Num certo sentido, sabemos suficientemente bem o que comumente se quer dizer com “lei da natureza”. Podemos dar exemplos. São ou acredita-se que sejam leis da natureza: que a órbita de um planeta em torno do Sol seja elíptica; que o arsênico seja venenoso; que a intensidade de uma sensação seja proporcional ao logaritmo do estímulo; que haja 303 000 000 000 000 000 000 000 moléculas em um grama de hidrogênio. E não são leis da natureza: que a soma dos ângulos de um triângulo euclidiano seja 180°, embora isso seja necessariamente verdadeiro; que todos os presidentes da terceira República Francesa tenham sido homens, embora esse seja à sua maneira um fato legal; que todos os cigarros que tenho agora em minha cigarreira sejam feitos de tabaco da Virgínia, e embora isso seja verdadeiro, dados os meus gostos, não é completamente acidental. Mas ao mesmo tempo que há numerosos casos em que não temos dificuldade para dizer se uma proposição que tomamos por verdadeira é ou não uma lei da natureza, há casos em que podemos ficar em dúvida. Por exemplo, suponho que a maior parte das pessoas pensa que as leis as da natureza incluem a primeira lei da termodinâmica, segundo a qual em qualquer sistema físico fechado a soma da energia é constante. Mas algumas pessoas defendem que tal princípio é uma convenção, devendo ser interpretado de tal modo que não haja possibilidade lógica de ser falsificado, e por isso podem negar que tal princípio seja afinal uma lei. Há duas perguntas a se fazer num caso assim: a primeira é se o princípio em discussão é realmente uma convenção, e a segunda é se o fato de ser uma convenção, caso realmente o seja, o impede de ser uma lei da natureza. Do mesmo modo, pode haver uma controvérsia sobre se as generalizações estatísticas contam como leis da natureza, distinta da controvérsia sobre se certas generalizações, que têm sido tomadas por leis da natureza, são de fato estatísticas. E mesmo que fôssemos sempre capazes de dizer a respeito de qualquer proposição se ela tem ou não a forma de uma lei da natureza, permaneceria o problema de tornar claro o que isso implica.
Atualmente, o uso da palavra “lei”, tal como ocorre na expressão “leis da natureza”, é em geral nitidamente diferente do seu uso em contextos morais ou legais: não concebemos as leis da natureza como imperativos. Mas nem sempre foi assim. Hobbes, por exemplo, apresenta no Leviatã uma lista de quinze “leis da natureza”, e entre elas duas das mais importantes são que os homens “busquem a paz e a sigam e “que os homens cumpram os pactos realizados”. Mas Hobbes não pensa que essas leis sejam necessariamente respeitadas. Pelo contrário, sustenta que o estado de natureza é um estado de guerra, e que os pactos não serão de fato mantidos a menos que haja um poder para fazer que o sejam. As suas leis da natureza são como leis civis, com exceção do fato de não emanarem de qualquer autoridade civil. Em dada altura, fala de “ ditames da razão”, e acrescenta que os homens, de modo impróprio, lhes dão o nome de leis: “pois são apenas conclusões ou teoremas a respeito do que conduz à conservação e à defesa deles mesmos: ao passo que a Lei, propriamente, é a palavra Daquele que por direito tem poder sobre eles”. “No entanto”, continua Hobbes, “se você considerar que os mesmos teoremas são transmitidos por meio da palavra de Deus, que por direito exerce o comando sobre todas as coisas, então serão propriamente denominados “Leis”“.1
Pode-se pensar que o modo como Hobbes usa o termo é tão distante do uso corrente que haveria pouco propósito em mencioná-lo, exceto como uma curiosidade histórica; mas acredito que a diferença é menor do que parece. Penso que o uso corrente da expressão “leis da natureza” carrega traços da concepção segundo a qual a Natureza está sujeita a ordens. Se tais ordens são concebidas como provenientes de uma deidade pessoal ou, como pensavam os gregos, de um destino impessoal, não faz aqui diferença. De qualquer modo, o principal é que o soberano é tido como tão poderoso que os seus ditames são obedecidos obrigatoriamente. Não se trata, como em Hobbes, de uma questão de dever moral ou de prudência, casos em que o sujeito tem a liberdade para errar. De acordo com a perspectiva que agora considero, as ordens dadas à natureza são emitidas com tal autoridade que seria impossível desobedecer-lhes. Não digo que esse ponto de vista ainda é prevalecente; ao menos não é explicitamente sustentado. Mas bem pode ter contribuído para a persistente impressão de que há uma certa forma de necessidade ligada às leis da natureza — uma necessidade que, como veremos, é extremamente difícil de estabelecer.
Caso alguém ainda esteja inclinado a pensar que as leis da natureza podem ser identificadas com as ordens de um ser superior, vale a pena assinalar que essa análise não pode estar correta. Já é uma objeção a tal análise o fato de ela pôr aos ombros da nossa ciência toda a incerteza da nossa metafísica ou da nossa teologia. Se fosse revelado que não temos boas razões para acreditar na existência de tal ser superior, ou que não temos boas razões para acreditar que ele emita quaisquer ordens, seguir-se-ia, nessa análise, que não estaríamos autorizados a acreditar na existência de quaisquer leis da natureza. Mas o argumento principal contra essa perspectiva é independente de qualquer dúvida que alguém possa ter acerca da existência de um ser superior. Mesmo que soubéssemos que tal ser existe, e que regula a natureza, não poderíamos mesmo assim identificar as leis da natureza com as suas ordens. Pois apenas descobrindo quais seriam as leis da natureza poderíamos saber que forma essas ordens teriam. Mas isso implica que temos alguns critérios independentes para decidir quais são as leis da natureza. Portanto, a suposição de que são impostas por um ser superior é ociosa, assim como é ociosa a suposição da providência. Apenas com a existência de meios independentes para descobrir o que está para acontecer se pode dizer o que a providência nos reserva. A mesma objeção se aplica à idéia, mais na moda, de que as leis morais são ordens de um ser superior. Mas isso não nos interessa agora.
Em todo caso, há algo estranho na noção de uma ordem impossível de desobedecer. Talvez estejamos certos de que uma dada ordem, de fato, jamais será desobedecida. Mas o que significaria dizer que não pode ser desobedecida? Que as sanções que a sustentam são muito fortes? Mas não poderia uma pessoa ser tão imprudente ou insensata a ponto de desafiá-las? Estou inclinado a dizer que pertence à natureza das ordens que deva ser possível desobedecer-lhes. A necessidade atribuída a essas ordens supostamente irresistíveis pertence na verdade a algo diferente: pertence às leis da lógica. Não que as leis da lógica não possam ser desconsideradas; é possível cometer erros no raciocínio dedutivo, assim como em qualquer outra coisa. Porém, há um sentido em que é impossível que qualquer coisa que aconteça viole as leis da lógica. A restrição não se encontra nos próprios eventos, mas no nosso método de descrevê-los. Se violarmos as regras de acordo com as quais o nosso método de descrição funciona, não o estaremos usando para descrever coisa alguma. Isso poderia sugerir que os próprios eventos estariam de fato desobedecendo às leis da lógica, mas não poderíamos dizer como isso acontece. Isso, no entanto, seria um erro. O que é descritível como um evento obedece às leis da lógica: e o que não é descritível como um evento não é, absolutamente, um evento. As cadeias com as quais a lógica acorrenta a natureza são puramente formais: sendo formais elas não oprimem, mas pela mesma razão são inquebrantáveis.
Se considerarmos as leis da natureza como ordens de um ser superior, estamos a um pequeno passo de creditarmos às leis da natureza a necessidade que pertence às leis da lógica. E essa é de fato uma perspectiva que muitos filósofos sustentaram. Tomaram por certo que uma proposição pode expressar uma lei da natureza somente se exprimir que eventos ou propriedades de certo tipo estão necessariamente conectados; e interpretaram essa conexão necessária como idêntica, ou aproximadamente análoga, à necessidade com que a conclusão se segue das premissas de um argumento dedutivo; como sendo, em suma, uma relação lógica. E isso lhes permitiu chegar à estranha conclusão de que as leis da natureza podem, pelo menos em princípio, ser estabelecidas independentemente da experiência: pois já que são verdades puramente lógicas, têm de poder ser descobertas apenas com o uso da razão.
A refutação dessa perspectiva é muito simples. E foi decisivamente levada a cabo por Hume. “Para nos convencer”, diz Hume, “que todas as leis da natureza e todo modo como os corpos se comportam, sem exceção, são conhecidos apenas pela experiência, as seguintes reflexões talvez sejam suficientes. Fosse-nos apresentado um objeto, e fosse-nos exigido pronunciar a respeito do efeito que dele resultaria sem recorrer a observações anteriores: como, pergunto, deve a mente proceder nessa operação? Tem de inventar ou imaginar um evento que atribui ao objeto como sendo o seu efeito: e é claro que essa invenção tem de ser inteiramente arbitrária. A mente jamais pode, pelo escrutínio e exame mais acurados, encontrar o efeito na suposta causa. Pois o efeito é totalmente diferente da causa, e conseqüentemente jamais nela pode ser encontrado”.2
O argumento de Hume é tão simples que tem sido freqüentemente mal entendido. O argumento é descrito como a defesa de que a inerência de um efeito em sua causa é algo que não é passível de ser descoberto na natureza; que de fato as nossas observações não conseguem revelar a presença de qualquer relação desse tipo — o que deixaria em aberto a possibilidade de as nossas observações estarem erradas. Mas o cerne do argumento de Hume não é que a relação de conexão necessária que se supõe unir eventos distintos não seja de fato observável: o cerne é que não pode haver tal relação, não por uma questão de fato, mas por uma questão de lógica. O que Hume sublinha é que se dois eventos são distintos, são distintos: a partir de uma asserção que se limita a afirmar a existência de um deles é impossível deduzir qualquer coisa acerca da existência do outro. Isto de fato é claramente uma tautologia. A sua importância reside no fato de os oponentes de Hume a negarem. Queriam defender que os eventos associados pelas leis da natureza seriam logicamente distintos entre si e, ao mesmo tempo, que estariam unidos por uma relação lógica. Mas isso é uma contradição manifesta. Os filósofos que adotam essa perspectiva tendem a expressá-la de uma forma que deixa a contradição latente: e foi uma conquista de Hume ter trazido a contradição à luz.
Em certas passagens, Hume deixa isso claro quando diz que a contraditória de qualquer lei da natureza é ao menos concebível; a sua intenção é mostrar desse modo que a verdade da frase que expressa tal lei é uma questão de fato empírico e não uma certeza a priori. Mas tem-se levantado a objeção de que o fato de a contraditória de uma proposição ser concebível não é uma prova decisiva de que a proposição não seja necessária. Pode acontecer que em lógica ou matemática pura alguém faça uma afirmação que não se possa provar nem refutar. Nesse caso, tanto a sua verdade quanto a sua falsidade são certamente concebíveis. W. C. Kneale levanta esta objeção,3 e cita o exemplo da conjectura de Goldbach, que afirma que todo número par maior do que dois é a soma de dois primos. Embora a conjectura tenha sido confirmada até onde foi testada, ninguém ainda sabe com certeza se é verdadeira ou falsa: nenhuma prova foi descoberta para mostrar que é verdadeira ou para mostrar que é falsa. Em todo caso, se for verdadeira, é necessariamente verdadeira, e se for falsa, é necessariamente falsa. Suponha que se revela falsa. Certamente, não poderíamos dizer que o que Goldbach tinha conjecturado como verdadeiro era efetivamente inconcebível — ainda que vejamos então que a sua conjectura é a contraditória de uma proposição necessária. Se insistirmos que é impossível conceber a contraditória de uma proposição necessária, encontramo-nos na estranha situação de ter de sustentar que uma das duas alternativas é inconcebível, sem saber qual delas o seria.
Penso que Kneale está certo: mas não acho que isso seja uma resposta a Hume, pois este não está primariamente interessado em mostrar que um determinado conjunto de proposições que foram admitidas como necessárias não são realmente necessárias. Isso é apenas uma conseqüência possível de seu ponto fundamental de que “não há objeto que implique a existência de qualquer outro se considerarmos tais objetos em si mesmos, e nunca olharmos além das idéias que deles formamos”.4 Em suma, dizer que os eventos são distintos é incompatível com a afirmação de que estão logicamente relacionados. E a objeção de Kneale não tem qualquer força contra isto. O máximo que poderia provar é que, no caso dos exemplos particulares que oferece, Hume poderia estar equivocado ao supor que os eventos em questão fossem realmente distintos: a despeito das aparências que indicam o contrário, uma expressão que Hume pensava que se referia apenas a um dos eventos poderia ser usada de um modo que incluísse a referência ao outro.
Mas não é possível que Hume esteja sempre equivocado. Será que os eventos, ou propriedades, que estão associados pelas leis da natureza, nunca são distintos? Essa questão é complicada porque uma vez aceite a generalização como lei da natureza, ela tende a mudar o seu estatuto. Os significados que atribuímos às nossas expressões não são sempre constantes: se estamos firmemente convencidos de que todo objeto de um tipo que é designado por certo termo tem uma propriedade que o termo não contemplava originalmente, tendemos a incluir a propriedade na designação; alargamos a definição do objeto, alterando ou não as palavras que a ele se referem. Para ilustrar, considere que foi uma descoberta empírica que o ímã atrai ferro e aço: para alguém que usa a palavra “ímã” apenas para se referir a um objeto que tem certa aparência física e uma dada constituição, o fato de o ímã se comportar de uma determinada forma não é formalmente dedutível. Mas como a palavra é hoje geralmente usada, a proposição de que o ímã atrai ferro e aço é analiticamente verdadeira: um objeto que não faça isso não seria apropriadamente considerado um ímã. Do mesmo modo, pode ter-se tornado uma verdade necessária que a água tenha a composição química H2O. O que dizer então da água pesada (com deutério), que tem D2O como composição? Não é realmente água? Essa questão é claramente trivial. Se convém considerar a água pesada uma espécie de água, não devemos fazer com que seja necessário que a água seja H20. Caso contrário, podemos fazê-lo. Temos a liberdade de resolver a questão, seja qual for o caminho que quisermos.
Nem todas as questões desse tipo são assim tão triviais. Por exemplo, qual é o estatuto na física newtoniana do princípio de que a aceleração de um corpo é igual à força que age sobre ele dividida pela sua massa? Se nos guiarmos pelos manuais em que “força” é definida como o produto da massa e da aceleração, concluiremos que o princípio é evidentemente analítico. Mas não há outros meios de definir força que permitam que esse princípio seja empírico? De fato há, mas como Henri Poincaré mostrou,5 podemos nos ver forçados a tratar outro princípio newtoniano como uma convençãoI. Pareceria que num sistema desse tipo provavelmente há um elemento convencional que, dentro de certos limites, podemos situar onde bem escolhermos. O que é colocado para o teste da experiência é o sistema como um todo.
Isso é conceder que algumas das proposições que passam por leis da natureza são logicamente necessárias, e ao mesmo tempo implica que não é verdadeiro que todas sejam logicamente necessárias. Mas pode-se ir muito além. É de todo modo concebível que em certo estágio a física se deva tornar tão unificada que poderia ser totalmente axiomatizada: atingiria o estatuto de uma geometria, em que todas as generalizações fossem consideradas necessariamente verdadeiras. É mais difícil de ver qualquer desenvolvimento desse tipo na biologia, e isso sem contar as ciências sociais, mas não é teoricamente impossível que possa também ocorrer nessas áreas. Seria característico de tais sistemas que nenhuma experiência poderia falsificá-los, mas a segurança de tais sistemas poderia ser estéril. O que tomaria o lugar de serem falsificados seria a descoberta de que não teriam qualquer aplicação empírica.
O ponto importante a notar é que seja qual for a vantagem prática ou estética de tornar as leis cientificas verdades lógicas necessárias, isso não faz avançar o nosso conhecimento, nem acrescenta algo à segurança das nossas crenças. Pois o que ganhamos de um lado, perdemos do outro. Se tratarmos como uma questão de definição que há exatamente tantos milhões de moléculas em todo grama de hidrogênio, podemos dessa forma estar certos que todo grama de hidrogênio terá esse número de moléculas: mas devemos nos tornar correspondentemente mais céticos, em um dado caso qualquer, se o que tomamos por um grama de hidrogênio é realmente um grama de hidrogênio. Quanto mais adicionamos às nossas definições, mais incerto é se algo as satisfaz: esse é o preço que pagamos por diminuir o risco de falsificação das nossas leis. E se alguma vez chegarmos ao ponto em que todas as “leis” sejam completamente seguras por serem tratadas como logicamente necessárias, todo o peso da dúvida recairia sobre a afirmação de que o nosso sistema tem aplicação. Tendo-nos privado do poder de expressar generalizações empíricas, teremos de fazer as nossas afirmações existenciais realizarem o trabalho.
Se tal estágio for alcançado, estou inclinado a dizer que então não deveríamos mais ter um uso para a expressão “leis da natureza”, tal como esta é agora entendida. Em certo sentido, a vigência de tais leis ainda seria afirmada: seriam contrabandeadas nas proposições existenciais. Mas nada haveria no sistema que contaria como lei da natureza: pois considero que é característico de uma lei da natureza que a proposição que a expressa não seja logicamente verdadeira. A respeito disso, no entanto, o nosso uso não é inteiramente claro. No caso em que uma frase originalmente expressou uma generalização empírica que reconhecemos como uma lei da natureza, nos inclinamos a dizer que ainda expressa uma lei da natureza, mesmo quando o seu significado tenha sido tão modificado que a frase passa a expressar uma verdade analítica. E somos encorajados a isso pelo fato de ser freqüentemente muito difícil dizer se essa modificação ocorreu ou não. Da mesma forma, no caso em que algumas proposições num sistema científico desempenham o papel de definições, tendo alguma liberdade para decidir o que devem ser, tendemos a aplicar a expressão “leis da natureza” a qualquer uma das proposições constituintes do sistema, sejam analiticamente verdadeiras ou não. Mas aqui é essencial que o sistema como um todo seja empírico. Porque fazem parte do restante do sistema, permitimos que as proposições analíticas contem como leis da natureza.
Assim, objetar a Hume que ele pode estar errado ao admitir que os eventos conectados causalmente sejam “existências distintas” é meramente admitir que é possível a ciência se desenvolver de tal modo que os sistemas axiomáticos tomem o lugar de leis naturais. Mas isso não era verdade a respeito das proposições em que Hume estava interessado, nem é verdadeiro no que diz respeito às ciências de hoje. E em qualquer caso, Hume está certo ao dizer que não podemos ter o melhor de ambos os mundos; se queremos que as nossas generalizações tenham conteúdo empírico, não podem ser logicamente certas; se as tornarmos logicamente certas, subtraímos o seu conteúdo empírico. As relações que se mantêm entre coisas, eventos ou propriedades não podem ser simultaneamente factuais e lógicas. O próprio Hume falou apenas de relações causais, embora o seu argumento se aplique a qualquer uma das relações que a ciência estabelece, e de fato a qualquer relação, seja ela qual for.
Talvez se deva observar que os filósofos que ainda desejam manter que as leis da natureza são “princípios de necessitação”6 não concordariam que isso significa dizer que as proposições que as exprimam sejam analíticas. Defenderiam que estamos lidando aqui com relações de necessidade objetiva, que não devem ser identificadas com derivações lógicas, embora as duas sejam parecidas em certos aspectos. Mas o que são essas relações de necessidade objetiva? Nenhuma explicação é dada, exceto que são apenas relações que existem entre eventos ou propriedades quando estão conectados por uma lei da natureza. Mas isso é simplesmente reafirmar o problema; e não uma tentativa de resolvê-lo. Essa menção à necessidade objetiva não parece permitir que detectemos qualquer lei da natureza. Pelo contrário, é apenas ex post facto, quando a existência de alguma conexão foi empiricamente testada, que os filósofos afirmam ver essa misteriosa propriedade da necessidade. E muito freqüentemente o que “vêem” como algo necessário é falsificado por observações posteriores. Em si, isso não prova que os eventos que ocorrem simultaneamente devido a uma lei da natureza não estejam ligados numa única relação. Se todas as tentativas de análise fracassam, podemos limitar-nos a dizer que é sui generis. Mas por que descrevê-la de um modo que leva à confusão com a relação de necessidade lógica?
Outra tentativa de conectar a necessidade natural com a lógica encontra-se na sugestão de que se considera que dois eventos E e I estão necessariamente conectados quando há uma afirmação universal bem estabelecida U a partir da qual, em conjunção com a proposição i, que afirma a existência de I, uma proposição e, que afirma a existência de E, é formalmente dedutível.7 Essa sugestão tem o mérito de explicitar o fato de que qualquer necessidade que possa haver na conexão de dois eventos se dá apenas através de uma lei. A proposição que descreve “as condições iniciais” não permite por si mesma derivar a proposição que descreve o “efeito”: só o faz quando a combinamos com uma lei causal. Mas isso não nos autoriza a dizer que a lei em si seja necessária. Podemos atribuir um significado semelhante para a afirmação de que a lei é necessária estipulando que se segue, diretamente ou com a ajuda de certas premissas adicionais, de alguns princípios mais gerais. Mas qual é então o estatuto desses princípios mais gerais? A questão do que constitui uma lei da natureza continua, nessa concepção, sem resposta.
Depois de nos livrarmos da confusão entre relações lógicas e relações factuais, o caminho óbvio parece ser sustentar que uma proposição expressa uma lei da natureza quando enuncia o que invariavelmente acontece. Assim, se dissermos que corpos sem suporte caem e admitirmos que a afirmação é uma lei da natureza, queremos dizer que não há, não houve e não haverá um corpo sem suporte que não caia. Nessa perspectiva, a “necessidade” de uma lei consiste simplesmente no fato de não ter exceções.
Veremos que essa interpretação também pode ser alargada às leis estatísticas. Pois também se pode considerar que estas afirmam certas constâncias na natureza: ocorre que, nesse caso, o que se sustenta que é constante é a proporção de casos em que uma propriedade se combina com outra ou, para dizer de outra forma, a proporção de membros de uma classe que são também membros de outra. Assim, é uma lei estatística que quando há dois genes determinando uma propriedade hereditária — por exemplo, a cor de um dado tipo de flor —, a proporção de indivíduos na segunda geração que apresentam o atributo dominante — por exemplo, a cor branca por oposição à vermelha —, é de três quartos. Porém, há a dificuldade de não se esperar que a proporção seja mantida em todas as amostras. Como R. B. Braithwaite sublinhou, “quando dizemos que a proporção (num sentido não literal) de nascimento de crianças do sexo masculino de entre os nascimentos é de 51%, não estamos dizendo de qualquer classe particular de nascimentos que 51% são nascimentos de meninos, pois a proporção efetiva de nascimentos pode diferir muito de 51% numa classe particular de nascimentos ou em várias classes particulares de nascimentos. Mesmo assim, não estamos dispostos a rejeitar a proposição de que a proporção (no sentido não-literal) seja de 51%”.8 De todo o modo, o uso “não literal” da palavra “proporção” é bastante próximo do literal. Se a lei ocorre, a proporção tem de permanecer algo perto de 51% para qualquer classe de casos suficientemente grande: e os desvios dessa taxa encontrados em subclasses selecionadas têm de ser como o que espera da aplicação do cálculo de probabilidades. É mister admitir que a questão sobre o que constitui uma classe de casos suficientemente grande é difícil de responder. Pareceria que a classe teria de ser finita, mas a escolha de qualquer número finito particular também pareceria arbitrária. Mas não vou tentar resolver isso aqui. A única coisa que quero sublinhar é que uma lei estatística não é menos “legiforme” do que uma lei causal. De fato, se as proposições que expressam leis causais são simplesmente afirmações do que invariavelmente acontece, podem ser encaradas como expressões de leis estatísticas com porcentagem de 100%. Uma vez que uma porcentagem de 100%, se for efetiva, tem de ocorrer em qualquer amostra, esses “casos-limite” de leis estatísticas escapam da dificuldade que acabamos de mencionar. A partir de agora detemos a nossa atenção nesses casos porque a análise das leis estatísticas “normais” trazem complicações estranhas aos nossos propósitos. Não afetam a questão do que torna uma proposição legiforme: e estamos interessados principalmente nesta questão.
Na perspectiva que temos agora de considerar, tudo o que se exige para haver leis na natureza é a existência de constâncias de facto. No caso mais simples, a constância consiste no fato de que eventos, ou propriedades, ou processos de diferentes tipos estão invariavelmente associados entre si. Isto é atraente devido à sua simplicidade: mas pode ser que seja simples demais. Há aqui objeções a que não é fácil responder.
Em primeiro lugar, temos de evitar sobrecarregar-nos com leis vácuas. Se interpretarmos as afirmações da forma “Todo S é P” como equivalente, na notação de Russell, a implicações gerais da forma “(x) (Φx ⊃ Ψx)”, enfrentamos a dificuldade que tais implicações são consideradas verdadeiras em todos os casos em que a sua antecedente é falsa.II Assim, teremos de entender como verdadeiro que todos os cavalos alados são corajosos e que todos os cavalos alados são domesticados; pois ao admitir, o que considero que podemos fazer, que jamais houve ou haverá quaisquer cavalos alados, é verdadeiro que nunca houve ou haverá qualquer cavalo alado que não seja corajoso e, da mesma forma, que nunca houve ou haverá qualquer cavalo alado que não seja domesticado.III E será assim com qualquer outra propriedade que escolhermos. Mas certamente não queremos considerar que a atribuição de qualquer propriedade a cavalos alados é expressão de uma lei da natureza.
A saída óbvia desta dificuldade é estipular que a classe à qual nos referimos não deve ser vazia. Se as afirmações da forma “Todo S é P” forem usadas para expressar leis da natureza, têm de ser construídas de modo a implicar a existência de pelo menos um S. Têm de ser tratadas como equivalentes, na notação de Russell, à conjunção das proposições “(x) (Φx ⊃ Ψx) (∃x) Φx”. Mas essa condição pode ser forte demais, pois há certos casos em que queremos considerar que as implicações gerais expressam leis da natureza mesmo que as suas antecedentes não sejam satisfeitas. Considere, por exemplo, a lei newtoniana de que um corpo sobre o qual nenhuma força está atuando continua em repouso ou em movimento uniforme ao longo de uma linha reta. Poder-se-ia argumentar que essa proposição seria vacuamente verdadeira, uma vez que não há corpos sobre os quais nenhuma força atua; mas nem por isso deixa de ser entendida como expressando uma lei. Não é interpretada como vácua. Mas como então tal proposição se encaixa no esquema? Como se pode admitir que é uma descrição do que realmente acontece?
O que queremos dizer é que se houvessem corpos sobre os quais nenhuma força atua, então eles se comportariam do modo como a lei de Newton prescreve. Mas não estabelecemos qualquer procedimento para esses casos hipotéticos: de acordo com a perspectiva que examinamos, as afirmações legiformes abrangem apenas o que é efetivo, e não o que é meramente possível. Porém, há ainda um modo de ajustar tais leis “não-instanciadas”. Como C. D. Broad sugeriu,9 podemos tratá-las como se se referissem não a objetos hipotéticos ou a eventos, mas apenas a conseqüências hipotéticas de leis instanciadas. A nossa lei newtoniana pode então ser vista como algo que implica que há leis instanciadas. Neste caso, leis sobre o comportamento dos corpos sobre os quais atuam forças e que, combinadas com a proposição de que há corpos sobre os quais nenhuma força atua, implicam a conclusão de que esses corpos continuam em repouso, ou em movimento uniforme ao longo de uma linha reta. A proposição de que há tais corpos é falsa e assim também o é a conclusão, se for interpretada existencialmente. Mas isso não importa. Como Broad o exprime, “o que estamos interessados em afirmar é que essa conclusão falsa é uma conseqüência necessária da conjunção de uma suposição falsa instanciável com certas leis da natureza verdadeiras instanciadas”.
Esta solução da presente dificuldade é engenhosa, embora não esteja certo de que seria sempre possível encontrar as leis instanciadas exigidas. Mas mesmo que a aceitemos, os nossos problemas não acabam. Como o próprio Broad sublinhou, há uma importante classe de casos em que não nos ajuda. Tais casos são aqueles em que se diz que uma quantidade mensurável depende de outra quantidade mensurável. Casos como o da lei que conecta o volume e a temperatura de um gás sob uma dada pressão — em que há uma função matemática que nos permite calcular o valor numérico de qualquer um dos dois partindo do valor do outro. Tais leis têm a forma “x = Fy”, em que a extensão da variável y abrange todos os valores possíveis da quantidade em questão. Mas não se pode supor que todos esses valores se deverão encontrar realmente na natureza. Mesmo que o número das diferentes temperaturas que os espécimes de gases têm ou irão ter seja infinito, terá ainda de faltar um número infinito. Como devemos então interpretar tal lei? Como a volumosa afirmação de todas as suas instâncias efetivas? Mas a formulação da lei não indica quais são as instâncias efetivas. Seria absurdo construir uma fórmula geral sobre a dependência funcional de uma quantidade em relação à outra como algo que nos comprometeria com a afirmação de que apenas esses valores da quantidade são efetivamente realizados. Como afirmando que para um valor n de y, que de fato não se realiza, a proposição de que ele se realiza em conjunção com o conjunto de proposições que descrevem os casos efetivos acarreta a proposição de que há um valor correspondente m de x? Mas isto está aberto à mesma objeção, com o inconveniente adicional de que não haveria acarretamento. Como afirmando em relação a qualquer dado valor n de y que ou n não é realizado ou há um valor m correspondente de x? Esta é a alternativa mais plausível, mas torna a lei trivial para todos os valores de y que não sejam realizados. É difícil escapar da conclusão de que o que realmente queremos dizer quando formulamos tal lei é que há um valor correspondente de x para todo valor possível de y.
Outra razão para adicionar as possibilidades é que não parece haver outro modo de explicar a diferença entre generalizações legiformes e generalizações factuais. Voltando aos exemplos anteriores, é uma generalização factual que todos os presidentes da Terceira República Francesa são homens ou que todos os cigarros que estão agora na minha cigarreira são feitos de tabaco da Virgínia. É uma generalização legiforme que todos os planetas do nosso sistema solar se movem em órbitas elípticas, mas uma generalização factual que todos têm nomes latinos. Alguns filósofos referem-se a essas generalizações factuais como “generalizações acidentais”, mas esse uso da palavra “acidental” pode ser enganador. Não se sugere que estas generalizações são verdadeiras por acidente, no sentido de não haver explicação causal para a sua verdade, mas apenas que não são expressões de leis naturais.
Mas como devemos fazer essa distinção? A fórmula “(x) (Φx ⊃ Ψx)” representa bem ambos os casos. Seja a generalização uma generalização factual ou legiforme, irá dizer no mínimo que nada há que tenha a propriedade Φ e que não tenha a propriedade Ψ. Nesse sentido, a generalidade é perfeita em ambos os casos, na medida em que as afirmações forem verdadeiras. Porém, parece haver um sentido em que a generalidade a que estamos chamando generalizações factuais é menos completa. Parecem limitadas, ao contrário das generalizações legiformes. Ou as generalizações factuais envolvem alguma limitação espaço-temporal, como no exemplo dos cigarros que estão agora na minha cigarreira, ou se referem a indivíduos particulares, como no exemplo dos presidentes da França. Quando digo que todos os planetas têm nomes latinos, estou me referindo definidamente a certo conjunto de particulares como Júpiter, Vênus, Mercúrio e assim por diante. Mas quando digo que os planetas se movem em órbitas elípticas, estou me referindo indefinidamente a qualquer coisa que tenha as propriedades que constituem ser um planeta deste sistema solar. Mas não é adequado dizer que as generalizações factuais são simplesmente conjunções de afirmações particulares, que definitivamente se referem a particulares. Pois ao afirmar que os planetas têm nomes latinos, não os identifico individualmente: posso saber que têm nomes latinos sem ser capaz de fazer uma lista de todos. Também não podemos delimitar generalizações legiformes insistindo que não podem incluir referências a lugares e momentos específicos do tempo específicos, pois as generalizações factuais podem ser ajustadas a essa condição. Em vez de referir os cigarros que estão agora na minha cigarreira, posso encontrar uma propriedade geral que só os meus cigarros têm, como, por exemplo, a propriedade de estarem dentro de uma cigarreira com certos arranhões e pertencente durante um dado período a uma pessoa com determinadas características. As descrições são escolhidas de tal modo que a descrição da pessoa é satisfeita apenas por mim e a descrição da cigarreira, caso eu tenha mais de uma, só é satisfeita pela cigarreira mencionada. Em certas circunstâncias, essas descrições podem ter de ser um tanto complicadas, mas normalmente não o seriam: e de qualquer modo a questão da complexidade não está em discussão aqui. Mas isso significa que com a ajuda desses predicados “individuadores” as generalizações factuais podem ser expressas de uma forma tão universal quanto as generalizações legiformes. E, conversamente, como sublinhou Nelson Goodman, as generalizações legiformes podem ser expressas de tal modo que contenham referência a indivíduos particulares, ou a lugares e momentos do tempo específicos. Pois, como Goodman observa, “mesmo a hipótese “Toda a grama é verde” tem como um equivalente “Toda grama em Londres ou noutro lugar é verde””.10 Temos de admitir que esta equiparação dos dois tipos de afirmação parece um ardil; mas o fato de que funcionar mostra que não podemos fundamentar a distinção numa diferença nos modos pelos quais a afirmação pode ser expressa. De novo, o que queremos dizer é que embora as generalizações factuais abranjam apenas instâncias efetivas, as generalizações legiformes abrangem também instâncias possíveis. Mas esta noção de instâncias possíveis, opostas às efetivas, ainda não foi clarificada.
Se as generalizações legiformes abrangem tanto as instâncias possíveis como as efetivas, o seu alcance tem de ser infinito; pois enquanto o número de objetos que existem ao longo do tempo e que têm certas propriedades possa ser finito, não há limite ao número de objetos que possivelmente poderiam ter tais propriedades: pois quando entramos no campo das possibilidades não ficamos confinados aos objetos que efetivamente existem. E isto mostra o quanto estas generalizações estão longe de ser conjunções. Não só devido ao seu alcance ser finito, o que poderia ser verdadeiro mesmo que se limitasse às instâncias efetivas, mas porque é absurdo tentar fazer uma lista de todas as instâncias possíveis. Pode-se imaginar um anjo se dando o trabalho de nomear ou descrever todos os homens que já existiram ou irão existir, mesmo que fossem de número infinito. Mas como nomearia ou descreveria todos os homens possíveis? Esse ponto é desenvolvido por F. P. Ramsey, que observa que a proposição hipotética com variável ““(x) Φx” assemelha-se a uma conjunção a) na medida em que contém todas as conjunções menores, i.e., todas as conjunções finitas, e aparece como um tipo de produto infinito; b) quando perguntamos o que a tornaria verdadeira, inevitavelmente respondemos que é verdadeira se, e somente se, todo x tem Φ; i.e., quando a consideramos como uma proposição que pode ser verdadeira ou falsa, somos forçados a fazer dela uma conjunção que não podemos expressar por falta de poder simbólico”.11 Porém, continua, “o que não podemos dizer, não podemos dizer, e também não podemos assobiar”. E Ramsey conclui que tal proposição hipotética com variável não é uma conjunção e que “se não é uma conjunção, não é de modo algum uma proposição”. De maneira análoga, Ryle, sem explicitamente negar que as generalizações legiformes são proposições, descreve-as como “garantias para inferências sazonais”12, numa analogia com os bilhetes de trem válidos sazonalmente, o que implica que não são tanto proposições, mas antes regras. Schlick também sustentou que seriam regras, argumentando que não poderiam ser proposições porque não eram conclusivamente verificáveis; mas este é um argumento fraco, uma vez que é duvidoso que quaisquer proposições sejam conclusivamente verificáveis, exceto possivelmente as que descrevem as experiências imediatas individuais.
Dizer que as generalizações legiformes não são proposições tem o mérito de destacar a sua peculiaridade. É um modo de enfatizar a diferença entre elas e as generalizações factuais. Mas acredito que a ênfase é forte demais. Afinal de contas, como Ramsey reconhece, queremos dizer que as generalizações legiformes são ou verdadeiras ou falsas. E são testadas como as outras proposições: pelo exame de instâncias efetivas. Uma instância contrária refuta uma generalização legiforme do mesmo modo que refuta uma generalização factual. Uma instância positiva confirma ambas. Temos de admitir a diferença de que se todas as instâncias efetivas são favoráveis, a sua conjunção acarreta a generalização factual, mas não acarreta a generalização legiforme: mas ainda assim não há meio melhor de confirmar uma generalização legiforme do que encontrar instâncias favoráveis. Dizer que as afirmações legiformes funcionam como garantias para inferências sazonais é de fato esclarecedor, mas o que quer dizer é que a inferência em questão é garantida pelos fatos. Não haveria sentido em expedir bilhetes sazonais se os trens de fato não funcionassem.
Dizer que as generalizações legiformes abrangem tanto casos possíveis quanto reais é dizer que acarretam condicionais subjuntivas. Se for uma lei da natureza que os planetas se movem em órbitas elípticas, então será verdadeiro não só que os planetas reais se movem em órbitas elípticas, mas também que se uma coisa qualquer fosse um planeta, mover-se-ia em órbita elíptica: e “ser um planeta” deve aqui ser entendido como o ter certas propriedades, não só como sendo idêntico a um dos planetas que existem. Não é de fato uma peculiaridade de afirmações que entendemos expressar leis da natureza que elas acarretem condicionais subjuntivas: pois o mesmo será verdadeiro para qualquer afirmação que contenha um predicado disposicional. Dizer, por exemplo, que esta tira de borracha é elástica não é meramente dizer que ela retornará ao tamanho normal depois de ser esticada, mas é também dizer que ela assim o faria se alguma fez fosse esticada: um objeto pode ser elástico sem ser esticado uma vez sequer. Mesmo a afirmação de que isto é um pedaço branco de papel pode ser tomada como implicando não só que parece um pedaço de papel, mas também que se pareceria com um pedaço de papel sob certas condições, que podem ou não ser cumpridas. Assim, não se pode dizer que as generalizações factuais não acarretam as condicionais subjuntivas, pois podem muito bem conter predicados disposicionais. E realmente é mais provável que contenham. Mas não irão acarretar as condicionais subjuntivas que são acarretadas pelas afirmações legiformes correspondentes. Dizer que todos os planetas têm nomes latinos pode ser fazer uma afirmação disposicional, no sentido de que implica não tanto o fato de as pessoas os chamarem por tais nomes, mas que elas o fariam se falassem corretamente. No entanto, isso não implica, com relação a qualquer coisa, que se essa coisa fosse um planeta, teria um nome latino. E por essa razão não se trata de uma generalização legiforme, mas apenas de uma generalização factual.
Há vários filósofos que de bom grado deixariam a questão neste ponto. Explicam a “necessidade” das leis naturais dizendo que consiste no fato de valerem tanto para instâncias possíveis quanto efetivas: e distinguem generalizações legiformes de generalizações factuais destacando as diferenças em relação ao acarretamento de condicionais subjuntivas. Mas apesar de isto ser, até certo ponto, correto, tenho dúvidas se vai suficientemente longe. Nem a noção de instâncias possíveis, por oposição às efetivas, nem a noção de condicional subjuntiva é tão cristalina a ponto de tais referências a estas noções poderem ser consideradas algo que porá um fim às nossas dificuldades. Se pudermos, será bom tentar levar a nossa análise um pouco mais adiante.
A teoria que vou esboçar não evitará toda a menção a disposições; mas irá restringi-la à atitude das pessoas. A minha sugestão é que a diferença entre os nossos dois tipos de generalização reside não tanto no lado dos fatos que as tornam verdadeiras ou falsas, mas antes na atitude daqueles que as propõem. A informação factual expressa por uma afirmação da forma “para todo x, se x tem Φ então tem Ψ” é a mesma independentemente do modo como for interpretada. Pois se as duas interpretações diferem apenas acerca dos valores possíveis de x, por oposição aos seus valores efetivos, não diferem com respeito a qualquer coisa que ocorra efetivamente. Contudo, não quero dizer que uma diferença acerca de meras possibilidades não é uma diferença genuína, ou que tal diferença deva ser identificada a uma diferença na atitude daqueles que fazem a interpretação. Mas penso que pode ser mais bem elucidado pela referência a tais diferenças de atitude. Em suma, proponho explicar a diferença entre generalizações legiformes e generalizações factuais, e assim dar uma explicação indireta do que é uma lei da natureza, pelo método de analisar a distinção entre tratar uma generalização como uma afirmação legiforme e tratá-la como uma afirmação factual.
Se uma pessoa aceita uma afirmação da forma “(x) (Φx ⊃ Ψx)” como uma verdadeira generalização factual, não acreditará que qualquer coisa que tenha a propriedade Φ tenha qualquer propriedade que o leve a não ter a propriedade Ψ. Pois uma vez que acredita que tudo que tem Φ também tem Ψ, tem de acreditar que sejam quais forem as propriedades diferentes que um dado valor de x possa ter, não serão propriedades que o impeçam de ter Ψ. E pode ser que saiba que esse é o caso. Mas vamos supor que acredite que tal generalização é verdadeira, mas que não o saiba com certeza. Nesse caso, haverá várias propriedades X, X1... tais que, se lhe fosse ensinado, com respeito a qualquer valor de a de x, que a tinha uma ou mais dessas propriedades, assim como tinha a propriedade Φ, isso destruiria ou enfraqueceria seriamente a sua crença que a tinha a propriedade Ψ. Por exemplo: acredito que todos os cigarros que estão na minha cigarreira são feitos de tabaco da Virgínia, mas essa crença seria destruída se eu fosse informado que tinha distraidamente enchido a minha cigarreira com cigarros que guardo apenas na caixa em que coloco cigarros turcos. Por outro lado, se eu tomasse como uma lei da natureza que todos os cigarros nesta cigarreira são feitos de tabaco da Virgínia, com base, por exemplo, na cigarreira ter a propriedade física curiosa de transformar qualquer cigarro lá colocado num cigarro com tabaco da Virgínia, então a minha crença não seria enfraquecida desse modo.
Ora, se as nossas leis da natureza fossem causalmente independentes umas das outras, e se, como pensou Mill, as proposições que as expressam fossem sempre avançadas como incondicionalmente verdadeiras, a análise poderia ser bastante simples. Poderíamos dizer que uma pessoa A tomaria uma afirmação da forma “para todo x, se Φx, então Ψx” como a expressão de uma lei da natureza se, e somente se, não houver uma propriedade X tal que a informação de que um valor de a de x teria X tanto quanto Φ enfraquecesse a sua crença de que a teria Ψ. E aqui teríamos de admitir a cláusula que X não acarreta logicamente não-Ψ, e também, suponho, que a sua presença não é considerada uma manifestação de não-Ψ; pois não desejamos tornar incompatível o ato de tratar uma afirmação como a expressão de uma lei com o facto de se ter de reconhecer uma instância negativa se ela surgir. Mas na realidade isso não é tão simples. Pois é possível acreditar que uma afirmação da forma “para todo x, se Φx, então Ψx” expressa uma lei da natureza ao mesmo tempo em que também se acredita que, porque se acredita noutras leis, que se uma coisa tivesse tanto a propriedade X quanto a propriedade Φ, não teria a propriedade Ψ. Assim, a crença na proposição de que um objeto que alguém pensa ser um imã atrai ferro poderia ser enfraquecida ou destruída pela informação de que a composição física do suposto imã é muito diferente daquela que se imaginou. Porém, penso que em casos destes a informação que poderia debilitar a crença de que o objeto em questão tinha a propriedade Ψ é tal que, independentemente de outras considerações, enfraqueceria seriamente a crença de que o objeto alguma vez teve a propriedade Φ. E se for assim, podemos superar a dificuldade estipulando que a série de propriedades que uma pessoa que considera que “para todo x, se Φx, então Ψx” é uma lei, deve estar disposta a associar com Φ, sem que a sua crença na conseqüente seja enfraquecida, não deve incluir aquelas cujo conhecimento da sua presença enfraqueceria seriamente a crença na presença de Φ.
Resta a dificuldade adicional de que normalmente não consideramos como incondicionalmente verdadeiras as proposições que entendemos expressar leis da natureza. Ao afirmá-las, implicamos a presença de certas condições que realmente não especificamos. Talvez pudéssemos especificá-las se assim o desejássemos, mas consideraríamos difícil tornar a lista exaustiva. Nesse sentido, uma generalização legiforme pode ser mais fraca do que uma generalização factual, uma vez que se pode admitir exceções às generalizações tal como estas são afirmadas. Porém, isso não significa que a lei permita exceções: se a exceção é reconhecida como genuína, entende-se que a lei foi refutada. Nos outros casos, considera-se que a exceção foi tacitamente prevista. Estabelecemos uma lei sobre o ponto de fervura da água, sem nos importar em mencionar se vale para altitudes elevadas. Quando isso é assinalado, dizemos que tal ressalva deveria ser subentendida. O mesmo vale para os outros casos. A afirmação de que se algo tem Φ também tem Ψ foi uma formulação frouxa da lei: o que realmente queríamos dizer era que se alguma coisa tem Φ, mas não X, também tem Ψ. Mesmo no caso em que a existência da exceção não fosse previamente conhecida, freqüentemente vemos isso como algo que qualifica a lei ao invés de refutá-la. Não dizemos que a generalização foi falsificada, mas antes que foi afirmada sem exatidão. Assim, deve-se permitir que a crença de alguém na presença de Ψ, num dado caso, é destruída pela crença de que Φ é acompanhado de X, possa ainda estar considerando que “(x) (Φx ⊃ Ψx)” expressa uma lei da natureza, se essa pessoa estiver disposta a aceitar “(x) ((Φx ~ Xx) ⊃ Ψx)” como uma formulação mais exata da lei.
Assim, sugiro que para uma pessoa considerar que uma afirmação da forma “se algo tem Φ, também tem Ψ” é a expressão de uma lei da natureza, é suficiente i) que se sujeite a uma disposição para afastar exceções, que ela acredite num sentido não trivial que tudo o que de facto tem Φ também tem Ψ e ii) que a sua crença de que algo que tem Φ também tem Ψ não seja passível de ser enfraquecida pela descoberta de que o objeto em questão também tem outra propriedade X, satisfeitas as condições a) que X não acarrete logicamente não-Ψ, b) que X não seja uma manifestação de não-Ψ, c) que a descoberta de que algo tenha X em si mesma não enfraqueceria a sua crença de que o objeto tenha Φ e d) que não considere a afirmação “se qualquer coisa tem Φ e não-X terá Ψ” como uma afirmação mais exata da generalização que pretendia expressar.
Não estou sugerindo que essas condições são necessárias, pois penso que podem ser simplificadas e que não cobrem todo o campo. Por exemplo, nenhuma condição foi estabelecida para as leis funcionais, onde a referência a instâncias possíveis não me parecem até agora elimináveis. Também não estou oferecendo uma definição de lei natural. Não afirmo que dizer que alguma proposição expressa uma lei da natureza acarreta dizer que alguém tem certa atitude em relação a ela; pois claramente faz sentido dizer que existem leis da natureza que são ainda desconhecidas. Mas isso é consistente com o ato de sustentar que a noção tem de ser explicada em termos de atitudes das pessoas. A minha explicação é realmente esquemática, mas penso que as distinções que tentei apresentar são relevantes e importantes: e espero ter feito algo no sentido de torná-las claras.