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28 de Junho de 2005   História da filosofia

Wilfrid Sellars

Jay Rosenberg
Tradução de Eduardo Coutinho Lourenço de Lima

Wilfrid Stalker Sellars (n. 1912, m. 1989) foi um pensador sintético e profundamente criativo, cuja obra, tanto como um filósofo sistemático quanto um editor influente, ajudou a estabelecer e moldar a agenda filosófica anglo-americana por mais de quatro décadas. Talvez Sellars seja mais conhecido pelo seu clássico ensaio de 1956, “Empirismo e a Filosofia da Mente”, uma crítica abrangente e sofisticada do “mito do dado”, que teve um grande papel na desconstrução do cartesianismo no pós-guerra, mas seu corpus publicado de três livros e mais de cem ensaios inclui numerosas contribuições originais para a ontologia, epistemologia e filosofias da ciência, linguagem e mente, bem como sensíveis estudos históricos e exegéticos.

1. Vida e Carreira de Sellars

1. Metafilosofia de Sellars

Embora Wilfrid Sellars seja mais conhecido por seu ensaio inovador “Empirismo e a Filosofia da Mente” [EPM] e sua crítica ao que neste chamou de “o mito do dado”, ele foi de fato um filósofo sistemático por excelência. “O objetivo da filosofia”, escreve, “é entender como as coisas, no sentido mais amplo possível do termo, se constituem no sentido mais amplo possível do termo” [PSIM, 37]. Esta imagem do filósofo como um generalista pensativo ocorre freqüentemente nas reflexões metafilosóficas de Sellars. Sua consideração mais explícita da tarefa central que confronta a filosofia contemporânea alinha-a firmemente com o projeto modernista de alcançar uma reaproximação entre nosso entendimento humanístico de nós mesmos como agentes racionais e livres, em casa entre sentidos e valores, e a imagem completamente “desencantada” do mundo sendo pintada por uma ciência natural cada vez mais abrangente. Sellars tematizou este contraste como um confronto de duas “imagens”: a “imagem manifesta” cujos objetos primários são pessoas, entes que podem conceber e se concebem a si mesmos como percipientes sensíveis, conhecedores cognitivos e agentes deliberativos; e a “imagem científica”, cujas entidades primárias são uma versão algo sofisticada de “átomos no vazio”. “A imagem científica”, escreve Sellars, “apresenta-se como uma imagem rival. De seu ponto de vista, a imagem manifesta sobre a qual ela [metodologicamente] repousa é uma semelhança “inadequada” mas útil pragmaticamente de uma realidade que primeiramente encontra sua semelhança adequada (em princípio) na imagem científica” [PSIM, 57]. Como Sellars observou, a meta da filosofia era transformar essa tensão entre nossa autocompreensão vivida e nosso entendimento explicativo do mundo duramente conseguido em uma única imagem “estereoscópica”, uma perspectiva sinóptica de pessoas-no-mundo. Muito de sua obra filosófica é dedicada a três momentos centrais desse empreendimento complexo: acomodar os conteúdos intencionais do pensamento e da linguagem, os conteúdos sensórios da percepção e da imaginação e a dimensão normativa do conhecimento e da conduta dentro de uma tal imagem estereoscópica — ao mesmo tempo mantendo resolutamente um realismo científico robusto, pois “na dimensão da descrição e da explicação do mundo, ciência é a medida de todas as coisas, do que é o que é, e do que não é o que não é” [EPM, 173].

2. Filosofia da ciência e epistemologia de Sellars

A interpretação de Sellars da epistemologia da ciência natural afastou-se decisivamente da opinião recebida, de acordo com a qual explicação foi identificada com derivação — questões singulares de fato empírico sendo explicadas por derivação de suas descrições a partir (“indutivamente” estabelecidas) de generalizações empíricas (junto de declarações apropriadas de condições iniciais), e essas “leis empíricas”, por sua vez, sendo explicadas por derivação delas a partir de postulados teóricos e regras de correspondência. Nessa perspectiva positivista recebida, teorias (p. ex., microteorias) explicam questões de fato empíricas apenas indiretamente, através da implicação de generalizações enquadradas (framed) numa linguagem-de-observação que as explica diretamente. Conseqüentemente, como Hempel observou em “O Dilema do Teórico”, tais teorias, emboram possam ser ajudas convenientes para cálculo e representação compacta, são em princípio completamente dispensáveis.

Sellars considerou esse “modelo de bolo-folheado” ou “imagem de níveis” de teorias como fundamentalmente mal orientado. Argumentou que não há estratos autônomos de correlativos empíricos a leis teóricas. As generalizações empíricas correspondentes a leis teóricas tornam-se salientes apenas de uma perspectiva teórica. Generalizações alcançadas autonomamente no nível de observação, embora confiáveis, não são leis da natureza, e conseqüentemente teorias não podem ter como tarefa explicar tais generalizações de nível inferior através da derivação delas. Antes, “teorias explicam leis ao explicarem por que os objetos do domínio em questão obedecem às leis que obedecem na extensão em que obedecem” (LT, 123).

[Ou seja], explicam por que objetos individuais de vários tipos e em várias circunstâncias no quadro de observação comportam-se dessas maneiras nas quais foi indutivamente estabelecido que se comportam. Grosso modo, é por um gás ser… uma nuvem de moléculas que se comportam de certas maneiras teoricamente definidas, que ele obedece à lei empírica de Boyle-Charles (LT, 121).

Na opinião de Sellars, relatos que postulam “entidades teóricas” não são meramente substitutos manuseáveis de segunda-classe de relatos mais complicados e desajeitados sobre entidades sobre as quais temos razões boas, i. e., observáveis, para acreditar que de fato existem. Entidades teóricas são, antes, aquelas entidades que autorizadamente acreditamos existir por razões boas e suficientemente teóricas. Entendidas dessa forma, teorias científicas “salvam as aparências” de forma explicativa precisamente por caracterizarem a realidade da qual as aparências são aparências.

Assim como Quine, Sellars foi profundamente influenciado pela obra de Rudolf Carnap. A sofisticada consideração de Sellars da natureza e importância do raciocínio teórico na ciência natural, entretanto, capacitou-o a desenvolver uma alternativa sistemática naturalística à crítica influente de Quine ao empirismo lógico carnapiano. Em particular, o contraste epistemológico entre dois tipos de generalizações empíricas — aqueles adotados em bases estritamente indutivas e aqueles que expressam princípios constitutivos de teorias postulantes adotados em bases amplamentes empíricas, i.e., bases explicativas — capacitou Sellars a distinguir entre três diferentes graus de “envolvimento observacional”: observações e asserções gerais individualmente validadas “indutivamente” por meio de apelos diretos a um suporte observacional, os pressupostos constitutivos de teorias postulantes holisticamente validadas por meio de apelos indiretos, explicativos, a um suporte observacional, e asserções puramente formais que expressam condições necessárias para a formulação de hipóteses científicas em geral. Conseqüentemente, onde Quine rejeitou a clássica dicotomia analítico-sintético kantiana imediatamente, Sellars argumentou que haveria duas distinções completamente diferentes entrelaçadas na simples dicotomia que Carnap herdou da tradição kantiana: a distinção (analítico2-sintético2) entre asserções lógicas e empíricas (questões-de-fato), e a distinção (analítico1-sintético1) entre asserções cuja revisão requer o abandono ou modificação do sistema de conceitos (teóricos), em cujos termos elas são enquadradas e asserções revisáveis com base em observações formuladas em termos de um sistema de conceitos (teóricos) que permanecem inteiramente fixados. Como Quine, então, Sellars se distanciou decisivamente do racionalismo kantiano, mas em direção a um empirismo kantiano que preservou um espaço lógico para uma teoria da significação semântica e as distinções correlativas entre verdades fatuais individuais e verdades que, embora pertencentes a sistemas teóricos eles próprios adotados sobre fundamentos amplamente empíricos (sintético2), fossem, relativamente a tal sistema, verdadeiras ex vi terminorum (analítico1):

RACIONALISMO KANTIANO

Fundamentado na experiência
(“a posteriori”, indução simples)
Não fundamentado nela
(“a priori”)
Sintético Analítico
Leis empíricas
(regularidades)
Aritmética, Geometria, Mecânica
(“sintético a priori”)
Lógica
“Nossa estrutura conceitual” (princípios inatos)

EMPIRISMO KANTIANO

Fundamentado na experiência
(Empírico)
Não fundamentado nela
Sintético2 Analítico2 (L-verdadeiro)
Sintético1 Analítico1
Observação, Simples Indução
(Geometria Operacional, Mecânica)
Postulação
(Geometria física, teorias científicas idealizantes, mecânica, micro-física)
Lógica, aritmética, análise matemática
(Geometria pura enquanto cálculo)
“Nosso quadro conceitual”
Categorias materiais
(empíricas)
Categorias formais
(ontológicas)

4. A Filosofia da Linguagem e da Mente de Sellars

Essencial ao naturalismo extremo de Sellars é uma explicação da significação semântica que não exija recurso a expressões irredutivelmente platonísticas ou mentalísticas. Conseqüentemente Sellars situa resolutamente a ordem conceitual normativa dentro da ordem causal e desenvolve uma interpretação naturalística dos modos de causalidade exercidos por regras lingüísticas centradas na noção de comportamento governado-por-padrão, i.e.:

comportamento que exibe um padrão, não por que é realizado pela intenção de que exiba esse padrão, mas porque a propensão a manifestar um comportamento do padrão foi reforçada seletivamente e a propensão a manifestar um comportamento que não se conforma a esse padrão, seletivamente extinta. (MFC, 423)

Um comportamento governado-por-padrão característico de uma espécie — p.ex. a dança das abelhas — pode surgir a partir de processos de seleção natural em uma escala de tempo evolucionária, mas, crucialmente, um comportamento governado-por-padrão também pode ser desenvolvido em “treinandos” individuais por um reforço seletivo deliberado da parte de outros indivíduos, os treinadores, agindo sob orientação de regras de criticismo lingüísticas. Em contraste com regras de ação lingüísticas — p. ex., “Ceteris paribus, deve-se (ou se pode) dizer tal e tal coisa, nas circunstâncias C”, que podem ser eficazes ao orientar a atividade lingüística somente na medida em que seus sujeitos já possuam os conceitos de “dizer tal e tal coisa”, “estar nas circunstâncias C”, e de fato estejam obedecendo a uma regra (i.e., fazendo algo porque é imposto ou permitido por uma regra) —, regras de criticismo são regras de dever-ser — p. ex. “Os sinos do relógio de Westminster devem tocar em um quarto de hora” (LTC, 95) — cujos sujeitos, embora seus desempenhos possam ser avaliados de acordo com tais regras, eles próprios não precisam de ter o conceito de uma regra nem, certamente, qualquer outro conceito. Assim um treinador pode ser interpretado como raciocinando da seguinte forma:

Um comportamento-padrão de tal e tal tipo deve ser exibido por treinandos, então nós, os treinadores, devemos fazer isto e aquilo, como provavelmente capaz de fazer com que ele seja exibido (MFC, 423).

E, em conseqüência das condutas dos treinadores sob orientação de tais regras de ação, o comportamento de um aprendiz da linguagem pode vir a se conformar com as regras relevantes de criticismo, sem que ele próprio as “assimile” em qualquer outro sentido. “Treinandos se conformam a regras de dever-ser porque os treinadores obedecem a regras de dever-fazer correspondentes” (MFC, 423).

Contra tal pano fundo, então, Sellars desenvolve uma explicação do significado como classificação funcional de acordo com a qual expressões semânticas primeiramente marcam contextos dentro dos quais “objetos lingüístico-naturais” estruturalmente distintos (p. ex., enunciações ou inscrições) são classificados em termos de seus papéis ou funções nas transições de entrada da linguagem (respostas lingüísticas a estímulos perceptivos), transições de saída da linguagem (antecedentes lingüístico-causais da conduta não-lingüística), e movimentos intralingüísticos (transições inferenciais de um representar lingüistico a outro). Em particular, “significa” é interpretado como uma forma especializada de cópula, forjada para contextos metalingüísticos, de acordo com a qual o lado direito da forma superficialmente relacional “___ significa…” é propriamente entendido como mencionando ou exibindo um item lingüístico.

Na perspectiva de Sellars, tais cópulas especiais e indicadores metalingüísticos inicialmente surgem em resposta à necessidade de abstrair de nossos esquemas domésticos de signos, a fim de classificar itens de diferentes linguagens tomando por base tais critérios funcionais. Nesse projeto, a citação costumeira está sujeita a uma ambigüidade sistemática com respeito aos critérios — estruturais (p. ex., geométricos, acústicos) ou funcionais — de acordo com os quais as instâncias (tokens) lingüísticas são classificáveis como pertencentes a este ou aquele tipo lingüístico. Em conformidade com isso, Sellars introduziu um dispositivo mais direto de dois estilos separados de sinais de citação, asteriscos e pontos, ligados respectivamente aos modos estrutural e funcional de ordenar e individuar itens lexicais. Ambos asteriscos e pontos são dispositivos ilustrativos, e portanto indexicais; porém, pontos o são duplamente, em certo sentido. Pois, enquanto asteriscos formam um nome comum que é verdadeiro de inscrições (estruturas empíricas) apropriadamente projetadas para serem isomórficas com respeito à instância exibida entre eles, pontos formam um nome comum verdadeiro de itens em qualquer linguagem que façam o papel ou façam a tarefa desempenhada na nossa linguagem pelas instâncias exibidas entre eles. Em termos desse aparato de notação, então, asserções semânticas como tais, por exemplo,

(1s) (Em alemão) “rot” significa vermelho
(2s) (Em alemão) “Schnee ist weiss” significa a neve é branca.

podem ser mais claramente expressas por

(1*) (Na comunidade lingüística alemã) *rot*s são .vermelho.s.
(2*) (Na comunidade lingüística alemã) *Schnee ist weiss*s são .neve é branca.s.

Uma vez que uma tal distinção entre classificação funcional e estrutural de itens lingüísticos representantes está à mão, é uma questão evidente estendê-la também para uma explicação de representações mentais, i. e., pensamentos. Diferentemente de Quine, Sellars nunca abandonou a noção clássica de pensamentos como episódios internos intencionais que têm um papel explicativo-causal frente a um comportamento público, paradigmaticamente lingüístico. Consistente com seu completo naturalismo, porém, correlativo ao seu “nominalismo lingüístico” ontológico, Sellas adotou uma forma de “nominalismo psicológico”, cujo leitmotif foi

…a negação da asserção, característica da tradição realista, de que uma “percepção” ou “consciência” de entidades abstratas seja o principal ingrediente mental de atos mentais e disposições (EAE, 445)

Ao invés disso, Sellars argumentou que a explicação apropriada da intencionalidade distintiva do pensamento também deve ser delineada em termos de formas e funções de itens lingüísticos naturais. A tese positiva correlativa ao nominalismo psicológico, conseqüentemente, é modelada por aquilo que Sellars veio a chamar de “behaviorismo verbal”.

De acordo com o BV [behaviorismo verbal], pensar “que-p” — em que isto significa “ocorrer a alguém ter o pensamento de que-p” — tem como sentindo primário [um evento de] dizer “p”; e um sentido secundário, no qual ele se refere a uma propensão imediata [disposicional] a curto prazo de dizer “p”. (MFC, 419)

As origens das formas maduras do behaviorismo verbal de Sellars jazem nas teses revolucionárias de seu ensaio clássico “Empirismo e a Filosofia da Mente”, e particularmente na sua história mítica de nossos ancesatrais Rylianos e do gênio Jones. A história se inicia in medias res com pessoas que dominam uma “linguagem ryliana”, um sistema expressivo sofisticado, incluindo operadores lógicos e condicionais subjuntivos, cujo vocabulário descritivo fundamental pertence a objetos públicos espaço-temporais. Consoante com a explicação Sellarsiana do significado lingüístico como classificação funcional, essa linguagem hipotética ryliana, embora deficiente de qualquer recurso para falar de episódios internos, pensamentos ou experiências, foi enriquecida pelos recursos fundamentais do discurso semântico — habilitando nossos ancestrais a dizer as enunciações de seus pares que elas significam isso ou aquilo, que elas mantêm várias relações lógicas umas com as outros, que elas são verdadeiras ou falsas, e assim por diante. Nesse meio eis que surge o gênio Jones.

“[Na] tentativa de explicar o fato de que seus colegas se comportam inteligentemente não apenas quando sua conduta é tecida com o fio de episódios verbais públicos… mas também quando nenhuma produção verbal detectável esteja presente, Jones desenvolve uma teoria de acordo com a qual enunciações públicas nada mais são do que a culminação de um processo que se inicia com certos episódios internos… [Seu] modelo para esses episódios que iniciam os eventos que culminam no comportamento verbal público é aquele do próprio comportamento verbal público. (EPM, 186)

Embora o uso primário de termos semânticos continue a ser a caracterização semântica de episódios verbais públicos, essa teoria de Jones transfere a aplicabilidade daquelas categorias semânticas para os episódios internos postulados, i.e., para pensamentos (ocorrentes). O objetivo do mito de Jones é sugerir que o status epistemológico de pensamentos (enquanto episódios internos) frente a francos desempenhos verbais públicos é mais utilmente entendido como análogo ao status epistemológico de, p.ex., moléculas frente ao comportamento publicamente observável de gases.

Episódios [de pensamentos] estão “em” animais que usam linguagem assim como colisões moleculares estão “em” gases, não como “fantasmas” estão em “máquinas” (EPM, 187)

Porém, diferentemente de moléculas, que são introduzidas na teoria cinética dos gazes como tendo um caráter empírico específico (representado pela legalidade postulada, essencialmente newtoniana, de suas interações dinâmicas), os episódios de pensamento, postulados por aquela teoria como estados secretos de pessoas, são introduzidos por uma analogia puramente funcional. O conceito de um pensamento que ocorre é aquele de um ator lógico-semântico causalmente mediador, cujo caráter empírico/ontológico determinado, e, desse modo, cujo espaço lógico para alguma forma de “teoria da identidade”, está até agora deixado em aberto.

[O] fato de que [pensamentos] não são introduzidos como entidades psicológicas não impede a possibilidade de que, num estádio metodológico posterior, eles possam, por assim dizer, “se mostrar” como sendo tais. Assim, há muitos que diriam que já é razoável supor que esses pensamentos devem ser “identificados” com eventos complexos no córtex cerebral… (EPM, 187-8)

Uma vez que, na explicação de Sellars, o conceito de um pensamento é fundamentalmente o conceito de um tipo funcional, nenhuma tensão ontológica seria gerada pela identificação, na imagem científica, de itens pertencentes àquele tipo funcional com, p.ex., estados e episódios do sistema nervoso central de um organismo. A concepção da imagem manifesta de pesssoas como pensadores, conclui Sellars, pode fundir-se gradualmente com a concepção da imagem científica de pessoas como organismos materiais complexos tendo uma estrutura fisiológica e neurológica determinada.

A idéia de que a intencionalidade do mental deve ser entendida em termos de transposições epistemologicamente teóricas de categorias semânticas da linguagem pública, elas mesmas interpretadas como modos de classificação funcional, deu a Sellars um lugar definitivo na filosofia analítica contemporâna da mente. Como diz Dennett,

Assim nasceu na filosofia da mente o funcionalismo contemporâneo, e as variedades de funcionalismo que temos visto subseqüentemente são de uma forma ou de outra habilitadas, e direta ou indiretamente inspiradas pelo que foi deixado em aberto na proposta inicial de Sellars… (MTE, 341)

A proposta de Sellars de que podemos iluminar o status epistêmico de conceitos mentais através de um apelo ao contraste entre discursos teóricos e não-teóricos faz sentido somente contra um pano-de-fundo de um outro elemento central de seu pensamento filosófico, sua crítica abrangente do “mito do dado”. A moldura filosófica do dado (givenness) assume historicamente muitos disfarces, incluindo não somente a idéia de que conhecimento empírico apóia-se em um fundamento, mas também e de forma crucial a suposição de que a “privacidade” do mental e o “acesso privilegiado” de alguém a seus próprios estados mentais são aspectos fundamentais da experiência, tanto lógica quanto epistemologicamente anteriores a todos os conceitos intersubjetivos pertencentes a episódios internos.

Contrariamente a isso, Sellars argumenta que aquilo que começa no caso de episódios internos como uma linguagem de uso puramente teórico pode adquirir um papel de relato em primeira-pessoa. Pode-se mostrar ser possível treinar pessoas, essencialmente através de um processo de condicionamento operante, a ter “acesso privilegiado” a alguns de seus episódios internos, ou seja, a responder diretamente e não-inferencialmente à ocorrência de um pensamento com outro (meta-) pensamento no sentido de que alguém o está pensando. É uma virtude especial desse aspecto da história jonesiana de Sellars que ela mostre como a intersubjetividade essencial da linguagem pode ser reconciliada com a “intimidade” dos episódios internos, i.e.,

…que ela nos ajuda a entender que conceitos pertencententes a tais episódios internos como pensamentos são primária e essencialmente intersubjetivos, tão intersubjetivos quanto o conceito de um pósitron, e que o papel descritivo desses conceitos [em primeira pessoa]… constitui uma dimensão de [seu] uso… que se fundamenta em e pressupõe esse status intersubjetivo (EPM, 189)

No coração do caso geral de Sellars contra o Mito do Dado está seu reconhecimento articulado do caráter irredutivelmente normativo do discurso epistêmico.

O ponto essencial é que ao caracterizar um episódio ou estado como de conhecimento, não estamos dando uma descrição empírica daquele episódio ou estado, estamos colocando-o no espaço lógico de razões, de justificar e de ser capaz de justificar o que se diz (EPM, 169)

Uma vez admitido que os sentidos por si não apreendem fatos, que todo conhecimento de que algo seja dessa ou daquela forma (toda “subsunção de particulares por universais”) pressupõe aprendizado, formação de conceito, e mesmo representação simbólica, segue-se que “… ao invés de passar a ter um conceito de algo porque notamos esse tipo de coisa, ter a habilidade de notar um tipo de coisa já é ter o conceito daquele tipo de coisa, e não poder explicá-lo” (EPM, 176)

Sellars segue Kant ao rejeitar a imagem cartesiana de um continuum sensório-cognitivo. A “de-dade” (of-ness) das sensações — p.ex., o ser uma sensação de um triângulo vermelho ou de uma dor aguda e lancinante — ele insiste, não é a “de-dade” (“sobre-dade”) (aboutness) intencional de pensamentos. A “crueza” do “sentimentos crus” esta antes em seu caráter não-conceitual (cf.IAMBP, 376). Conseqüentemente, enquanto suas opiniões epistemológicas a respeito de episódios sensórios acompanha seu tratamento da epistemologia de pensamentos ocorrentes, a explicação de Sellars da ontologia das sensações diverge dramaticamente de sua explicação funcionalista dos pensamentos.

Num episódio final do mito de Jones, as sensações são introduzidas como elementos de um relato explicativo da ocorrência de cognições perceptivas em várias circunstâncias, tendo determinados conteúdos semânticos.

… o herói… postula uma classe de episódios internos — teóricos — que ele chama, digamos, impressões, e que são os resultados finais do choque de objetos físicos e processos em várias partes do corpo… (EPM, 191)

Dessa vez, porém, o modelo para a teoria de Jones não é aquele de famílias funcionalmente individuadas de sentenças, mas, antes, “um domínio de “réplicas internas” que, quando realizadas em condições-padrão, compartilham as características perceptivas de suas fontes físicas” (EPM, 191). A idéia principal desse modelo é a ocorrência, “nos” percipientes de “replícas” per se, não de percepções de “replicas” (que injetaria erroneamente a intencionalidade do pensamento na explicação das impressões), e, embora as entidades desse modelo sejam particulares, as entidades introduzidas pela teoria não são particulares, mas, antes, estados de um sujeito percipiente. Assim, embora falar da “de-dade” das sensações, assim como da “de-dade” de pensamentos, seja, na opinião de Sellars, fundamentalmente classificatório, a classificação em questão é baseada não em uma analogia funcional (lógica, semântica), mas antes em analogias que, embora em um primeiro momento sejam extrínsecas e causais, por fim atribuem às sensações um conteúdo intrínseco determinado. O ponto específico do modelo é insistir que estados, p.ex., perceber vermelho-triangularmente ([red triangle]ly) (para salientar o status da “sensação” como um “nome verbal”), caracteristicamente realizado em percepientes normais em condições-padrão através da ação de objetos triangulares vermelhos sobre os olhos, podem desempenhar suas tarefas explanatórias em relação aos recebimentos perceptivos cognitivos (especialmente juízos perceptuais não-verídicos) apenas se eles são concebidos como se assemelhando ou diferindo de outros estados sensórios — p.ex., perceber verde triangularmente, perceber vermelho quadradamente, etc. — de maneira formalmente análoga àquela pela qual objetos do modelo de “réplica” — p.ex., “bolinhos” vermelhos e triangulares, verdes e triangulares e vermelhos e quadrados — são concebidos como semelhantes e diferentes um do outro.

Se esse fosse o fim da história ontológica de Sellars a respeito de sensações, os problemas já seriam suficientemente complicados. Mas Sellars continua a desenvolver essa consideração central numa variedade de diferentes direções, em conseqüência das quais sua completa teoria das sensações emerge como sendo um dos aspectos mais difíceis e controversos de sua filosofia.

A primeira complicação da teoria da sensação de Sellars resulta de sua convição de que, no caso de sensações, a teoria de Jones é interpretativa. Ela não introduz novos domínios de entidades, mas antes re-interpreta o status categorial/ontológico de conteúdos sensórios como estados de percipientes. O ponto crucial da teoria original de Jones é os próprios quanta de cor dos quais somos perceptivamente conscientes como existindo no espaço são de fato estados de pessoas-enquanto-percipientes. Já no interior da imagem manifesta, então, o status ontológico finalmente conferido aos sensoriais “qualia de conteúdo” é incompatível com sua instanciação no espaço físico.

A segunda complicação da teoria da sensação de Sellars surge da ulterior conclusão de que é esta concepção da imagem manifesta de conteúdos sensórios como estados de percipientes que deve finalmente ser sinopticamente “fundida” com a imagem científica e que o comprometimento dessa última com a idéia de que aqueles percipientes eles próprios são sistemas complexos de partículas micro-físicas constitui uma barreira para fazer isso de uma forma direta. Sellars conclui notoriamente que conteúdos sensórios podem ser sinopticamente integrados na imagem científica somente após eles e também os particulares micro-físicos correntemente fundamentais daquela imagem se submeterem ainda a uma outra transposição categorial na direção de uma ontologia categorialmente monística, cujas entidades fundamentais são todas “processos absolutos”. Sensações enquanto processos absolutos seriam então físicos, escreve ele,

… não somente no sentido fraco de não serem mentais (i.e., conceituais), pois lhes falta intencionalidade, mas no sentido mais rico de terem um papel causal genuíno no comportamento de organismos sensitivos. Eles seriam, como tenho usado os termos, físicos-1, mas não físicos-2. Não sendo epifenômenos, eles se conformariam a uma intuição metafísica básica: ser é fazer uma diferença (CL, 111,126)

5. Uma observação final

Apesar de longa, esta discussão somente começa a captar o escopo, profundidade e caráter sistemático das realizações filosóficas de Sellars. Muitos dos temas de sua obra simplesmente não foram mencionados — sua antecipação do externismo epistemológico e sua defesa de uma forte alternativa internista, sua penetrante análise da predicação e sua alternaliva nominalista correlativa à clássica ontologia categorial platonística, sua explicação sofisticada da indução com uma forma de raciocínio prático vindicativo, suas contribuições significativas para a teoria ética e a teoria da ação, suas interpretações magistrais da obra de muitas grandes figuras históricas da disciplina, não como peças acadêmicas de museu, mas sempre como participantes ativos numa contínua conversação filosófica. As bibiografias e fontes na Internet abaixo relacionadas apontarão o caminho tanto para uma mais abrangente quanto mais detalhada consideração da obra dessa figura filosófica gigantesca da era do pós-guerra.

Jay Rosenberg
Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2002 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Revisão da tradução de Paulo Margutti.

6. Bibliografia

Principais obras de Sellars

Livros

Ensaios selectos

Bibliografia secundária

Estudos críticos principais

Bibliografia suplementar

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ISSN 1749-8457