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10 de Fevereiro de 1998   Filosofia da mente

Sair do provincianismo

Desidério Murcho
O Sentimento de Si
de António Damásio
Tradução de M. F. M revista pelo autor
Europa-América, 2000, 424 pp.

O último livro de António Damásio é já um enorme sucesso entre nós: numa semana venderam-se 10 mil exemplares, ultrapassando todas as expectativas. Isto é curioso porque não se trata de um livro acessível ao grande público — fazendo um cálculo livre podemos afirmar que haverá em Portugal na melhor das hipóteses uma centena de pessoas que terão a formação adequada para seguir parte substancial do Sentimento de Si. Penso que esta feliz corrida às livrarias se fica a dever não ao tema do livro, mas ao facto de Damásio ser um cientista reconhecido a nível mundial — coisa que em Portugal não é habitual.

O livro de António Damásio não poderia ter sido escrito se ele não tivesse abandonado Portugal. Ao ler o seu livro é visível a completa integração de Damásio na comunidade científica internacional; Damásio discute, de igual para igual, as grandes ideias que se discutem a nível mundial. Isto jamais aconteceria se ele tivesse permanecido em Portugal, onde o provincianismo e o isolamento persistem, incólumes, apesar do esforço que diversos governos têm feito em contrário e graças a uma academia receosa da internacionalização.

O Sentimento de Si compõe-se de 11 capítulos, seguidos de um apêndice que inclui um glossário de termos problemáticos e vários esclarecimentos adicionais. Os 11 capítulos distribuem-se por 4 partes: uma introdução (composta unicamente pelo primeiro capítulo, que apresenta um sumário alargado da obra), 3 capítulos preliminarmente dedicados ao problema do sentimento e do conhecimento e das relações entre ambos, 4 capítulos que explicam “a biologia do conhecimento” (constituindo estes capítulos os mais exigentes da obra), apresentando uma teoria científica da consciência nuclear e alargada e, finalmente, 3 capítulos dedicados à relação entre conhecimento, sentimento e consciência.

Segundo Damásio, a consciência é um fenómeno biológico e natural, que emerge nos seres vivos com um certo grau de complexidade. Esta ideia não é nova. O que é novo é o facto de Damásio apresentar um desenvolvimento pormenorizado desta ideia, por um lado, e o facto de esse desenvolvimento estar solidamente ancorado em dados experimentais, sendo as suas diversas especulações eminentemente científicas, e não filosóficas, no sentido de serem susceptíveis de serem empiricamente testadas.

Do ponto de vista apresentado por Damásio, a consciência é o resultado da necessidade de regulação biológica que qualquer organismo tem. O que há de espantoso em qualquer organismo é o facto de os seus estados internos não apresentarem grandes variações: se os estados internos de um organismo ultrapassarem certos valores muito limitados, o organismo morre. Em contraste com esta constância interna está a inconstância e imensa variabilidade do meio ambiente. Em consequência, os organismos têm de manter formas de regulação interna muito precisas, em conexão com a informação recebida do exterior. Simplificando um pouco podemos dizer que a consciência (quer a alargada quer a nuclear) nasce da necessidade de optimizar o processo de regulação interna.

Um organismo não pode ter apenas uma imagem do que acontece no exterior e do que acontece no interior; de algum modo, tem de saber que o interior é o seu interior, é o interior de si mesmo, do organismo que está a representar o mundo exterior e interior. O eu autobiográfico, aquilo que nos permite reconhecermo-nos como nós próprios quando olhamos para o nosso passado, é uma consequência da imagem constantemente actualizada que o organismo tem de si mesmo. Em última análise, a identidade do eu resulta da identidade do corpo, do mesmo modo que a própria consciência resulta da necessidade de regulação biológica do corpo.

A hipótese religiosa de uma alma imortal fica assim praticamente refutada: seja o que for que tal coisa seja, não será certamente o tipo de consciência que nós temos, nem terá o tipo de identidade que nós temos. Se fosse possível “tirar a alma” de um corpo humano, perder-se-ia a consciência e a identidade dessa alma: a ideia de uma alma sem um suporte biológico é tão absurda como a ideia de um fogo sem carburante e só o erro categorial denunciado por Ryle nos pode fazer conceber a alma humana como uma coisa que contingentemente habita um corpo, quando na verdade é um processo.

A obra de Damásio é profunda, inteligente e estimulante. Faz-nos compreender como o caminho a seguir é o da integração da consciência e do eu no mundo natural, de onde Platão o retirou há mais de 2500 anos. E faz-nos perceber, maravilhados, como a ciência pode ser mais espiritual do que qualquer religião. Uma leitura obrigatória.

Desidério Murcho
O Independente (Junho de 2000).
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ISSN 1749-8457