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10 de Fevereiro de 2001   Filosofia política

Contra o fanatismo

André Barata
Tratado sobre a Tolerância
de Voltaire
Tradução de José M. Justo
Antígona, 1999, 222 pp.

A 10 de Março de 1762, na cidade de Toulose, um homem é torturado, supliciado na roda até à morte para, finalmente, o seu cadáver ser lançado ao fogo. Assim se cumpria a condenação sentenciada, no dia anterior, pelo Parlamenlo local. Supostamente, fazia-se justiça contra um monstro que enforcara o próprio filho, jovem mártir que apenas pretendera converter-se ao catolicismo numa terra de católicos, contra a vontade de um pai calvinista. O assassínio, a ter de facto ocorrido, revelava-se ainda mais hediondo, pois não poderia ter sucedido sem o conluio da mãe, de um dos irmãos e de um amigo da vítima.

Infelizmente, este caso não difere de muitos outros, nem sequer pelo facto de três anos mais tarde a França inteira ter reconhecido a inocência do condenado, de nome Jean Calas, homem trabalhador, negociante, respeitado pela comunidade, pai de seis filhos, um dos quais aliás já era católico antes da morte do irmão. O que se tornou digno de registo não foi tanto o erro da justiça, nem sequer o horror da prática da tortura, mas aquilo que realmente motivou a condenação de um homem inocente: a intolerância religiosa. Doutro modo, sem que a obstinação e o fanatismo de alguns não traduzisse, sob a capa do fazer-se justiça, a mais bárbara perseguição religiosa, o “affaire” Jean Calas não representaria, ainda hoje, um marco na História de França. E para isso contribuiu decisivamente Voltaire, tomando a seu cargo a defesa da família Calas e batalhando por ela numa instância não judicial: a opinião pública.

Transformando este caso numa autêntica causa pública, Voltaire escreve em Dezembro de 1763, um ano após a morte de Jean Calas, o “Tratado sobre a Tolerância”. Expõe aí as inconsistências do processo judicial e a brutalidade com que se chegou ao fatídico dia do suplício. Segundo Voltaire, ninguém ficaria indiferente “quando o velho, agonizando na roda, tomou Deus por testemunha da sua inocência e lhe pediu perdão para os juízes”. Nem sequer os próprios juízes, que, perante morte tão pungente, foram incapazes de aplicá-la aos restantes autores do crime. Contraditoriamente, ilibaram Madame Calas e o seu filho Pierre, como se assim não devolvessem, à luz da consciência, a inocência ao pai. Para que não restassem dúvidas sob a real natureza do crime de Jean Calas e da sua família, os três filhos protestantes foram retirados à mãe e enclausurados em conventos católicos, Pierre foi mesmo ameaçado com a mesma morte que coubera ao pai se não abjurasse.

O erro de justiça era óbvio, mas igualmente óbvio era reconhecer que o erro não resultara de negligência ou de precipitação, mas sim de praticar, agora que havia uma oportunidade, a intolerância religiosa. Mesmo o calendário convinha — aproximava-se o dia, escreve Voltaire, “desses singulares festejos que as gentes de Toulouse celebram todos os anos em memória de um massacre de quatro mil huguenotes; e 1762 era o ano de mais um centenário”.

Neste quadro, o insurgimento do “philosophe” vai muito além das circunstâncias que envolveram o caso Calas. Lendo o “Tratado” assiste-se ao julgamento das instituições cristãs, mas em especial da Igreja Católica, pelo lado da acusação. O crime reside na intolerância e a prova percorre toda a História da Cristandade.

No seu “Dicionário Filosófico”, Voltaire escreverá palavras duras como as que se seguem: “De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens”. Que seja “sem dúvida” uma coisa ou outra é discutível, mas importa esclarecer que o anticlericalismo de Voltaire em momento algum visa o texto bíblico. Pelo contrário, não são poucas as vezes que versículos de ambos os Testamentos são citados em prol da tolerância. Todo o empenho vai no sentido de que haja tolerância religiosa no seio da Cristandade, que “os diferentes cristãos devam tolerar-se uns aos outros”, apenas isso. Voltaire chega a dirigir-se directamente a Deus — “faz com que aqueles que cobrem as vestes com uma tela branca, para assim dizerem que é preciso amar-te, não detestem os que dizem a mesma coisa debaixo de um manto de lã branca”.

Por estas razões, só podem resultar equívocas afirmações como a de Evangelista Vilanova na sua monumental “História das Teologias Cristãs”. Dizer que “Voltaire tende a reduzir todo o sentimento religioso à superstição ou ao fanatismo” induz o leitor a identificar o que é essencial distinguir: aquilo a que todos têm direito — as superstições — e aquilo a que ninguém tem o direito — o fanatismo. Como é sabido, Voltaire praticamente só vê superstição e convenção no Cristianismo, ele próprio milita do lado do deísmo e da “religião natural”, mas quando o que está em causa é a criminalização do fanatismo se há algo que tem de ser tolerado, isso é o credo de cada um e a superstição. “Não saltará aos olhos que ainda seria mais razoável adorar o santo umbigo, o santo prepúcio, ou o leite e as vestes da virgem Maria, do que execrar e perseguir o nosso irmão?” Este é um dos maiores méritos do “Tratado” e, seguramente, aquele que deve ser sublinhado várias vezes se se quiser compreender o anticlericalismo de Voltaire. Por muito feroz que seja a sua intervenção contra a Igreja, contra as suas instituições e a sua história, Voltaire, longe de pretender a sua destruição, exige-lhe a tolerância e a liberdade religiosas. E exige-o em nome do Estado laico e da lei pública.

Assim, se a tolerância deve dar lugar à intolerância deve podê-lo somente contra os fanáticos, precisamente aqueles que cometem o crime de perturbarem a sociedade. Segundo Voltaire, é o caso dos jesuítas, quando perseguem jansenistas e “vão lançar fogo a uma casa dos Pais do Oratório porque Quesnel, director da ordem, era jansenista”. Tornam-se intoleráveis por serem intolerantes. O raciocínio é translúcido: se a Companhia de Jesus não respeita as leis do Reino, então que seja dissolvida. A intolerância não será muita para os jesuítas, far-se-ão cidadãos entre cidadãos obrigados à mesma lei e providos dos mesmos direitos. Na verdade, a intolerância não é nada que não se aplique a todos os cidadãos: o respeito pela lei. E este é o “único caso em que a intolerância é de direito humano”.

No fim, quando “a discórdia é o grande mal do género humano e a tolerância o seu único remédio”, quando este realismo pode mesmo assim ser animado pelo desejo utópico da fraternidade, Voltaire faz da tolerância um projecto universal. Diz então que “não é preciso grande arte, eloquência muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem tolerar-se uns aos outros. Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos para todos os homens como irmãos. O quê? O turco, meu irmão? O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida”. Esse deve ser o apanágio da humanidade.

André Barata
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ISSN 1749-8457