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Crítica
18 de Fevereiro de 2017   Filosofia política

Harrison Bergeron

Kurt Vonnegut
Tradução de Desidério Murcho

Era o ano 2081, e toda a gente era finalmente igual. Não apenas perante Deus e a lei. Igual em todos os aspectos. Ninguém era mais inteligente. Ninguém era mais bem parecido. Ninguém era mais forte ou rápido. Toda esta igualdade era devida às 211.ª, 212.ª e 213.ª emendas constitucionais, e à vigilância incessante dos agentes da Direcção-Geral Incapacitante dos Estados Unidos.

Algumas coisas na vida ainda não corriam perfeitamente bem, contudo. Abril, por exemplo, continuava a fazer toda a gente ficar doida porque não era ainda Primavera. E foi nesse mês húmido que os homens da DGI levaram Harrison, o filho de catorze anos de George e Hazel Bergeron.

Foi certamente trágico, mas George e Hazel não conseguiam pensar muito sobre isso. Hazel tinha uma inteligência perfeitamente mediana, o que significava que era incapaz de pensar fosse no que fosse excepto em esguichos de curta duração. E George, apesar de ter uma inteligência muito acima do normal, tinha um pequeno rádio incapacitante no ouvido. Era obrigado por lei a usá-lo continuamente. Estava sintonizado numa emissora do governo. A cerca de cada vinte segundos a emissora enviava um ruído dilacerante para impedir que o cérebro de pessoas como George lhes dessem uma vantagem desleal.

George e Hazel estavam a ver televisão. Havia lágrimas no rosto de Hazel, mas ela esquecera de momento a sua razão de ser.

No ecrã da televisão via-se bailarinas.

Na cabeça de George soou uma campainha. Os seus pensamentos fugiram em pânico, como ladrões ao ouvir um alarme contra roubos.

— Foi uma dança mesmo muito bonita, a que elas acabaram de fazer — disse Hazel.

— Huh? — disse George.

— Aquela dança… foi bonita — disse Hazel.

— Sim — disse George. Tentou pensar um pouco sobre as bailarinas. Não eram na verdade muito boas; pelo menos, não eram melhores do que qualquer outra pessoa. Carregavam pesos e sacos cheios de chumbinhos, e tinham os rostos tapados para que ao ver um gesto livre e gracioso ou um rosto bonito ninguém se sentisse um lixo completo. George estava a considerar a noção vaga de que talvez as dançarinas não devessem ser incapacitadas. Porém, não foi muito longe nessa direcção porque logo outro ruído no rádio do seu ouvido lhe dispersou os pensamentos.

George fez uma careta. O mesmo fizeram duas das oito bailarinas.

Hazel viu-o fazer a careta. Porque ela própria não tinha uma incapacidade mental, teve de lhe perguntar como foi o último som.

— Parecia uma garrafa de leite a ser despedaçada com um martelo — disse George.

— Penso que seria muito interessante, ouvir todos esses sons — disse Hazel, um pouco invejosa. — Todas essas coisas que eles inventam.

— Hum — disse George.

— Mas se eu fosse a Directora-Geral Incapacitante, sabes o que fazia? — Disse Hazel. Na verdade, Hazel era muito parecida à Directora-Geral, uma mulher chamada Diana Moon Glampers. — Se eu fosse a Diana Moon Glampers, — disse Hazel — aos Domingos seria sinos… só sinos. Em nome da religião, mais ou menos.

— Eu conseguiria pensar, se fosse só sinos — disse George.

— Bem… talvez se fosse mesmo muito alto? — Disse Hazel. — Acho que eu seria uma boa Directora-Geral Incapacitante.

— Tão boa quanto qualquer outra pessoa — disse George.

— Quem sabe melhor do que eu o que é normal? — disse Hazel.

— Certo — disse George. Começou a pensar vagamente em Harrison, o seu filho anormal que estava agora na prisão, mas uma salva imensa de canhão que lhe entrou na cabeça logo o fez parar.

— Nossa senhora! — Disse Hazel — Esse foi fora do baralho, não foi?

Foi de tal modo fora do baralho que George ficou branco e a tremer, com lágrimas nos olhos avermelhados. Duas das oito bailarinas caíram no chão do estúdio, com as mãos nas têmporas.

— De repente pareces tão cansado — disse Hazel. — Por que não te estendes no sofá, para poderes pôr a tua bolsa incapacitante nas almofadas, querido? — Hazel referia-se aos vinte e um quilos de chumbinho, que, numa bolsa de lona, pendiam do pescoço de George. — Descansa por uns momentos da bolsa — disse. — Não me importo que não sejas igual a mim por alguns instantes.

George tomou o peso da bolsa nas suas mãos.

— Não me importo com isto — disse. — Já nem noto. Faz parte de mim.

— Tens andado tão cansado ultimamente… como se estivesses gasto — disse Hazel. — Se houvesse maneira de fazer um furo pequenino no fundo da bolsa, só para tirar alguns chumbinhos! Só uns poucos.

— Dois anos de cadeia e dois mil dólares de multa por cada chumbinho que eu tirar — disse George. — Não me parece uma pechincha.

— Se pudesses tirar só uns poucos quando chegas a casa do trabalho — disse Hazel. — Quer dizer… aqui não competes com ninguém. Ficas sentado o dia inteiro.

— Se eu tentasse safar-me com isso — disse George, — outras pessoas fariam o mesmo… e logo ficaríamos de novo na idade das trevas, todos competindo com todos. Não gostarias disso, pois não?

— Seria odioso — disse Hazel.

— Aí tens — disse George. — Quando as pessoas começam a burlar as leis, o que pensas tu que acontece à sociedade?

Se Hazel não conseguisse responder, também George seria incapaz de fazê-lo. Na sua cabeça, disparara uma sirene.

— Calculo que seria o fim de tudo — disse Hazel.

— O fim do quê? — disse George sem qualquer expressão.

— Da sociedade — disse Hazel algo insegura. — Não foi isso que acabaste de dizer?

— Sabe-se lá — disse George.

O programa de televisão foi subitamente interrompido para transmitir um boletim noticioso. A princípio não era claro qual era o tema do boletim porque o locutor, como todos os locutores, era gago. Levou meio minuto para, num estado de grande excitação, tentar dizer “Senhoras e senhores…”

Acabou por desistir, e deu o boletim a ler a uma bailarina.

— Não faz mal — disse Hazel do locutor, — o que conta é ter tentado. É isso que conta. Tentou fazer o melhor que podia com o que Deus lhe deu. Deviam dar-lhe um bom aumento por tentar com tanto afinco.

— Senhoras e senhores — disse a bailarina, lendo o boletim. Devia ser muito bonita porque tinha uma máscara hedionda. E era fácil ver que era a dançarina mais forte e graciosa, pois as suas bolsas incapacitantes eram enormes, como as dos homens de noventa quilos.

E teve de pedir desculpa de imediato pela sua voz, pois era uma voz muito desleal numa mulher. Era uma melodia calorosa, luminosa e intemporal.

— Peço desculpa… — disse, e começou de novo, fazendo agora uma voz completamente não-competitiva.

— Harrison Bergeron, de catorze anos — disse, num grasnado atordoado —, fugiu da prisão, onde estava detido por suspeita de conspiração para derrubar o governo. É um génio e um atleta, e é sub-incapacitado. É extremamente perigoso.

Uma fotografia de Harrison Bergeron tirada pela polícia apareceu no ecrã — de cabeça para baixo, depois de lado, de cabeça para baixo de novo, até ficar bem. A fotografia mostrava Harrison de pé contra um fundo que marcava a altura em metros e centímetros. Media exactamente dois metros e treze centímetros.

O resto da aparência de Harrison era um carnaval com pesos pesados. Jamais alguém usara incapacitantes mais pesados. Mal os homens da DGI pensavam em mais embaraços, já ele os ultrapassara. Em vez de ter um pequeno rádio sobre o ouvido como incapacitante mental, usava um par imenso de auscultadores — e óculos com lentes espessas e onduladas. Os óculos pretendiam não apenas torná-lo quase cego, mas também provocar-lhe dores de cabeça dilacerantes.

Pedaços de metal pendiam dele por todo o lado. Era normal haver uma certa simetria, uma arrumação militar nos incapacitantes receitados às pessoas fortes, mas Harrison parecia um ferro-velho ambulante. Nessa luta que é a vida, Harrison lutava com centro e trinta quilos.

E para desequilibrar a sua boa aparência os homens da DGI exigiam-lhe que usasse sempre um nariz vermelho de palhaço, que nunca deixasse crescer as sobrancelhas e que cobrisse aleatoriamente alguns dos seus dentes brancos com coroas pretas.

— Se avistar este rapaz — disse a bailarina — não tente fazê-lo ver a razão. Repito: não tente fazê-lo ver a razão.

Ouviu-se o barulho de uma porta a ser arrancada das dobradiças.

Gritos e uivos de consternação emergiram da televisão. A fotografia de Harrison Bergeron no ecrã saltou uma vez e outra, como se estivesse dançando ao ritmo de um terramoto.

George Bergeron identificou correctamente o terramoto, o que seria de esperar — pois muitas foram as vezes que a sua própria casa dançara ao mesmo ritmo de destruição.

— Meu Deus — disse George. — Deve ser o Harrison!

O reconhecimento foi instantaneamente eliminado da sua consciência pelo som de uma colisão de automóveis na sua cabeça.

Quando George pôde abrir de novo os olhos, a fotografia de Harrison desaparecera. Um Harrison vivo e pulsante enchia o ecrã.

Com um ruído de metais e uma aparência apalhaçada, Harrison ficou no centro do estúdio. Na sua mão estava ainda a maçaneta da porta demolida do estúdio. As bailarinas, técnicos, músicos e locutores agacharam-se, à espera de morrer.

— Eu sou o Imperador! — gritou Harrison. — Estão a ouvir? Eu sou o Imperador! Toda a gente tem de fazer sem hesitar o que eu disser! — Bateu no chão com o pé e o estúdio tremeu.

— Aqui mesmo — gritou —, apesar de incapacitado, estropiado e adoecido… sou um governante maior do que qualquer outro homem que alguma vez tenha vivido! Agora vejam no que posso tornar-me!

Harrison arrancou as amarras dos seus dispositivos incapacitantes como se fossem feitas de papel molhado, despedaçou amarras feitas para suportar duas toneladas.

Os seus dispositivos incapacitantes de ferro caíram com estrondo.

Harrison introduziu os polegares sob a barra do cadeado que segurava o dispositivo montado na sua cabeça. A barra quebrou-se como se fosse um aipo. Harrison desfez os auscultadores e os óculos contra a parede.

Quando tirou o nariz de palhaço revelou um homem que teria impressionado Thor, o deus da trovoada.

— Vou agora escolher a minha Imperatriz! — disse, descendo o olhar para as pessoas agachadas aos seus pés. — A primeira mulher que se atrever a erguer-se ganha um marido e um trono!

Passou-se um momento, e então uma bailarina ergueu-se, trémula como um salgueiro.

Harrison arrancou-lhe o incapacitante mental do ouvido e rebentou-lhe os incapacitantes físicos com uma delicadeza maravilhosa. Por último, tirou-lhe a máscara.

Era indescritivelmente bonita.

— Agora — disse Harrison, tomando-lhe a mão — vamos mostrar às pessoas o sentido da palavra dança? Música! — ordenou.

Os músicos voltaram a fugir para as suas cadeiras e Harrison tirou-lhes também os incapacitantes.

— Toquem o melhor que souberem — disse-lhes — e farei de vocês barões e duques e condes.

A música começou. De início, era normal — barata, tonta, falsa. Porém, Harrison arrancou dois músicos das suas cadeiras e usou-os como batutas enquanto cantava a música como ele queria. Empurrou-os então de volta às suas cadeiras.

A música recomeçou e era agora muito melhor.

Harrison e a sua Imperatriz limitaram-se a escutar a música por uns momentos — escutavam com um ar grave, como se estivessem sincronizando os seus corações com a música.

Transferiram então o peso para os dedos.

Harrison pôs as mãos enormes na minúscula cintura da rapariga, deixando-a sentir a impressão de ausência de peso que em breve seria sua.

E foi então, numa explosão de alegria e graça, que se elevaram no ar!

Não foram apenas as leis do país que foram abandonadas; também a lei da gravidade e as leis do movimento o foram.

Eles rodavam, redemoinhavam, giravam, davam piruetas, saltavam no ar, baloiçavam e revolviam.

Saltavam como veados na Lua.

O estúdio tinha nove metros de pé, mas a cada salto os dançarinos chegavam mais perto do tecto.

Tornou-se óbvio que queriam alcançá-lo.

E fizeram-no.

Depois, neutralizando a gravidade com amor e uma vontade pura, ficaram suspensos no ar a alguns centímetros do tecto, e beijaram-se durante muito, muito tempo.

Foi aí que Diana Moon Glampers, a Directora-Geral Incapacitante, entrou no estúdio com uma caçadeira de dois canos de calibre doze. Disparou duas vezes, e o Imperador e a Imperatriz morreram antes de atingir o chão.

Diana Moon Glampers carregou de novo a arma. Apontou-a aos músicos e disse-lhes que tinham dez segundos para voltar a pôr os seus incapacitantes.

Foi então que a televisão da família Bergeron parou de funcionar.

Hazel voltou-se para fazer um comentário a George acerca da interrupção. Mas ele tinha ido à cozinha buscar uma lata de cerveja.

George voltou com a cerveja, e fez uma pausa quando um sinal incapacitante o fez estremecer. Depois sentou-se de novo.

— Estiveste chorando? — perguntou a Hazel.

— Sim — disse ela.

— Porquê?

— Já não me lembro — respondeu ela. — Qualquer coisa muito triste na televisão.

— O que era?

— Está tudo um pouco confuso na minha cabeça — disse Hazel.

— Esquece as coisas tristes — disse George.

— É o que eu faço — disse Hazel.

— Assim é que é — disse George. Fez uma careta. Na sua cabeça soou um martelo pneumático.

— Bolas… dá para ver que essa foi fora do baralho — disse Hazel.

— Bem podes dizê-lo — disse George.

— Bolas — disse Hazel — dá para ver que essa foi fora do baralho.

Kurt Vonnegut
Welcome to the Monkey House (Rosetta Books, 2014). Conto originalmente publicado em 1961.
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ISSN 1749-8457