Menu
Crítica
12 de Novembro de 2004   História da filosofia

A filosofia contemporânea

Anthony Kenny
Tradução de Desidério Murcho

Nesta nota, sem discutir obras individuais, irei limitar-me a indicar as linhas gerais do desenvolvimento filosófico ocorrido em décadas recentes. Por volta de 1960, poderíamos traçar o mapa do mundo da filosofia ocidental, sem um grau muito elevado de simplificação excessiva, por meio de um diagrama:


Existencialismo


Filosofia analítica


Marxismo


Escolástica

Podemos representar a situação tomando um quadrado e dividindo-o em quatro quadrantes. No canto superior esquerdo colocamos o existencialismo, nessa altura muito em voga na parte ocidental da Europa continental; no canto superior direito, colocamos a tradição analítica, que dominava os países de língua inglesa em ambos os lados do Atlântico. No canto inferior esquerdo, colocamos o marxismo, que era então a filosofia oficial da Europa de leste e da China; no canto inferior direito colocamos a filosofia escolástica, que era ensinada em todo o mundo nos seminários e universidades da Igreja Católica Romana.

A localização destes quadrantes no quadrado representa as características que aproximavam e separavam estas filosofias entre si. As filosofias da parte superior do diagrama partilhavam entre si uma preocupação pela autonomia intelectual e moral do indivíduo: a filosofia não era um conjunto de doutrinas autoritárias, mas um método de pensar (análise) ou um estilo de vida (existencialismo). As filosofias da parte inferior estavam, ambas, conectadas a instituições cujo propósito primário é não filosófico, e partilhavam a convicção de que as verdades filosóficas mais importantes foram estabelecidas de uma vez por todas, de modo que não podemos senão expô-las, mas nunca colocá-las seriamente em questão. As filosofia do lado direito do diagrama eram semelhantes no seu interesse no exame de minúcias puramente teóricas e nos laços estreitos que mantinham com sistemas de lógica formal. As do lado esquerdo tinham orgulho no seu comprometimento prático com as realidades básicas da experiência, trabalho, poder, amor e morte humanas; nenhuma delas contribuiu significativamente para o desenvolvimento dos aspectos matemáticos da lógica.

Nos anos 60 estes blocos filosóficos começaram a desagregar-se, a abrir fendas e a mudar. O segundo Concílio do Vaticano, inaugurado em 1962, conduziu a um período de liberalização na Igreja Católica Romana; no decurso disto, a neo-escolástica perdeu grande parte do seu estatuto canónico nas instituições de ensino superior da Igreja, e por volta da década seguinte era provável que os professores de um seminário fossem tão versados no existencialismo como no tomismo. Mas, ao mesmo tempo, o existencialismo clássico estava a perder o seu poder onde tinha antes dominado: a influência de Heidegger entrou em sério declínio, e o próprio Sartre, nas últimas décadas da sua vida, estava mais interessado no marxismo do que nos temas das suas anteriores batalhas contra o essencialismo.

Ao passo que nos anos 50 e 60 o Canal da Mancha tinha determinado uma barreira quase impenetrável entre a filosofia anglo-americana e a filosofia continental, por volta dos anos 70 começaram a aparecer muitas ligações de cruzamento cultural. A Alemanha, a Itália e (depois da morte de Franco) a Espanha tornaram-se receptivas aos métodos analíticos em filosofia, ao mesmo tempo que ideias filosóficas engendradas em França encontraram grande receptividade na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América, apesar de isto acontecer ser mais comum nos departamentos de literatura do que de filosofia.

Na Alemanha, por exemplo, nos finais dos anos 60, em algumas das principais universidades as influências dominantes eram a filosofia analítica (que tinha hábeis evangelistas entre alguns dos mais sofisticados docentes) e a filosofia marxista (que tinha expoentes orais entre alguns dos mais enérgicos dirigentes estudantis). A escola de pensamento mais próxima do existencialismo alemão que conseguiu sobreviver foi a hermenêutica, que fez da natureza da compreensão o seu tema central de estudo; a natureza da compreensão em geral, especialmente a compreensão das obras literárias, e em particular a compreensão das obras filosóficas das várias tradições.

A escola hermenêutica na Alemanha operou de um modo conciliador, tomando a actividade inevitavelmente fluente e flexível de interpretação de textos como um modelo geral para a compreensão das diferentes actividades e instituições humanas. Em França, alguns pensadores com um espírito mais combativo aproveitaram a ideia de que o mundo é todo ele um texto e tornaram-na o grito de guerra de uma cruzada iconoclasta.

A cruzada foi levada a cabo em nome do estruturalismo. Como método, o estruturalismo convida-nos a pressupor, com respeito a uma dada estrutura, que a inter-relação entre os seus elementos é mais importante do que qualquer relação entre um elemento individual e qualquer item exterior à estrutura. O estruturalismo, enquanto teoria de um dado campo de estudo, é a tese de que o método estruturalista é a chave para a compreensão desse campo. Assim, com respeito à linguagem, é a tese de que se queremos compreender o significado, temos de estudar as inter-relações entre os elementos significantes do interior da linguagem, em vez de olhar para uma relação entre qualquer significante e o que isso significa.

O pós-estruturalismo levou as teses estruturalistas a posições extremas e na verdade auto-refutantes. Para compreendermos um texto temos de excluir rigorosamente todos os elementos extratextuais. Isto significa não apenas o abandono da procura de qualquer realidade exterior representada pelo texto, mas também deixar de encarar o texto como a expressão do pensamento de um autor extra-textual. É o leitor que desempenha a parte de leão na produção do significado; mas dado que cada leitor interpreta qualquer texto de maneira diferente, nunca emerge qualquer significado definitivo, e assim cada texto destrói a sua própria pretensão de significar seja o que for.

Houve várias formas ou facções no pós-estruturalismo francês. Cada escola brilhou brevemente com um brilho magnético, atraindo uma multidão volúvel de devotos antes de se extinguir quando uma versão rival começa a brilhar mais sedutoramente. Todos estes grupos reivindicaram descender de expoentes distintos da teoria linguística como Saussure e Jakobson, e nesse sentido os seus membros podem classificar-se como filósofos linguísticos. Mas encontram-se no pólo oposto relativamente ao estilo de filosofia que desde cedo se encarou como filosofia linguística por excelência, a tradição analítica anglo-americana.

Também a filosofia analítica mudou imensamente desde o simples diagrama dos anos 60. As mudanças mais óbvias foram um declínio na sua autoconfiança e uma mudança no seu centro gravitacional. Em 1960 Oxford era o centro inquestionável do movimento analítico, e os filósofos vinham dos Estados Unidos para se sentarem aos pés dos filósofos de Oxford. Os partidários da filosofia analítica orgulhavam-se de serem os herdeiros de dois filósofos de indubitável génio: Russell e Wittgenstein. Achavam que a sua tarefa era explorar este feliz legado e partilhá-lo com o resto do mundo filosófico. Nas décadas que se seguiram aos anos 60 a liderança do movimento analítico mudou-se definitivamente para o outro lado do Atlântico, apesar de nenhuma universidade americana ter, só por si, herdado o papel dominante de que Oxford gozou. A tradição de Russell e Wittgenstein já não obrigam ao respeito geral; mas entretanto não emergiu outro génio como sucessor de uma estima idêntica e incontestada. Ninguém foi bem-sucedido em redefinir a natureza da filosofia, como Russell e Wittgenstein fizeram, ao colocarem o estudo da linguagem no centro da filosofia, e convencendo os seus partidários de que a tarefa da filosofia era o estudo da linguagem que usamos para exprimir os nossos pensamentos, e tornar esses pensamentos claros resolvendo as confusões da linguagem que usamos para os exprimir.

Consequentemente, a filosofia anglo-americana não apresenta já nem tão-pouco a aparência de uma escola unificada. A tradição continua a ser linguística, no sentido em que não faltam filósofos que oferecem teorias da linguagem. Mas as teorias da linguagem correntemente mais em voga estão muito longe da filosofia da linguagem apresentada por filósofos como Frege e Wittgenstein, e por essa razão são amargamente criticados por quem luta para preservar as ideias dos fundadores da tradição analítica.

Tanto Frege como Wittgenstein faziam uma distinção profunda entre filosofia e psicologia. Para Frege, a lógica, que estava no coração da filosofia, era uma ciência a priori muito diferente de uma ciência empírica como a psicologia; para Wittgenstein, a filosofia diferia da psicologia porque não era de maneira alguma um tipo de ciência, fosse ela empírica ou a priori. Os filósofos de Oxford dos anos 50 seguiram Wittgenstein neste aspecto; e os seus colegas psicólogos, muito mais interessados nessa altura no comportamento dos animais do que na linguagem humana, tinham todo o gosto em concordar que um hiato profundo separava as duas disciplinas.

Em contraste com isto, os filósofos americanos, a partir do momento em que empunharam a tocha da tradição analítica, têm tido tendência para ver a filosofia como uma disciplina científica com técnicas especiais rigorosas próprias, e não como uma demanda informal pela compreensão, demanda fundada na reflexão sobre as actividades não académicas das pessoas comuns. A filosofia da mente, em especial, é hoje muitas vezes vista como algo cuja tarefa é a construção de um modelo da mente que o estudante de inteligência artificial possa ter como objectivo criar. Depositam-se grandes esperanças numa nova disciplina chamada “ciências cognitivas”, que irá combinar as capacidades conceptuais do filósofo, a capacidade para construir modelos do especialista em inteligência artificial e as descobertas empíricas do psicólogo experimental. Estas esperanças espalharam-se através do Atlântico, chegando à Grã-Bretanha e à própria universidade de Oxford.

Este desenvolvimento, apesar de ter sido promovido por filósofos formados na tradição analítica, reverte na verdade a viragem linguística que dava a essa tradição o seu carácter definitório. Da primeira denúncia de Frege do psicologismo na lógica, passando pelos escritos do Wittgenstein mais jovem e mais maduro, até à filosofia da linguagem corrente de Oxford e à sua recepção nos Estados Unidos, todos aceitavam que a maneira de compreender o pensamento era reflectir sobre a linguagem. Era uma convicção comum que os pensamentos só podem identificar-se e individuar-se através da sua expressão na linguagem, e que uma estrutura do pensamento acessível independentemente da estrutura da linguagem era coisa que não existia. As aspirações dos cientistas cognitivos vão claramente contra este princípio fundamental da filosofia da análise linguística. A esperança da nova disciplina é explicar a linguagem relacionando-a com estruturas mentais que já podem em princípio, e que no futuro poderão na prática, ser investigadas independentemente de qualquer expressão linguística.

Ao mesmo tempo que ocorria esta mudança dramática de direcção na filosofia anglo-americana da linguagem, houve um desenvolvimento também surpreendente no seio da filosofia moral e política analítica. No auge do movimento analítico era popular pensar que havia uma distinção marcada entre a ética e a moral. A moral consistia em questões de primeira ordem sobre como nos devemos comportar, questões como a de saber se mentir era em algumas circunstâncias permissível, ou se o objectivo de acabar com uma guerra justificava que se bombardeassem cidades. Este tipo de questões e as suas respostas pertenciam à disciplina moral de primeira ordem. Não era claro quem tinha a tarefa de responder a estas questões, mas qualquer filósofo de Oxford dos anos 50 lhe teria dito que certamente não era tarefa do filósofo. O filósofo fazia algo bastante diferente, a que chamava “ética”; e isso era um estudo de segunda ordem dos conceitos que usamos ao formular e responder a questões de primeira ordem, e a relação entre o filósofo e o moralista não era mais próxima do que a relação entre o mecânico e quem conduz o carro.

Tudo isto mudou também entre os anos 50 e os anos 80. Nos países de língua inglesa encara-se agora como perfeitamente apropriado que os filósofos usem as suas próprias aptidões profissionais para fazer propostas específicas para a reforma de questões públicas, ou denúncias específicas de políticas e administrações. Os filósofos passaram a demonstrar um grande interesse em questões de primeira ordem sobre os direitos das mulheres ou sobre os males da guerra nuclear de um modo que costumava encarar-se como algo que caía mais no âmbito do político ou do clérigo do que no do filósofo profissional.

A filosofia analítica já não é, pois, se é que alguma vez foi, uma unidade homogénea. A própria concepção de filosofia tornou-se mais vaga e mais aberta nas suas margens. Isto acarreta outra consequência, que é sobretudo relevante para o presente trabalho: a filosofia no mundo de língua inglesa mudou a sua atitude relativamente à sua própria história. Nas eras das cruzadas autoconfiantes, tal como a que marcou o auge da filosofia da linguagem corrente, a história da filosofia tinha tendência a ser negligenciada. Uma era revolucionária não perde tempo a dissecar as minúcias que preocuparam o antigo regime; proclama a verdade acabada de descobrir que era na melhor das hipóteses ignorantemente venerada pelos seus predecessores. As fracturas e a fragmentação do monólito analítico conduziram a um interesse renovado na história da filosofia. Um exemplo particularmente impressionante é o renascimento recente dos estudos medievais: a filosofia medieval, que antes tinha sido uma serva ou uma ama da teologia, unicamente ensinada em seminários, é agora ensinada com proficiência em universidades seculares como um elemento significativo do legado filosófico. Surpreendentemente, até o argumento ontológico a favor da existência de Deus, encarado nos anos 50 a arma mais desacreditada do arsenal filosófico, foi renovado com modernos e sofisticados dispositivos acessórios, voltando a ser usado no campo de batalha contemporâneo da teologia filosófica.

Podemos regressar, pela última vez, ao nosso diagrama inicial para seguir brevemente o curso recente da filosofia marxista. Nos anos 50, o marxismo, como a escolástica, devia o seu lugar nas instituições académicas a organizações cujos objectivos primários não eram filosóficos; e, como a escolástica, estava à mercê de mudanças não académicas nessas organizações. Mas para o marxismo, ao contrário da escolástica, os anos 60 foram uma década de expansão, e muitos filósofos ocidentais adoptaram abordagens marxistas, apesar de os seus interesses terem tendência para se concentrar nas obras do jovem Marx e não em Das Kapital. Ao mesmo tempo, a desilusão com a natureza corrupta e despótica dos regimes marxistas tornou os estudantes de filosofia dos países do bloco de leste cínicos quanto ao valor da filosofia oficial que subjazia a esses países. Nos anos 70, paradoxalmente, no leste o marxismo era universalmente ensinado e quase universalmente ninguém acreditava nele, ao passo que no ocidente o marxismo era ensinado, ainda que a uma minoria, mas a uma audiência de crentes apaixonados. Hoje em dia, claro, em resultado da dissolução do Império Soviético e da libertação dos satélites soviéticos, o apoio institucional da filosofia marxista na Europa de leste esboroou-se quase completamente. A sobrevivência da filosofia marxista depende necessariamente dos esforços dos seus devotos nas universidades ocidentais.

As grandes ideias filosóficas podem permear todos os aspectos do pensamento e das actividades humanas; mas levam muito tempo a fazê-lo, e é necessário ainda mais tempo para que a sua influência possa ser avaliada como saudável ou deletéria. As filosofias da segunda metade do século XX estão demasiado próximas para que possamos fazer um juízo definitivo sobre elas, ainda que se consiga perceber que algumas delas são efémeras.

Qualquer leitor que tenha perseverado na leitura deste livro terá sido surpreendido pelo facto de que mesmo os maiores filósofos do passado propuseram doutrinas que podemos ver — graças à compreensão retrospectiva dos outros grandes filósofos que estão entre eles e nós — que estão profundamente erradas. Isto não deve ser encarado como algo que reflecte o génio dos nossos grandes predecessores, mas como uma indicação da extrema dificuldade da disciplina. A ambição da filosofia é alcançar um tipo de verdade que transcende o que é meramente local e temporal; mas nem mesmo o maior dos filósofos chegou perto de alcançar esse objectivo de um modo abrangente. Há uma tentação constante para minimizar a dificuldade da filosofia redefinindo a disciplina de maneira a que o seu objectivo pareça mais tangível. Mas nós, filósofos, temos de resistir a esta tentação; devemos combinar o orgulho sem-vergonha na elevação do nosso objectivo com a modéstia indisfarçada quanto à pobreza dos resultados.

Este pensamento foi muito bem expresso pelo filósofo americano Thomas Nagel, na sua brilhante sinopse da filosofia, The View From Nowhere:

Mesmo os que acham que a filosofia é uma coisa real e importante sabem que estão num estádio particular e inicial, esperemos, do seu desenvolvimento, limitados pelas suas próprias primitivas capacidades intelectuais, e baseando-se nas ideias parcelares de um punhado de grandes figuras do passado. Tal como pensamos que os seus resultados estão fundamentalmente errados, temos também de presumir que mesmo os melhores esforços do nosso próprio tempo acabarão por parecer cegos.

Anthony Kenny
The Oxford Illustrated History of Western Philosophy, ed. Anthony Kenny (Oxford University Press, 1994), pp. 363–369
Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457