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Crítica
9 de Julho de 2015   Epistemologia

O problema da indução

John Hospers
Tradução de José Coelho

“Se todos os cães são mamíferos e todos os mamíferos são seres vivos, então todos os cães são criaturas vivas”. Isto é um argumento dedutivo: podemos deduzir logicamente a conclusão das premissas. Se as premissas são verdadeiras, a conclusão (logicamente) tem de ser verdadeira. Se todos os que estavam a bordo do navio morreram afogados e a Marisa estava a bordo do navio, então a Marisa morreu afogada. Isto não prova que a Marisa morreu afogada; ela pode não ter estado a bordo e talvez nem todos os que estavam a bordo morreram afogados. Sabemos apenas que se todos a bordo do navio morreram afogados e ela estava a bordo do navio, então ela morreu afogada.

Os argumentos indutivos não são assim. Os argumentos indutivos não são dedutivamente válidos e a conclusão não se segue logicamente das premissas. As premissas apenas fornecem indícios a favor da conclusão; tornam a conclusão mais provável mas não certa. Se todas as vezes que largaste uma pedra, ela caiu, consideras provável que caia também da próxima vez.

Podes dizer que isso é certo. Mas não é de forma alguma logicamente certo: “Caiu mil vezes, logo cairá da próxima vez”, não é um argumento logicamente válido. No entanto, se certos acontecimentos naturais, como pedras a cair, ocorreram milhares de vezes no passado, sem excepção, confiamos que acontecerá o mesmo da próxima vez. Consideramos o facto de ter acontecido sempre da mesma maneira no passado um indício de que vai continuar a ocorrer assim no futuro.

Contudo, o facto de algo ter ocorrido repetidamente no passado não é muitas vezes visto como um indício de que vai continuar a ocorrer no futuro.

  1. Brincaste no recreio da escola várias vezes por semana nos últimos cinco anos. Contudo, mesmo com doze anos não consideras provável que continues a fazê-lo nos cinco anos seguintes. Por que não? Porque vês que a maioria das crianças não o faz a partir de uma certa idade e que tu próprio começas a divertir-te de outras formas. O que consideras provável é que as crianças continuem a brincar no recreio durante mais alguns anos e depois, gradualmente, se interessem por outra coisa qualquer; tens para isto alguns indícios indutivos.
  2. No passado, as pessoas usavam animais para se deslocar. Se vivesses há um século, dirias que era provável que este continuasse a ser o meio de transporte principal? Talvez, se não visses alternativa — andar a cavalo é mais cómodo que caminhar e provavelmente continuará a sê-lo; mas se tivesses sabido de algumas invenções, como a bicicleta e o automóvel, dirias: “As invenções são mais rápidas e eficientes. Penso que provavelmente irão em larga medida substituir os cavalos e os camelos”. É mais provável que as pessoas continuem a fazer o que é mais fácil, do que a prenderem-se indefinidamente a uma prática.
  3. Se todos os presidentes dos Estados Unidos eleitos num ano terminado em zero tivessem morrido no exercício do cargo, considerarias isso um indício de que o próximo presidente eleito num ano terminado em zero vai morrer também no exercício do cargo? Não. Por que não? Não vês qualquer relação entre o acontecimento (morrer no exercício do cargo) e os números dos anos. Eventualmente dizes: “Foi uma coincidência — pode acontecer novamente, mas não é muito provável”. Se acontecer da próxima vez ficarás admirado.
  4. Uma pessoa de vinte anos diz que acordou vivo 20 x 365 noites e que, portanto, é altamente provável que acorde amanhã de manhã depois do seu sono nocturno. Mas então uma pessoa com noventa anos diz que tem ainda mais indícios a favor de que estará vivo amanhã: tem os indícios de 90 x 365 noites! Contudo, temos mais confiança em que a pessoa de vinte anos esteja viva amanhã do que em que a pessoa de noventa anos o esteja. Mas há certamente uma acumulação muito maior de indícios a favor da pessoa de noventa anos, não?

Por que estamos mais seguros no caso da pessoa de vinte anos? Acreditamos na indução, mas não na “indução por simples enumeração”. O maior número de anos não fornece por si só os indícios necessários. De facto, os indícios indutivos são em sentido contrário: morrem mais pessoas com noventa anos do que com vinte. Além do mais, sabemos alguma coisa sobre a deterioração das células e a incidência de doenças, e todos estes indícios favorecem a pessoa com vinte anos; apostaríamos nele em vez de na pessoa de noventa anos. As leis biológicas que temos favorecem os jovens e vigorosos.

Quando estamos perante uma lei da natureza, esperamos que continue a operar no futuro — ao contrário dos fenómenos históricos como o transporte com animais. Mas por que deveremos esperar que continuem a operar no futuro?

“Uma lei natureza é definida como aberta: se deixasse de operar no ano 2000, já não seria uma lei da natureza” Não há dúvida de que isto é verdadeiro — faz parte da forma como concebemos uma lei da natureza. Mas isso não prova que existam quaisquer uniformidades que se estendam ao futuro. Não podes definir algo de modo a que tenha que existir e não podes afirmar que a lei continuará a operar no futuro porque é assim que definimos “lei”. Podemos definir as palavras como quisermos, mas pode não existir na realidade algo que corresponda à nossa definição; talvez não existam leis da natureza do modo que nós concebemos. David Hume exprimiu esta ideia de forma dramática numa passagem famosa:

O pão que comi anteriormente alimentou-me; isto é, um corpo com certas qualidades sensíveis estava, naquele momento, dotado com certos poderes secretos. Mas segue-se daqui que outro pão terá de alimentar-me noutro momento e que qualidades semelhantes terão de ser sempre acompanhadas de poderes secretos semelhantes? A consequência não parece necessária. Pelo menos, temos de reconhecer que há aqui uma consequência extraída pela mente, que se deu um certo passo, um processo de pensamento e uma inferência que tem de ser explicada. Constatei que determinado objecto está sempre acompanhado de determinado efeito e prevejo que outros objectos aparentemente semelhantes também serão acompanhados por efeitos semelhantes. Admitirei, se quiserdes, que uma das proposições pode ser inferida da outra; na realidade, sei que é sempre inferida. Mas se insistirdes que a inferência é feita por intermédio de uma cadeia de raciocínios, desejo que façais esse raciocínio. A ligação entre estas proposições não é intuitiva. É necessário um meio que permita à mente extrair essa inferência, se pode de facto ser extraída por intermédio do raciocínio e do argumento. Que meio é esse tenho que confessar que ultrapassa a minha compreensão [...]

Que não existe aqui qualquer argumento demonstrativo parece evidente, uma vez que não implica qualquer contradição que o curso da natureza possa mudar e que um objecto, parecendo semelhante aos que experimentámos, possa ser acompanhado por efeitos diferentes ou contraditórios. Não posso eu claramente e distintamente conceber que um corpo, caindo das nuvens e que se assemelhe em tudo a neve, tenha, contudo, o sabor do sal ou a sensação do fogo? Há alguma proposição mais inteligível do que a que afirma que todas as árvores vão florescer em Dezembro e Janeiro e declinar em Maio e Junho? Ora, tudo o que é inteligível e pode ser concebido distintamente não implica contradição e não pode ser provado como falso por qualquer argumento demonstrativo ou raciocínio abstracto a priori.1

Alguém pode dizer: “De facto, não podemos deduzir validamente proposições sobre o futuro de proposições sobre o passado; isso seria uma dedução e nós não a temos neste caso. Mas os indícios aqui são indutivos: a indução dá-nos probabilidades, e não certezas, mas diz-nos que se as pedras sempre caíram há a probalidade, e não a certeza, de que cairão amanhã”. Mas isto, claro, é o que Hume põe em questão: a aceitabilidade dos argumentos indutivos. Dizer que há indícios indutivos de que a indução continuará a ser fiável é pressupor o que está em questão:

Dizeis que uma proposição [sobre o futuro] é uma inferência da outra [sobre o passado]; mas tendes de admitir que a inferência não é nem intuitiva nem demonstrativa. Então de que natureza é? Dizer que é experimental é assumir o que está em questão. Todas as inferências com base na experiência supõem, como seu fundamento, que o futuro se assemelhará ao passado [...] É impossível, portanto, que quaisquer argumentos baseados na experiência possam provar esta semelhança do passado com o futuro, uma vez que todos estes argumentos se fundam na suposição dessa semelhança. Admitamos que o curso das coisas tem sido até agora bastante regular, por si só, sem qualquer novo argumento ou inferência, isso não prova que no futuro o continuará a ser.2

E assim Hume lança-nos o desafio: como saímos deste impasse?

Podemos tentar sair enunciando um princípio geral, chamado por vezes o Princípio da Uniformidade da Natureza: “As leis da natureza serão no futuro como foram no passado”. Não nos estamos a referir a acontecimentos particulares ou a séries de acontecimentos particulares, como o facto de a moeda sair sempre caras, que poderiam mudar completamente sem ocorrer uma mudança das leis; estamos a referirmo-nos antes às próprias leis; e talvez devessemos dizer “pretensas leis”, uma vez que uma lei da natureza genuína por definição opera no futuro tal como no passado e no presente. Na posse deste princípio, podemos argumentar: “A lei X manteve-se no passado; logo, manter-se-á no futuro”. Este argumento é válido:

Certos tipos de eventos (instâncias de leis da natureza) que ocorreram regularmente no passado vão continuar a ocorrer regularmente no futuro.
Este tipo de evento ocorreu regularmente no passado.
Logo,
Este tipo de evento vai ocorrer regularmente no futuro.

Mas é claro que isto não serve: a premissa maior, o Princípio da Uniformidade da Natureza é aquilo que estamos a tentar estabelecer. Pressupô-la no processo de tentar prová-la é a falácia lógica denominada “petição de princípio”. Não te podes erguer sem ajuda.

Hume tenta explicar por que esperamos que as uniformidades que observámos no passado continuem no futuro em termos de costume e hábito. Quando alguém foi amigável ou hostil para connosco no passado, esperamos que aja outra vez da mesma maneira. Um cão que tenha sido maltratado pelo seu dono no passado, tenderá a agir com suspeição para com ele agora, mas se foi bem tratado, irá abanar a cauda e esperar que o comportamento amigável continue. Mas isto apenas nos dá uma explicação de por que nos comportamos desta forma: somos por natureza criaturas indutivas. Não fornece o que queremos: uma justificação para as nossas expectativas indutivas. (Não serve dizer “A justificação é que as nossas expectativas foram bem-sucedidas no passado”, porque uma vez mais não resolve a questão de como este facto nos habilita a fazer qualquer afirmação sobre o futuro.)

John Hospers
An Introduction to Philosophical Analysis (Routledge, Londres, 1997), pp. 122–125.

Notas

  1. David Hume, “Dúvidas Cépticas relativas às operações do entendimento”, Tratado da Natureza Humana (1736), Parte 2.
  2. Ibid., Parte 2.
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