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Crítica
9 de Janeiro de 2007   História da filosofia

Sigmund Freud

O rei vai nu, dizem eles
Ana Cristina Leonardo

O médico vienense diria que, ao recusarem a psicanálise, os críticos apenas resistem aos seus próprios fantasmas e recalcamentos. Mesmo assim, houve sempre quem gritasse “o rei vai nu”.

“Freud modificou, talvez de forma irreversível, a imagem que o homem tem de si mesmo. Comparado com isto, é de importância secundária que algumas das suas ideias válidas não tenham sido novas, que as suas concepções específicas sejam questionáveis e que os seus métodos terapêuticos sejam duvidosos” (L. L. Whyte, cit. por Frank Cioffi, “A Controvérsia Freudiana: O Que Está em Questão?”, in Freud, Conflito e Cultura, 2000, Zahar).

Se se tiver esta afirmação por justa, então, só nos restará concluir que tudo vai bem no melhor dos mundos: as insuficiências da psicanálise, a existirem, não abalam o essencial da teoria nem a sua importância como facto cultural. A tese de L. L. Whyte é, contudo, muito menos inócua do que parece. Primeiro, porque atribuir “importância secundária” aos senãos da psicanálise é, naturalmente, uma asserção polémica; depois, porque garantir que “Freud (…) modificou a imagem que o homem tem de si mesmo”, se para uns resta provar, para outros não passa de uma ideia feita. Acresce, como nota Frank Cioffi no artigo citado, que a referida modificação será sempre “de pouca serventia, se essa nova imagem não corresponder melhor a uma realidade que tenha existência independente”.

Ora, se há coisa que merece o acordo da maioria dos críticos é que, apesar da sua pretensão a cientista, a realidade nunca foi obstáculo para Freud. Neste ponto, acompanham-no alguns ilustres. Jean-Jacques Rousseau, o “bom selvagem”, arriscava com desenvoltura na introdução ao seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens: “Comecemos pois, por pôr de lado todos os factos, visto nada terem a ver com a questão”.

Ao contrário do que a vulgata psicanalítica pretende fazer crer, a contestação a Freud não assentou, essencialmente, no anti-semitismo ou no horror vitoriano ao sexo. Desde o início, foram muitos os que se ergueram contra as suas teorias, uns por razões científicas, outros invocando somente essa categoria tão desprezada por filósofos, mas que, se levada a sério, teria com certeza contribuído para evitar muitos desvarios históricos — o bom senso.

E terá sido exactamente o bom senso a mover um psicólogo contemporâneo de Freud, quando lhe fez notar o que considerava uma excessiva sexualização do mundo onírico. Dando como exemplo o seu próprio sonho recorrente — subir escadas —, onde não vislumbra nada de sexual, o incauto crítico não ficaria sem resposta. Em 1911 tem a honra de se ver incluído numa nota à nova edição de A Interpretação dos Sonhos: “Ficámos alerta com esta objecção e começámos a concentrar a nossa atenção no aparecimento de degraus, escadas e escadas de mão nos sonhos, e estávamos em breve em condições de mostrar que escadas (e coisas análogas) eram indiscutivelmente símbolos de copulação. É difícil não ver (…): nós chegamos ao cimo numa série de movimentos rítmicos e com crescente falta de ar e depois, com alguns saltos rápidos, podemos voltar a baixo. Deste modo, o padrão rítmico da copulação é reproduzido no acto de subir escadas”.

O filósofo vienense Heinrich Gomperz não apresentara nenhuma crítica. Pelo contrário. Impressionado com a teoria freudiana dos sonhos enquanto realizações disfarçadas de desejo, oferecera-se a Sigmund como cobaia. Ao fim de alguns meses, os resultados não podiam ser piores: “A experiência revelou-se um completo fracasso. Todas as coisas “terríveis” que ele sugeria que eu poderia ter escondido de mim próprio e “reprimido”, eu podia assegurar-lhe com honestidade que tinham estado sempre nítida e conscientemente presentes na minha mente”.

Dada a relutância de Freud em consentir ser posto em causa, facto que a maioria dos biógrafos considera um traço fundamental do seu carácter, percebe-se que o irreverente Karl Kraus (1874–1936), também ele judeu, tenha optado não pela argumentação mas pela ironia telegráfica: “A teoria antiga negava a sexualidade dos adultos. A moderna diz que os bebés têm prazer sexual enquanto defecam. A antiga era melhor, ao menos podia ser contraditada pelas partes envolvidas” (Thomas Szasz, Anti-Freud, Karl Kraus's Criticism of Psychoanalysis and Psychiatry, 1990, Syracuse University Press). Ou como, também de forma concisa, explicou o filósofo francês Gilles Deleuze: “O mecanismo de interpretação da psicanálise pode ser resumido ao seguinte: o que quer que se diga quer sempre dizer outra coisa”.

Na actualidade, entre os opositores mais firmes encontra-se Frederick C. Crews (ex-psicanalista, professor e crítico de literatura inglesa entretanto jubilado da Universidade da Califórnia, Berkeley), que não hesitou em chamar “charlatão” a Freud, acrescentando que “se um homem de ciência se comportasse hoje daquela maneira seria obviamente despedido, as bolsas de investigação ser-lhe-iam cortadas e viveria no opróbrio até ao final dos seus dias” (“Conversation with Frederick Crews”, disponível on-line). No livro que organizou, Unauthorized Freud: Doubters Confront a Legend (1998, Viking), onde se compilam artigos de uma vintena de autores, Crews resume sem peias o objectivo da obra: mostrar como a psicanálise começou por ser um erro para crescer até se tornar numa impostura.

Idêntica convicção terá estado na origem da revolta de numerosos intelectuais norte-americanos contra o carácter apologético da exposição dedicada a Freud, proposta pelo curador da Biblioteca do Congresso, Michael S. Roth, em Junho de 1995, e que deveria ser organizada pela IPA (International Psichoanalytical Association) e pelos Sigmund Freud Archives. Conseguindo fazer-se ouvir, os contestatários impuseram que as opiniões críticas também fossem incluídas na exposição, a qual acabaria por só abrir ao público no Outono de 1998, após ter chegado a ser cancelada.

Mais recentemente, a França também se incendiou a propósito dos 150 anos do nascimento de Freud. A pátria de Jacques Lacan (guru parisiense que, em Março de 1996, seria lapidado pelo professor Raymond Tallis na conceituada revista médica inglesa The Lancet: “Poucos psicanalistas são tão claramente psicopatas como Lacan, o mais eminente discípulo francês de Freud”) assistiu a uma guerra aberta, declarada nos “media” pela edição de Le Livre noir de la psychanalyse (2005, Éditions des Arènes, org. Catherine Meyer), a que se seguiu L’Anti-livre noir de la psychanalyse (2006, org. Jacques-Alain Miller, Éditions du Seuil).

Mas a crítica moderna a Freud não é de agora. Recua pelo menos à década de 70, quando destrona para sempre a biografia oficial do pai do complexo de Édipo assinada por Ernest Jones, Sigmund Freud: Life and Work, obra em três volumes publicada em 1953–57. As palavras de Jacques Bénesteau, inscritas em Mensonges Freudiens: Histoire d'une désinformation séculaire (2002, Mardaga), dão conta da apreciação generalizada dessa biografia original: “A formidável biografia de Jones é, com certeza, um delicado e muito britânico “understatement”, uma suavização diplomática das verdades, mas também uma refinada alteração dos factos históricos e propaganda ideológica sob estreita vigilância dos censores”, referindo-se Bénesteau ao facto de a própria Anna Freud ter supervisionado em pormenor o trabalho do discípulo inglês do pai.

Mais de três décadas antes de o livro deste psicólogo francês vir a público, já Henri Ellenberger chamava a atenção para os efeitos nefastos do endeusamento de Freud e dos primórdios da psicanálise. Em Discovery of the Unconscious: the History and Evolution of Dynamic Psychiatry (1970, Basic Books), afirmava que “a psicanálise tem crescido numa atmosfera de lenda, e por isso não é possível uma apreciação objectiva antes de os verdadeiros factos históricos serem apurados (…)”. Na opinião de Ellenberger, Freud era vendido ao público como “um herói solitário a lutar contra uma hoste de inimigos, sofrendo o ataque de “fundas e flechas da fortuna adversa”, mas triunfando no fim”. Este perfil redentor ocultava a “maior parte do contexto científico e cultural em que a psicanálise se desenvolveu”, atribuindo “a Freud muito do que pertence a Herbart, Fechner, Meynert, Benedikt e Janeta”, ignorando “a obra de exploradores anteriores do inconsciente, dos sonhos e da patologia sexual” (cit. por Richard Webster, Freud Estava Errado: Porquê?, 2002, Campo das Letras).

Entretanto, o edifício psicanalítico fora perigosamente minado em 1969 quando Paul Roazen, falecido no ano passado, escreveu Brother Animal: the Story of Freud and Tausk, uma leitura da relação entre o psicanalisado Victor Tausk e o movimento vienense que acaba tragicamente com o suicídio daquele em 1919, aos 38 anos. Além deste episódio, que os adeptos de Freud sempre tentaram branquear (em 1988, o freudiano K. R. Eissler publica O Suicídio de Victor Tausk, tentando pôr termo ao desagradável assunto), a obra abordava também, pela primeira vez, a análise de Anna Freud no divã do pai, o que daria origem a uma acesa desconfiança desta em relação a biógrafos e investigadores e, além disso, à sua decisão de embargar o acesso a certos documentos conservados na Biblioteca do Congresso, até ao século XXII.

Roazen volta à carga em 1975 com Freud and his Followers, no que é seguido por Frank Sulloway com Freud, Biologist of the Mind: Beyond the Psychoanalytic Legend, publicado quatro anos depois. Embora nenhum deles fosse um crítico radical — Sulloway, que entretanto endureceu a sua posição, terminava o seu livro afirmando que, “no fim de contas, Freud era mesmo um herói” —, a reacção às duas obras foi bastante azeda, e ambos os autores se viram, recentemente, rotulados de historiadores “revisionistas” num dicionário de psicanálise francês.

Entre um dos mais indignados da altura contava-se Peter Gay, o psicanalista autor de Freud: a Life of our Time (1988), biografia que se pretende de referência e se apresenta como “desapaixonada e de cariz académico”, mas que o cordato Webster não deixou de acusar ser “uma versão sofisticada e actualizada da biografia oficial de Jones, cuja atracção para os devotos da psicanálise é parecer um toque de clarim de fé e certeza no meio da dúvida, capaz de admitir a existência de muitas objecções à psicanálise sem sacrificar a obediência ao seu fundador ou renunciar à imagem dele como génio e herói científico”.

Toda a contestação epistemológica ao freudismo tinha tido em Karl Popper um aliado de peso. No célebre livro Conjecturas e Refutações (2003, Almedina), publicado pela primeira vez em 1962, a sua teoria da falsificabilidade como critério do conhecimento científico havia empurrado a psicanálise para o território da pseudociência. Mas foi com a edição integral das cartas de Freud ao médico e amigo Wilhelm Fliess, organizada por Jeffrey Masson, The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess, 1887–1904, (1985, Harvard University Press; existe tradução brasileira na Imago), que, verdadeiramente, a defesa da psicanálise se tornou mais difícil.

Freud destruíra as cartas que lhe haviam sido enviadas por Fliess e tentara, sem sucesso, que a acólita Marie Bonaparte fizesse o mesmo às que, por acaso, a princesa conseguira comprar em Paris em 1936. A viúva de Fliess vendera a um livreiro as cartas que Freud escrevera ao marido, com a condição expressa de não poderem ser adquiridas pelo destinatário. Quando Marie Bonaparte informa o mestre da compra das cartas, este não deixará de insistir com ela para que as destrua. Uma primeira edição seleccionada da correspondência, controlada por Anna Freud, é publicada nos anos 50 com o título As Origens da Psicanálise. O resto é depositado na Biblioteca do Congresso, em Washington, com a condição de ninguém o poder consultar até ao ano 2000. Entretanto, Jeffrey Masson, ele próprio amigo de Anna, tendo chegado a ser director de projectos do Sigmund Freud Archives, lê as cartas. Desiludido e estupefacto com o seu conteúdo, acabará por afastar-se do movimento psicanalítico, convencido da falta de coragem moral e intelectual do homem que até então venerara.

Masson publicou outros textos críticos, nomeadamente The Assault on Truth: Against Therapy e Final Analysis, mas nada do que escreveu teve um efeito tão devastador como a edição integral das cartas. Nelas expunham-se, agora sem ganga apologética, aspectos da personalidade e do percurso do antigo mestre que provavam, entre outros, que o intrépido conquistador do inconsciente defendera teorias “científicas” indefensáveis (mesmo para a época), inventara pacientes, consumira cocaína durante pelo menos 12 anos, e, além do mais, que fora Fliess (cujas ideias tentou mais tarde denegrir), e não Freud, o responsável pela ruptura entre os dois. Se o mito persiste, desde então nunca mais pôde ser o mesmo.

Fora do espaço estritamente académico, seriam as feministas a fazer a maior mossa. Indignadas com a incompreensão confessada de Freud pelo “continente negro” — o que não o coibiu de apresentar várias teorias sobre o “segundo sexo” —, saíram a público para refutar, normalmente com grande veemência, a freudiana “inveja do pénis”, reclamando o direito aos seus orgasmos clitorianos, vistos por Freud como sintoma de imaturidade. Afinal, era-lhes difícil levar a sério um homem que, perante uma situação de “ansiedade quanto a lançar-se de uma janela”, a interpretava como uma fantasia feminina inconsciente de “ir à janela para convidar um homem a subir, como fazem as prostitutas”. Uma história da carochinha em que só mesmo Fliess — o amigo de 17 anos que, em 1897, publicara As Relações entre o Nariz e os Órgãos Sexuais Femininos do Ponto de Vista Biológico — poderia acreditar.

Erro ou impostura?

“Nós libertamos a sexualidade através do nosso tratamento, não para que o homem possa ser a partir de agora dominado por ela, mas sim para tornar possível uma repressão — a rejeição dos instintos sob orientação de uma instância superior” — estas palavras de Freud poderiam servir para pulverizar o sex appeal que o persegue enquanto paladino de pulsões proibidas. Porque embora alguns dos discípulos, nomeadamente Reich, tenham cedido à tentação da transferência entre analista e paciente, um puritanismo antigo subjaz ao edifício da psicanálise. Esse será, porém, apenas um dos aspectos em que ele foi bombardeado pelos críticos.

Bendita cocaína

Em 1884, Freud toma conhecimento de dois artigos que acredita poderem subtrai-lo à obscuridade: um descreve os resultados espantosos da cocaína em soldados em stress, o outro relata efeitos idênticos no desmame dos morfinómanos. Após testar a nova droga em si próprio, Freud aconselha-a ao seu amigo Fleischl Marxow (dependente da morfina por razões médicas), e publica, poucas semanas depois, um artigo em defesa da “droga milagrosa”. Acontece que o tratamento prescrito apenas havia substituído um vício por outro. Freud considera o facto uma excepção e insiste em escrever que só os morfinómanos se tornam cocainómanos. Em 1886, porém, começam a ser conhecidos os efeitos nefastos da nova droga. A precipitação do pai da psicanálise é considerada uma irresponsabilidade, acabando por ser criticada publicamente pelos seus pares. Quando, em 1887, Freud apresenta uma lista de publicações para concorrer ao título de professor o “episódio da cocaína” é suprimido. Mais tarde, em A Interpretação dos Sonhos, responsabiliza “o infeliz amigo” pelo caso. E. M. Thornton analisará pormenorizadamente esta aventura pouco edificante em Freud and Cocaine (1983, Blond and Briggs), e o desejo de fama e o desprezo pela comprovação empírica serão para sempre sublinhados pelos críticos de Freud.

A histeria e a pobre da Anna O.

Em 1885, Freud parte para Paris para um estágio com o neurologista Charcot. Este, uma sumidade na época, ocupava-se, então, da histeria, doença que se veio a provar não existir, remetendo para coisas como a epilepsia ou lesões cerebrais causadas por acidentes. Apesar de, inicialmente, Charcot se inclinar para explicações orgânicas da histeria, o facto, entre outros, de a hipnose parecer um método eficaz de tratamento, leva-o a conjecturar causas psicológicas com origem num acontecimento traumático do passado. Freud abraça com entusiasmo esta possibilidade. Quando regressa a Viena e se cruza com Josef Breuer a psicanálise está prestes a nascer.

Breuer fora médico da jovem Anna O., a quem diagnosticara histeria. O que cativou Freud foi o facto de ele lhe dizer que ela parecia melhorar após o relato dos desvarios que a assaltavam; a própria chamava a essas sessões “cura pela fala”. Embora Breuer nunca tenha afirmado que isso anulava a patologia física, Freud convence-o a integrar Anna O. como exemplo em Estudos sobre a Histeria, obra assinada por ambos que faz a defesa da cura catártica pela palavra. Mas o problema com o caso Anna O. — reclamado pelos adeptos como o caso fundador da psicanálise —, é que não só se tratou de “um lamentável erro de diagnóstico como de um fracasso terapêutico completo” (Jacques Bénesteau, Mensonges Freudiens). Sabendo-se que Freud confessou mais tarde a Ernest Jones, que “a pobre doente não se saiu tão bem como poderia inferir-se do relato publicado por Breuer”, a pergunta de Richard Webster em Freud Estava Errado: Porquê? torna-se particularmente incómoda: “Por que razão Freud avalizou o relato do tratamento de Anna O. (…), se sabia que a informação de Breuer de a ter curado era falsa?” A pergunta continua a gerar pesadelos nos partidários do método.

Da teoria da sedução ao Édipo

A hipótese de que a origem da histeria residia em acontecimentos traumáticos do passado vai refinar-se, com os traumas a ganharem carácter estritamente sexual, ao mesmo tempo que a masturbação sobe à cena, para os casos masculinos: “A origem da neurastenia é a masturbação (…) Podemos observar no círculo dos nossos conhecidos que (pelo menos em populações urbanas) os indivíduos que foram seduzidos por mulheres quando eram jovens escaparam à neurastenia”, escreve Freud ao médico e amigo Wilhelm Fliess.

Guiado pela convicção grandiosa de que seria capaz de “abrir todos os segredos com uma única chave”, é por esta altura que Freud elabora a Teoria da Sedução, que diz ter construído a partir do estudo de 18 casos, o que será desmentido aquando da publicação, em 1985, das suas cartas enviadas a Fliess. No essencial, a teoria defende que a histeria no adulto remonta a um traumatismo sexual (real) na infância. Ao expô-la em público, acrescenta ter verificado que as convulsões histéricas cessavam mal o paciente tomava consciência do facto reprimido.

O autoconvencimento de Freud ficou registado para a posteridade. Sabe-se mesmo que, por pouco, não matava Emma Eckstein. Aliando às suas as teses estapafúrdias do amigo Fliess, Freud diagnosticara à paciente um “reflexo neurótico nasal” provocado por masturbação, acabando por fazê-la operar ao nariz por Fliess, que lhe deixa pelo menos meio metro de gaze na cavidade nasal. Perante as hemorragias, que não paravam, Freud teima em que não passam de um sintoma histérico, resultado do desejo inconsciente de Emma de o atrair para a beira da cama (o episódio está narrado pelo próprio numa carta a Fliess que Anna Freud censuraria na primeira edição da correspondência).

Para a classe médica a convicção dele não basta. Recebe a Teoria da Sedução com prudente cepticismo e fala de “conto de fadas” que precisa de ser testado. É então que Freud tem uma jogada de mestre. Já que a teoria da sedução se mostrava demasiado singela, Freud não hesita em substitui-la por uma outra — irrefutável. Afinal, os pacientes tinham-no enganado, nunca tendo sofrido agressões sexuais. Na realidade, a bola do desejo estava do lado deles, e era esse seu desejo reprimido que explicava agora as neuroses. Freud podia escusar-se à prova. Se o desejo edipiano universal (o desejo sexual que as crianças sentem pelos pais) fosse reconhecido, tanto melhor. Se não, a conclusão era que o paciente não conseguira ainda libertar o seu próprio recalcamento. Esta circularidade falaciosa continua, até hoje, a ser o grande quebra-cabeças dos admiradores de Freud. Muitos críticos chamaram-lhe embuste, não existindo uma única comprovação empírica do complexo de Édipo.

Webster é particularmente certeiro: “Sugerir que do acto de mamar resulta prazer sexual não é mais razoável que sugerir que da copulação resulta prazer de comer. Se eu der dois terços de uma cenoura para compensar o cavalo da minha carroça e der o outro terço ao meu cão pastor, não vou admitir que o abanar da cauda deste último significa satisfação equina”.

São Freud enfrenta o dragão dos sonhos

Freud propõe-se alargar o âmbito da teoria. É então que avança pelo campo dos sonhos e os define como “realizações de desejos inconscientes”. O inconsciente, que tantos reclamam para ele, era conhecido há muito, embora seja certo que com o Iluminismo a Razão subira ao pedestal. Mas o que Freud faz, ao autonomizar o inconsciente sob uma aparência científica, é esvaziá-lo, de facto, de muitas das subtilezas que anteriormente tinha contido. Sob a capa de um monismo biopsicológico, eram as antigas concepções dualistas do homem que regressavam: anjo/demónio, bom/malévolo, agora importadas para o interior da mente.

Os sonhos vistos como manifestações de desejos criam um problema a Freud do qual este se descarta com a mesma facilidade com que abandonara a Teoria da Sedução. Freud conta o caso de uma mulher que detestava passar férias com a sogra. Após a ter elucidado sobre a sua interpretação dos sonhos, a mulher sonha que viaja com a mãe do marido, facto que leva Freud a perguntar-se: “Não era isto a contradição mais evidente da minha teoria de que os sonhos são realizações de desejos?” Mas nada detém um sábio: “O sonho mostrava que eu estava enganado. Era desejo dela eu poder estar enganado, e o sonho apresentava esse desejo cumprido”.

O expediente argumentativo desta vez impressiona menos porque já conhecemos o truque. E embora acabe por introduzir certos matizes na teoria, Freud nunca abandona o essencial — e o essencial é poder, pelo sonho, aventurar-se pelo território do inconsciente que ele imaginava transbordando de desejos sexuais inconfessados.

Wittgenstein dá nitidamente conta desta obsessão freudiana pelo recalcamento da libido: “Freud faz com muita frequência o que poderíamos chamar uma interpretação sexual. Mas é interessante que entre todos os relatos de sonhos que ele apresenta não haja um único exemplo de sonho sexual directo. Porém, estes são tão frequentes como a chuva”. Orwell é mais demolidor: “Mas por que é que impulsos sexuais em que eu não tenho medo de pensar quando estou acordado terão de ganhar roupagens de algo diferente quando estou a dormir? E mais, para que serve o disfarce, se na prática é sempre penetrável?”

Os críticos notaram, também aqui, a incapacidade para compreender a complexidade da mente e comportamento humanos. A visão esquemática e redutora, que estenderá à sexualidade das crianças com o axioma das fases oral, anal e genital — que mais não são do que um decalque da descrição evolucionista, vigente na época, da anatomia sexual dos animais não-humanos, como mostrou Frank Sulloway —, está, com certeza, mais perto do século XIX do que do nosso século. É estranho que ainda hoje alguns continuem a achá-la revolucionária.

O sexo e o efeito aspirina

As críticas a Freud são muitas e de diversa ordem. Uns indignam-se com a teoria, outros com a prática sectária, outros com o branquear da história do movimento psicanalítico, outros, ainda, com o negócio. Cioran foi directo: “Freud é um profeta, um chefe de seita, um reformador “religioso”. Confundiu sempre a sua missão com a verdade, em detrimento desta última. Entre os homens de ciência não conseguimos imaginar um espírito menos objectivo. Havia nele algo de fanático, de homem da antiga Aliança”.

Os que o censuram concordam com Cioran, realçando o dogmatismo, o desprezo pelos factos (ou mesmo a invenção de factos — Bénesteau, por exemplo, resume os casos clínicos de Freud a seis, realçando-lhes o fracasso terapêutico), a crença na equação definitiva, no fundamento derradeiro. Se olharmos mais de perto, as explicações de Freud sobre a sexualidade enquanto razão de ser das neuroses parecem-se sem dúvida com as de alguém que, tendo uma dor de cabeça e verificando que ela passa depois de tomar uma aspirina, conclui que a falta da aspirina era a causa da dor de cabeça.

Webster, que tem do homem uma visão menos negativa do que muitos dos seus críticos, não tem ilusões: “Freud não fez quaisquer verdadeiras descobertas intelectuais. Ele foi o criador de uma pseudociência complexa que deve ser reconhecida como uma das grandes loucuras da civilização ocidental”. Crews escreve em Skeptical Engagements que “o freudismo tornou-se para mim o exemplo paradigmático de uma doutrina que obriga a uma lealdade irracional”. E certos autores, como Ernest Gellner, sublinham a ligação de Freud à doutrina cristã do pecado original, substituído nele pelo inconsciente, esse lugar obscuro de onde brota o complexo de Édipo, desejo inconfessado de matar o Pai.

O crítico Walter Kendrick terá colocado a questão para a qual nenhuma pirueta interpretativa de Freud encontraria resposta: “Como é que se pode matar o Pai que nos ensinou que a sua morte deve ser o nosso desejo?” (Voice Literary Supplement, Junho/1984). E insistiu em pôr o dedo na ferida: “certos autores abordam a psicanálise de diversos ângulos e fazem o seu trabalho de demolição de diversas maneiras, mas, à mistura com um desejo frenético de pulverizar Freud, partilham da crença ingénua que se pode varrer o século XX nesse processo. Nenhum deles tenta explicar por que um vetusto castelo de cartas como a psicanálise, pronto a desmoronar-se com qualquer aragem, foi arrematado por grosso por toda a cultura que ainda lá mora”.

Talvez a resposta a isto dada por Adolf Grünbaum seja aceitável, pelo menos para alguns: “Como frisou Henri Ellenberger, a prevalência de conceitos freudianos vulgarizados torna difícil determinar, de maneira fidedigna, até que ponto as verdadeiras hipóteses psicanalíticas se tornaram realmente influentes na nossa cultura como um todo” (“Um Século de Psicanálise”, in Freud: Conflito e Cultura). E remata: “Devemos também ter cuidado com a tese bizarra (…) de que a difundida influência das ideias freudianas na cultura ocidental avaliza a justeza comprobatória da empreitada psicanalítica e a validade das suas teorias. Porque a ampla influência cultural de Freud valida tanto os seus princípios como a hegemonia cultural cristã justifica a crença no nascimento virginal de Cristo ou na sua ressurreição”.

Ana Cristina Leonardo
Expresso (29 de Abril de 2006)
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