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Crítica
4 de Janeiro de 2010   Filosofia política

O fim da política

Desidério Murcho

Quando a época glaciar estava a chegar ao fim, os Neandertais pensavam provavelmente que aqueles verões quentes europeus eram apenas uma excepção. Afinal, sempre os glaciares tinham sido presença constante na Europa. Não são Neandertais que hoje olham para as novidades que talvez venham a caracterizar o futuro, mas podem estar a cometer o mesmo erro de tomar o que é uma nova tendência por mera excepção.

Eis o mito contemporâneo: a liberdade e a democracia, tal como são concebidos na Europa e nos Estados Unidos, são direitos fundamentais, e a vida humana não pode florescer adequadamente sem eles. E eis o que os intelectuais Neandertais considerariam meras excepções: Singapura, China, Rússia, Emiratos Árabes Unidos, Índia… e até o Reino Unido e os EUA. Em todos estes casos, a liberdade e a democracia têm sido reconfiguradas e fortemente restringidas, em nome da produção da riqueza, nos primeiros casos, e da segurança, nos dois últimos. E os povos desses países não se queixam. Alguns intelectuais desses países queixam-se, mas não a generalidade das pessoas.

Pensar que a liberdade e os processos democráticos são fins em si é talvez a grande ilusão contemporânea, ilusão que bate na parede inamovível da mentalidade pragmática e sem ideologias da generalidade da população dos países hoje mais ricos. A generalidade da população destes países não participa no processo democrático — nem fazem uma coisa tão simples como votar, quanto mais associar-se aos partidos políticos ou fazer novos partidos políticos, ou participar nas instituições públicas apartidárias. A generalidade da população destes países não quer saber da política.

“Não dizemos que um homem que não revela interesse pela política é um homem que nada tem a ver com a vida alheia; dizemos que nada tem a ver com a vida”, escreveu Tucídides — e poderá com estas palavras ter sintetizado a grande ilusão humana que agora está a ser refutada pela história, a ilusão de que todo o ser humano adequadamente formado tem interesse na vida pública. Afinal, “vida privada” até quer originalmente dizer vida de privação, privada de algo importante. A ideia iluminista era que as populações europeias só não se interessavam pela política porque estavam brutalizadas pela ignorância e pela pobreza; dadas boas condições de vida e instrução, toda a gente seria, se não um Aristóteles, pelo menos um parlamentar em potência.

A ideia veio a morrer de morte natural, mas o cadáver caminha. A participação na vida pública não aumentou na Europa, apesar de as pessoas terem agora a riqueza, o tempo e a instrução para o fazer. Não o fazem, porque não estão interessadas em fazê-lo. Preferem ver cinema ou futebol ou televisão, fazer compras, passar férias e fins-de-semana na praia — enfim, mil coisas, mas não perder tempo com a vida pública. O cadáver caminha ainda porque não se pára de ouvir falar na importância da participação na vida pública, a que se chama cidadania. Impõe-se isso como valor nas escolas e na televisão. E não funciona. Nada muda. O acto mais simples de cidadania é votar, mas nem isso a generalidade das pessoas fazem na Europa ou nos EUA.

Mas fazem-no em regimes populistas, manifestando-se aos milhares nas ruas de Hugo Chávez. Fazem-no pela mesma razão que o faziam na Europa das convulsões sociais, a Europa da pobreza e da multidão de ignorantes: porque viam na política uma luz, uma esperança, para uma vida melhor. Agora que têm uma vida melhor, a política, a vida pública, perdeu o interesse.

Há aqui um conflito entre concepções diferentes da vida pública e da política. Os intelectuais, herdeiros de leituras e tradições bem definidas, encaram a vida pública aristotelicamente, como um valor em si, e a vida privada como uma vida de privação. Mas a generalidade da população sempre encarou a vida pública como um mero meio para ter uma vida privada melhor — com mais dinheiro, mais e melhores bens e serviços, mais conforto e diversão. Quando se encara a vida pública instrumentalmente, não se participa mais na vida pública quando a vida privada já devolve um nível adequado de satisfação. Afinal, não vamos ao médico excepto quando estamos doentes ou para prevenir a doença. Não damos valor intrínseco à medicina.

Pense-se bem: qual é o mal de ter instituições profissionalizadas que gerem a coisa pública, se a gerirem bem, justamente, de modo a gerar riqueza e bem-estar para todos, mas nas quais a generalidade da população não participa? Basta fazer esta pergunta para ver a raiz do desinteresse que as populações têm pela vida pública. Têm desinteresse precisamente porque não acreditam que a sua participação poderia fazê-los viver melhor — quer porque já vivem bem, quer porque acreditam que todos os políticos são incompetentes para gerir a coisa pública de modo a produzir mais riqueza e mais justiça.

É aqui que as excepções Neandertais deixam de parecer excepções e começam a parecer uma tendência da vida pública contemporânea. É um pacto entre os cidadãos e os governantes. Desde que os governantes não abusem do poder para benefícios pessoais ilegítimos e megalómanos, nem para perseguir pessoas fanaticamente, não precisam de fingir que estão interessados em alargar liberdades e imaginadas cidadanias — só precisam de criar condições para que haja riqueza, consumo, bem-estar económico, diversão, liberdade económica. O resto são abstracções sem interesse para a generalidade da população. Não se pode dizer mal do primeiro-ministro, nos jornais? Mas que interesse tem para a população em geral entrar nessa peixeirada de chamar nomes aos políticos em público, se os políticos forem profissionais competentes? Afinal, ninguém tem vontade de ir para os jornais chamar nomes ao presidente da Coca-Cola.

Por que razão os dissidentes chineses ou de Singapura ou dos Emiratos Árabes não encontram na generalidade da população o género de apoio social que Hugo Chávez encontra? Porque essas populações sabem que os seus governantes estão a criar riqueza a um ritmo alucinante, dando à população o que ela quer; que ganha ela em ter eleições livres, imprensa livre e todas as chatices, todo o barulho, que isso acarreta? Quem tem interesse nisso são exclusivamente os outros políticos, mas quando a população em geral está a ver o seu nível de vida a melhorar, não precisa dos políticos da oposição.

Eis outro indício. Folheie-se um jornal de referência de um qualquer país livre e democrático. Os jornais, recorde-se, são um bom espelho das preferências das pessoas, porque são inteiramente financiados pelas pessoas que os compram. Os jornais não são como instituições públicas que têm financiamento independentemente de a generalidade das pessoas gostar do que elas fazem. Muito bem, então olhe-se com atenção. Mais de dois terços de qualquer jornal de referência não são dedicados à vida pública, no sentido de vida política; são dedicados a trivialidades e brincadeiras infantis relacionadas com o entretenimento, estrelas de cinema e de futebol, modelos, etc. Mesmo a parte em que se fala de políticos, é muitas vezes com a mesma frivolidade infantil com que se fala de futebolistas, mas com menos respeito. E estamos a falar dos jornais de referência — que são, em qualquer país europeu ou norte-americano, os jornais com menos tiragens: os jornais ou revistas sensacionalistas têm tiragens muitíssimo superiores aos jornais de referência. O que nos diz tudo isto? Que a população em geral está muito interessada na vida política?

Parece-me chegada a hora de compreender este facto simples. Algumas elites estão interessadas na vida pública. Têm ideias sobre a organização social e para melhorar as instituições, que querem pôr em prática. Mas a generalidade da população tem apenas interesse em ter instituições sociais justas que produzam riqueza e bem-estar, mas não está minimamente interessada em participar nelas. Apenas quer que alguém competente faça isso. Tal como eu quero que o meu médico seja competente quando vou ao médico, mas não tenho interesse algum em estudar medicina.

Um interesse intenso pela vida política só faz sentido para a generalidade das pessoas quando o conforto da sua vida privada está em risco, ou quando têm a esperança de que uma mudança política terá resultados importantes para a qualidade da sua vida privada. A partir do momento em que o barco está no bom caminho, digamos assim, as pessoas desinteressam-se. E penso que se não fosse a retórica da cidadania a generalidade das pessoas assumiria o seu interesse meramente instrumental na política. A questão é: o que há de errado nessa atitude? Usando a metáfora da República de Platão, defender a democracia é defender que toda a gente num navio deve ir dar dicas ao capitão sobre a maneira de manobrar o navio. Platão argumentava que isto é uma tolice porque a generalidade das pessoas não sabe manobrar navios. O pensamento democrático fica horrorizado com isto e insiste na rotatividade política e na participação aristotélica de todos nas manobras, ainda que indirectamente, através do voto e da imprensa livre. Mas aparentemente Platão conhecia melhor a natureza humana; não se trata de impedir toda a gente de mandar bocas sobre as manobras do navio. Trata-se, ao invés, de a generalidade das pessoas não estar interessada nisso — desde que o capitão demonstre a sua competência.

Chegámos então ao fim da política? Teremos então no futuro não o conhecido jogo político mas apenas gestores competentes, como em Singapura? Talvez. Porque talvez seja isso que as pessoas realmente querem.

Vale a pena uma última palavra. Quando se pensa em restrições severas à democracia e à liberdade, pensa-se em presos políticos, perseguições, mortes, violência de estado. E isso ninguém quer. Mas não é disso que se trata agora. As novas restrições à liberdade e à democracia não estão ao serviço da tirania brutal e assassina; estão apenas ao serviço da estabilidade e da segurança que permitem a riqueza. As pessoas podem criticar o governo se quiserem, mas não fazer disso um desporto nacional — e se tiverem críticas realmente boas, acabam por ser chamadas pelo governo para as aplicar.

Será este o futuro político da humanidade? Não o modelo da democracia de gritaria, mas um modelo que não se reja por maiorias, nem eleições, nem partidos de oposição, nem gritarias ofensivas nos jornais, mas por competências de gestão económica arduamente demonstradas?

Desidério Murcho

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