforme. Porém, se queremos justificar a nossa crença de que a indução é um método fidedigno para chegar a crenças verdadeiras, temos de justificar este pressuposto.

Justificar as nossas crenças

Hume indica que há duas possibilidades. Podemos tentar justificar a ideia de que a natureza é uniforme recorrendo à experiência ou podemos justificá-la independentemente da experiência, afirmando porventura que se trata de uma verdade lógica. O problema com esta segunda sugestão é bastante óbvio. A ideia de que a natureza é uniforme não é claramente uma verdade lógica. Não há contradição lógica em supor que, embora a natureza tenha sido uniforme até agora, possa tornar-se de repente uma confusão caótica e desarrumada, onde as coisas se comportam ao acaso e de forma imprevisível.

Não resta senão uma possibilidade para justificar o pressuposto de que a natureza é uniforme. Temos de fazê-lo apelando à experiência. Uma forma de levar isso a cabo seria observar directamente tudo o que se passa na natureza. Desse modo poderíamos simplesmente observar que ela é uniforme em todas as suas partes. Mas é claro que não podemos fazer isto. Podemos observar directamente apenas uma pequena porção do universo. E é certo que não podemos observar directamente o futuro.

Portanto, a nossa justificação terá de recorrer a uma inferência baseada no que pode ser observado directamente. E por que não podemos testemunhar que a natureza é aqui e agora uniforme e, depois, concluir que a natureza é provavelmente uniforme em todas as outras circunstâncias?

O problema é, obviamente, que este raciocínio é ele próprio indutivo. Teríamos de nos basear num raciocínio indutivo para tentar mostrar que o raciocínio indutivo é fidedigno. Mas isto é certamente uma justificação circular inaceitável. Seria como confiar nas afirmações de um doente mental quando este assevera ser digno de confiança. Não é de modo algum uma justificação.

Hume conclui que embora raciocinemos indutivamente, não temos realmente qualquer justificação para supor que o raciocínio indutivo conduz provavelmente a conclusões verdadeiras. Não temos fundamentos para supor que as coisas continuarão a comportar-se como no passado. Sim, acredito que esta cadeira aguentará comigo da próxima vez que nela me sentar, que esta caneta cairá quando a largar e que o Sol nascerá amanhã, como sempre aconteceu. Mas, espantosamente, a verdade é que tenho tanta razão para supor que a cadeira se desmoronará, como para acreditar que a caneta se erguerá vagarosamente ou que amanhã de manhã um panda luminoso insuflável com milhões de quilómetros de largura se erguerá no horizonte.

A conclusão de Hume parece louca. Em condições normais, consideraríamos louca uma pessoa que acredita que um panda com milhões de quilómetros de largura tomará o lugar do Sol. Mas se Hume tiver razão, esta crença “louca” não é menos razoável do que a nossa própria crença de que será o Sol a erguer-se e não o panda. As previsões de um louco não são mais nem menos razoáveis do que as dos maiores cientistas.

“Porém, funciona”

Pode ser tentador responder ao problema da indução de Hume notando que o raciocínio indutivo tem tido um grande sucesso até agora. Baseando-se no raciocínio indutivo os cientistas alcançaram coisas extraordinárias, desde as lâmpadas eléctricas e computadores, às viagens espaciais e à manipulação genética. Todos estes feitos grandiosos da ciência e da engenharia dependem do raciocínio indutivo. Não é isto fundamento para supor que o raciocínio indutivo é um método fidedigno para alcançarmos crenças verdadeiras?

A dificuldade com esta justificação da indução é uma vez mais que ela própria é um raciocínio indutivo. Refere que o raciocínio indutivo tem sido extremamente bem-sucedido até hoje e conclui que continuará provavelmente a ser bem-sucedido no futuro. Estamos outra vez a cair no problema da circularidade: usar a indução para justificar a indução é como confiar no que diz um anúncio porque o próprio anúncio garante ser de confiança.

Baseando-se em raciocínios indutivos os cientistas alcançaram resultados estupendos. O Homem caminhou na Lua. Não mostra isto que a indução é fidedigna?

Apelo à racionalidade

Dado que acreditamos que temos justificação para tirar conclusões acerca do futuro e que as previsões dos grandes cientistas estão mais provavelmente próximas da verdade do que as de um louco, é espantoso que Hume tenha aparentemente mostrado que tais crenças são irracionais.

Os filósofos continuam de volta deste problema espinhoso. Alguns sugeriram o seguinte. Como a palavra “racional” significa “raciocionar dedutiva ou indutivamente”, não precisamos de justificar a convicção “a indução é racional”, tal como não precisamos de o fazer em relação à crença de que nenhum solteiro é casado ou de que todas as mães são mulheres. Estas proposições são, se quisermos, analíticas ou “verdadeiras por definição”.

Uma dificuldade com esta manobra é que, ao aceitarmos que “a indução é racional” é “verdadeira por definição”, estamos apenas a adiar o problema. Hume pergunta-nos como podemos saber que a indução nos pode conduzir fidedignamente a crenças verdadeiras acerca do futuro. Insistir na ideia de que a indução é racional porque é “verdadeira por definição” apenas faz levantar a questão: e que fundamento temos para supor que “ser racional” conduzirá fidedignamente a crenças verdadeiras acerca do futuro? Porquê supor que “racionalidade” será um guia mais fidedigno para o futuro do que as suposições de um louco?

O problema da indução levou alguns pensadores a procurarem formas alternativas de estabelecer verdades científicas.

A teoria de Hume é assim tão radical?

Para aqueles que só há pouco tiveram contacto com a filosofia não é fácil perceber quão radical é realmente a posição de Hume sobre a indução. A conclusão a que ele chega não é, como pode parecer à primeira vista, que não podemos estar completamente certos quanto ao que irá acontecer no futuro. Todos podemos ver que há pelo menos alguma margem de erro nas nossas previsões. A conclusão de Hume é que não temos fundamento para supor que as coisas continuem a comportar-se como até agora se comportaram. Se Hume tiver razão, a ciência é no seu todo uma actividade irracional e as previsões feitas pelos cientistas não são mais racionais do que as de um louco.

Os “cientistas loucos” só existem na ficção, mas de acordo com Hume, o raciocínio indutivo usado por todos os cientistas é de certa maneira louco, visto que não tem uma base racional.

Falsificacionismo

O filósofo Karl Popper oferece uma solução radical para o “problema da indução” de Hume e para a nuvem de dúvida que este problema lança sobre as teorias científicas. De acordo com Popper, a ciência não se baseia na indução, progredindo em vez disso através da “falsificação” de teorias.

Eliminar o erro

Suponhamos que acredito que todos os gansos são brancos. Mas depois, numa visita à Nova Zelândia, vejo um ganso negro. A minha observação de que existe um ganso negro falsifica — quer dizer, torna falsa — a minha teoria original de que todos os gansos são brancos.

Note-se que aqui o raciocínio é dedutivo e não indutivo. Observo que é verdadeiro que existe um ganso não branco. A verdade desta afirmação implica que a minha teoria “Todos os gansos são brancos”. é falsa.

A perspectiva de Karl Popper é que a ciência, em vez de progredir através de teorias que são confirmadas indutivamente, progride na verdade através de teorias que são falsificadas por raciocínio dedutivo. Os cientistas constroem teorias a partir das quais deduzem certas consequências que podem ser submetidas a testes. As teorias que não são falsificadas pelos testes mantêm-se, as que são falsificadas põem-se de parte, construindo-se no seu lugar teorias que escapam a essa falsificação. Também estas são depois testadas e aquelas que se mostram falsas, postas de parte, e assim sucessivamente. Note-se que, como a falsificação não envolve raciocínio indutivo, o problema da indução de Hume é contornado. A concepção de Popper sobre o modo como a ciência funciona em vez de resolver o problema da indução, evita-o.

Encontrar boas teorias

A teoria de Popper não diz que são igualmente boas todas as teorias que ainda não foram falsificadas. Algumas teorias são melhores do que outras. O que faz uma teoria não falsificada ser preferível a outra é o facto de poder ser mais facilmente falsificada. Mas o que faz uma teoria ser mais facilmente falsificada do que outra? Uma forma de uma teoria ser mais facilmente falsificada deve-se à sua maior abrangência. Consideremos estas duas teorias acerca da gravidade:

Todos os objectos caem em direcção ao centro da Terra.
Em Londres todos os objectos caem em direcção ao centro da Terra.

A primeira teoria é mais abrangente. Prevê tudo o que a segunda prevê e prevê ainda muito mais. Sendo que prevê mais, é mais fácil de falsificar do que a segunda teoria.

Uma teoria é também mais facilmente falsificada se fizer previsões mais precisas. Consideremos a afirmação:

Todas as pessoas felizes usam cores brilhantes.

Trata-se de uma asserção bastante vaga. O que é exactamente a felicidade e como podemos medi-la? Onde está precisamente a fronteira entre ser feliz e não o ser? O que se deve considerar brilhante? Estas e outras questões levantam-se assim que resolvemos testar a afirmação. E é claro, dada a sua vagueza, alguém que esteja interessado em defendê-la pode sempre fugir ao que parece uma falsificação, dizendo “Bem, não era propriamente isso que queria dizer com “brilhante"”, ou “Esta pessoa não é propriamente alguém que eu consideraria “feliz"”. A vagueza faz uma afirmação ser muito mais difícil de falsificar.

Uma teoria que faz previsões precisas e sem ambiguidades acerca de fenómenos quantificáveis e mensuráveis é muito mais fácil de falsificar. Por exemplo, a teoria de que todas as pedras pesam precisamente 500g pode ser facilmente falsificável com a ajuda de uma simples balança. Os instrumentos de medida, como os manómetros ou os termómetros, fornecem aos cientistas ferramentas eficazes para testar as suas teorias.

Karl Popper sobre a ciência genuína

De acordo com Karl Popper, qualquer teoria científica genuína será falsificável. Quer dizer, haverá uma possível observação que poderá falsificá-la. Na opinião de Popper, uma teoria verdadeiramente científica faz uma afirmação positiva acerca do modo como o mundo funcionará. Corre o risco de ser falsa — o mundo pode não funcionar como a teoria diz. As posições não falsificáveis não permitem fazer este tipo de afirmações, pois são compatíveis com qualquer modo de ser do mundo, seja ele qual for. Por isso, carecem de qualquer conteúdo empírico. Por exemplo, dizer que “As esmeraldas são verdes ou não são verdes” é uma afirmação não falsificável — o que quer que seja que observemos será compatível com a sua verdade. Portanto, não é genuinamente científica. Popper sugere que esta é a maneira de distinguir entre as teorias que são genuinamente científicas e as que são apenas pseudocientíficas. As teorias genuinamente científicas são falsificáveis. Teorias que dizem ser científicas, mas que não são falsificáveis, são falsa ciência. De acordo com Popper, nem a teoria da história de Marx, nem a teoria do inconsciente de Freud podem ser sujeitas ao teste da falsificabilidade. Popper argumenta que qualquer que sejam os contra-indícios que possamos recolher contra as teorias de Marx ou de Freud, há sempre uma maneira de a teoria se lhes acomodar. Segundo Popper, estas teorias não são más teorias científicas. Não são sequer teorias científicas.

Evitar o “ad hoc

Suponhamos que acredito que “toda a madeira arde”. Faço então uma encomenda de lenha e nenhum tronco arde. Esta observação falsifica a minha teoria de que toda a madeira arde. Como posso ripostar? Uma possibilidade seria emendar a minha teoria original para:

Toda a madeira arde excepto a que foi encomendada no último Domingo.

Contrariamente à minha teoria original, esta nova teoria não pode ser falsificada pela lenha recebida no Domingo. Mas os falsificacionistas não consideram desejável este género de modificação.

Quanto mais falsificável melhor. Uma teoria não falsificável que faz previsões precisas e mensuráveis é melhor do que uma que é vaga e confusa. Instrumentos calibrados ajudam-nos a falsificar algumas teorias.

E a razão disso é que se trata de uma solução ad hoc (um termo do latim que significa “para este propósito”). É inaceitável porque nada acrescenta à teoria original em termos de consequências futuras testáveis — não posso, na verdade, dispor de outra encomenda de lenha entregue no mesmo Domingo de modo a fazer um teste.

Porém, nem todas as modificações são ad hoc. Suponhamos que observo que a madeira que não arde está molhada. Posso testar amostras de madeira seca e molhada para examinar se a minha nova hipótese é correcta.

Um exemplo concreto de um desses raciocínios ad hoc liga-se à teoria de Aristóteles de que todos os corpos celestes são perfeitamente esféricos. Galileu desenvolveu um telescópio que mostrava a existência de montanhas e vales na superfície lunar. Esta observação parecia falsificar a teoria de Aristóteles, visto que parecia provar que pelo menos a Lua não era perfeitamente esférica. Mas alguns tentaram defender a teoria de Aristóteles modificando-a ligeiramente. Afirmaram que tem de existir uma substância invisível que preencha os vales lunares até ao topo das montanhas. Portanto, a Lua é, afinal de contas, esférica. Este desenvolvimento da teoria de Aristóteles foi ad hoc porque nada acrescentou a essa teoria em termos de possíveis consequências que pudessem ser testadas. Ninguém podia fazer o que quer que fosse na altura para testar a existência ou não da dita substância invisível. De modo algo sarcástico, Galileu afirmou então que essa substância realmente existia, só que em cima das montanhas, fazendo com que a lua fosse ainda mais acidentada do que parece.

Onde falha a falsificação

Uma dificuldade óbvia que se pode levantar ao falsificacionismo é a sua aceitação da ideia de que não temos quaisquer justificação para supor qualquer teoria científica como verdadeira. Esta ideia é, no mínimo, altamente contra-intuitiva. Não seria preferível se pudéssemos divisar outra solução para o problema da indução, uma solução que nos permitisse evitar esta conclusão bizarra? É claro que, em resposta, o falsificacionista pode insistir que não há uma solução melhor.

Outra dificuldade é que o falsificacionismo não fornece uma descrição adequada do modo como a ciência progride ou deve progredir. Tomemos, por exemplo, a teoria de Copérnico de que a Terra se move em redor do Sol. Quando foi pela primeira vez proposta, os críticos apontavam duas observações que pareciam falsificar a teoria de Copérnico. Primeiro, se a Terra se move, um objecto que cai de uma torre alta devia cair fazendo um ângulo e não a direito, pois se a Terra se move durante o período da queda, o objecto devia cair a uma distância equivalente relativamente ao ponto exactamente abaixo de foi largado. Porém, é claro que os objectos caídos de torres caem sempre na vertical. Esta observação parece imediatamente falsificar a teoria copernicana.

Segundo, se a Terra anda em volta do Sol, as estrelas fixas deviam ter um movimento aparente para trás e para diante ao longo do nosso campo de visão durante o período de um ano (do mesmo modo que se olhássemos directamente para norte andando à volta de um poste de iluminação, as casas ao longo da rua se moveriam para trás e para diante ao longo do nosso campo de visão). Mas nenhum movimento desse género, a paralaxe, foi observado. A não observação da paralaxe também parece falsificar a teoria copernicana. Alguns tentaram defender a teoria copernicana insistindo que as estrelas estão demasiado longe para que a paralaxe seja detectada pelos instrumentos da época (o que se mostrou ser verdade). Mas, é claro, foi um argumento ad hoc. Não havia nesse tempo maneira de poder falsificar esta nova ideia sobre a distância das estrelas fixas.

Apesar disso, a teoria de Copérnico não foi rejeitada e ainda bem. Os cientistas provaram nos anos seguintes que Copérnico estava certo e que ambas as objecções eram infundadas. Uma vez que o falsificacionismo implica que a teoria de Copérnico devia ter sido rejeitada, parece que o próprio falsificacionismo está errado, pois não consegue descrever correctamente o modo como a ciência funciona.

Mesmo que o falsificacionismo não forneça uma descrição correcta do modo como a ciência procede ou deve proceder, o teste da falsificação mantém a sua importância. Muitos teorizadores que se afirmam “científicos” são dificilmente falsificados porque não fazem previsões claras e sem ambiguidades. Como resultado, aconteça o que acontecer, podem sempre afirmar que as suas teorias não foram falsificadas. Os astrólogos, por exemplo, podem habitualmente sustentar que se mostrou que a sua previsão é verdadeira.

Stephen Law
Philosophy (Londres, 2007), pp. 179-189.
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ISSN 1749-8457