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Crítica
3 de Julho de 2016   Filosofia política

Direitos humanos e diversidade cultural

Amartya Sen

O conceito de direitos humanos é uma pedra angular da nossa humanidade. Tais direitos não são concedidos porque se é cidadão de um país ou se pertence a uma nação, mas pertencem por direito a toda a humanidade. Isso diferencia-os, em consequência, dos direitos criados constitucionalmente, garantidos a pessoas determinadas (por exemplo, os cidadãos americanos ou franceses). Desse modo, o direito de não ser torturado afirma-se independentemente do país de que se é cidadão e também do que o governo desse país — ou de outro — pretende. Um governo pode naturalmente contestar o direito legal de uma pessoa não ser torturada, mas isso não pode pôr em causa o que é considerado o direito humano de não ser torturado.

Discordâncias aparentes e contrastes culturais

O conceito de direitos humanos universais é, desse ponto de vista, uma ideia unificadora, algo que torna cada um de nós importante (pouco importa onde vivamos e a que país pertençamos), algo que podemos todos partilhar (apesar da diversidade dos sistemas jurídicos dos nossos respectivos países). E no entanto o tema dos direitos humanos frequentemente degenera em campo de batalha no qual se defrontam diversas crenças e reivindicações. Nos debates políticos, pode surgir como tema de diferenciação, mais que como idéia unitária. Tais oposições têm por vezes sido consideradas “choques de civilizações” ou “batalhas entre culturas”. Por exemplo, diz-se com frequência que os países ocidentais reconhecem numerosos direitos humanos, especialmente os que estão ligados à liberdade pública, ao passo que os países asiáticos não o fazem. Muitos vêem nisso um importante factor de divisão. A tentação de pensar de acordo com tais esquemas regionais e culturais é muito forte no mundo contemporâneo. Os partidários e os adversários dos direitos humanos frequentemente utilizam esses argumentos culturais, baseados nas tradições e nas crenças existentes em determinada sociedade.

Existirão efectivamente diferenças irredutíveis entre as tradições culturais e as crenças políticas do mundo? Será esta divisão incontornável quando se trata de direitos humanos? É verdade que os porta-vozes dos governos de vários países asiáticos têm discutido a pertinência e o fundamento dos direitos humanos universais. Fazem-no frequentemente em nome de “valores asiáticos” específicos, que diferem das prioridades ocidentais. Insistem muitas vezes em afirmar que o apelo à aceitação universal dos direitos humanos reflecte a imposição dos valores ocidentais sobre as outras culturas. Como disse o ministro de Relações Exteriores de Singapura na conferência de Viena sobre os direitos humanos em 1993 (com total apoio dos porta-vozes oficiais de vários países asiáticos): “O reconhecimento universal do ideal dos direitos humanos pode ser nefasto se a universalidade é utilizada para contestar ou mascarar a realidade da diversidade”. O ministro das Relações Exteriores da China também manifestou vivas reservas às concepções “ocidentais” dos direitos humanos. A filosofia confuciana, em particular, daria ênfase não aos direitos ou liberdades, mas ao li, quer dizer, à ordem e à disciplina. Mas existirá realmente esta “diversidade” entre a Ásia e os países ocidentais?

Uma certa tendência na Europa e na América estabelece às vezes implicitamente que é no Ocidente — e apenas no Ocidente — que os direitos humanos têm sido valorizados desde épocas antigas. Esta característica pretensamente única da civilização ocidental teria sido um conceito estranho no resto do mundo. Insistindo nas especificidades regionais e culturais, tais teorias ocidentais sobre a origem dos direitos humanos tendem a questionar a existência de direitos humanos universais nas sociedades não ocidentais. Sustentando que o valor atribuído à liberdade pessoal, à tolerância e aos direitos civis é uma contribuição própria da civilização ocidental, os partidários ocidentais desses direitos dão frequentemente argumentos aos críticos não ocidentais dos direitos humanos, pois pode-se considerar que o apoio a uma ideia pretensamente “estrangeira” é uma manifestação do imperialismo cultural imposto pelo Ocidente.

Diversidade nas tradições ocidentais e valores asiáticos

Que fundo de verdade se poderá atribuir a essa grande dicotomia cultural entre as civilizações ocidentais e não ocidentais a respeito da liberdade e dos direitos? Pretendo demonstrar que tudo isso é inexacto de um ponto de vista histórico. Na tentativa de interpretar a civilização ocidental como a base natural da liberdade individual e da democracia política, identificamos uma tendência para fazer extrapolações retrospectivas a partir do presente. Os valores que o século das Luzes na Europa e acontecimentos mais recentes banalizaram e difundiram são frequentemente considerados — de forma absolutamente arbitrária — uma parte da longa herança ocidental que se desenvolveu ao longo de milénios. O conceito dos direitos humanos universais no sentido amplo do Iluminismo, de direitos de todo ser humano, é na realidade uma ideia relativamente nova, tão difícil de encontrar no Ocidente como no Oriente antigo.

Todavia, outras ideias — como o valor da tolerância ou a importância da liberdade individual — foram apoiadas e defendidas por muito tempo, não raras vezes por uma pequena elite. Desse modo, no pensamento ocidental, os escritos de Aristóteles sobre a liberdade e o florescimento humano fornecem um bom material de base para as ideias contemporâneas dos direitos humanos. Podemos reconhecer esta importante filiação, sem ignorar a falta de universalidade das éticas subjacentes (a exclusão das mulheres e dos escravos por parte de Aristóteles é uma boa ilustração dessa ausência de universalidade). Podemos igualmente observar as contribuições positivas de certos elementos da filosofia ocidental para as noções modernas de direito humano, sem ignorar que outros filósofos ocidentais sustentaram outras teses. Assim, as preferências de Platão e de Santo Agostinho pela ordem e pela disciplina, mais que pela liberdade, não eram menos evidentes que as prioridades de Confúcio.

Se procurarmos tais filiações como pano de fundo do pensamento contemporâneo, podemos encontrar relações semelhantes nas culturas não ocidentais. Confúcio não é o único filósofo na Ásia, nem mesmo na China. As tradições intelectuais são muito variadas na Ásia, e muitos autores deram ênfase à importância da liberdade e da tolerância, chegando alguns a ver nisso a própria definição do ser humano. A linguagem da liberdade é muito importante, por exemplo, no budismo, que nasceu e se desenvolveu na Índia para em seguida se estender ao sudeste asiático e ao leste da Ásia, China, Japão, Coreia, Tailândia e Birmânia. Esta abordagem contrasta realmente com a ideia central de Confúcio: a disciplina.

O imperador indiano Asoka, que viveu na Índia no século III a.C. e comandou um império maior que o dos outros reis indianos, dos mongóis e mesmo dos britânicos, interessou-se pela ética pública e praticou uma política “esclarecida” depois de se horrorizar com a visão das carnificinas nas suas vitoriosas batalhas. Converteu-se ao budismo e contribuiu para transformá-lo numa religião mundial, enviando emissários, portadores da mensagem budista, ao exterior, tanto ao Oriente como ao Ocidente. Espalhou pelo território lousas nas quais estavam gravados os princípios de uma vida boa e os deveres do indivíduo e do estado. Essas inscrições conferem particular importância à tolerância face à diversidade: considera-se que “cada ser humano” tem direito a essa tolerância — que diz respeito às liberdades individuais e às maneiras de viver — por parte do estado e dos outros indivíduos. Muitos outros autores da antiguidade e da idade média (além de contemporâneos) em diferentes regiões da Ásia também se empenharam, segundo os mais variados registos, em favor da tolerância.

Não pretendo de forma alguma descartar a reivindicação de “particularidade” do Ocidente sustentando que as culturas asiáticas têm mais argumentos para reivindicar a prioridade do conceito dos direitos humanos. Defendo antes a ideia de que as culturas asiáticas desenvolvem tanto quanto as tradições ocidentais uma grande diversidade de posições. Tanto na Ásia quanto no Ocidente, alguns valorizaram a ordem e a disciplina, ao passo que outros se centraram na liberdade e na tolerância.

Destacam-se duas propostas. Primeiro, admitir que a ideia dos direitos humanos enquanto direitos de todo o ser humano, com um alcance universal absoluto e uma argumentação bem desenvolvida, é recente. Na sua forma precisa, não é uma ideia antiga nem no Ocidente nem em qualquer outra parte. Em seguida, nas tradições e pensamentos antigos, encontramos elementos (como a valorização da tolerância e da liberdade) muito próximos e absolutamente coerentes com a noção moderna de direitos humanos. Podemos encontrá-los nos escritos de certos pensadores asiáticos e nos de autores ocidentais. Podemos assim afirmar que não existe dicotomia cultural global, seja reivindicada pelos que acreditam na “particularidade” do Ocidente ou pelos partidários do autoritarismo asiático.

Variações no interior das civilizações islâmicas

Colocam-se frequentemente questões particulares a respeito da tradição islâmica. Em razão dos conflitos políticos contemporâneos, em particular no Médio Oriente, descreve-se muitas vezes a civilização islâmica como fundamentalmente intolerante e hostil à liberdade individual. No entanto, a diversidade e a diversidade inerentes a cada tradição também se encontram no islamismo. Os imperadores turcos foram não raras vezes bastante mais tolerantes que os seus contemporâneos europeus, e os mongóis na Índia (especialmente o imperador Akbar) chegaram a construir teorias sobre a necessidade de tolerar a diversidade. Os sábios árabes foram receptivos às ideias estrangeiras (a filosofia grega, as matemáticas indianas etc.) e por sua vez empenharam-se em difundir os frutos de seu trabalho intelectual por todo o velho mundo.

Um sábio judeu como Maimónides, no século XII, fugiu de uma Europa intolerante (onde nasceu) e da perseguição dos judeus em busca da segurança que lhe oferecia o Cairo e a protecção do sultão Saladin. Al-Biruni, o matemático iraniano que escreveu o primeiro livro geral sobre a Índia no início do século XI (além das suas traduções para o árabe de tratados indianos de matemática), foi um dos primeiros antropólogos do mundo. Observou — e insurgiu-se contra — o facto de que “a depreciação dos estrangeiros é comum a todas as nações, exercendo-a umas contra as outras”, e dedicou grande parte de sua vida a favorecer a compreensão mútua e a tolerância. Existem naturalmente outros teóricos islâmicos e dirigentes que foram intolerantes e hostis aos direitos individuais, mas devemos levar em conta o alcance da diversidade no interior das tradições islâmicas. Não se pode pretender que a civilização islâmica se oponha de forma genérica à tolerância ou à liberdade individual.

Conflitos entre nações e críticas internas

Ao concentrar-me na diversidade no interior das culturas, não tenho como objectivo afirmar que actualmente os países e as culturas estão divididos igualmente, ao longo do mundo, quanto ao apoio que deve ser dado aos direitos humanos. Por causa da história particular do século das Luzes, do capitalismo de mercado e do estado social, os direitos humanos são muito mais celebrados na maioria das sociedades ocidentais que em muitos países da Ásia e da África. Mas trata-se de uma característica do mundo contemporâneo, e não de uma dicotomia antiga. É bastante importante não apresentar uma distinção moderna como uma oposição antiga, em virtude da qual a pretensa “essência” das culturas asiáticas ou o suposto “fundamento” dos costumes do Oriente se oporia a uma presumida “natureza” da civilização ocidental. Esta leitura sem fundamento da história não só é intelectualmente superficial como contribui para os factores de divisão no mundo em que vivemos. A grosseria gera a violência.

Os partidários dos direitos humanos, assim como os seus opositores, podem tirar proveito de um estudo e de uma compreensão mais profundos das diferentes culturas e civilizações, com suas respectivas diversidades e seus elementos heterogéneos, segundo os diferentes períodos da história. Tentar “vender” os direitos humanos como uma contribuição do Ocidente ao resto do mundo é não apenas historicamente superficial e culturalmente chauvinista como profundamente contraproducente. Isso provoca uma alienação artificial, que não é justificada pelos factos e não contribui para uma melhor compreensão entre uns e outros. As ideias fundamentais subjacentes aos direitos humanos surgiram sob uma forma ou outra em diferentes culturas. Constituem materiais sólidos e positivos para sustentar a história e a tradição de toda a grande civilização.

Mesmo no mundo contemporâneo, é importante ouvir as vozes dos dissidentes de cada sociedade, pois os ministros de Relações Exteriores, os representantes dos governos ou os chefes religiosos não têm o monopólio da interpretação dos valores ou das prioridades morais. A diversidade de opiniões em cada cultura — à qual nos referíamos acima — reflecte-se nas dissidências contemporâneas e na heterodoxia. Os dissidentes podem tomar-se líderes importantes (como Mahatma Gandi ou Nelson Mandela) ou continuar perseguidos e vulneráveis (como os militantes do movimento pró-democracia na China actual); no entanto, as suas opiniões e críticas não podem ser rejeitadas como “estrangeiras” às nações nas quais actuam. A necessidade de reconhecer a diversidade não se aplica apenas entre as nações e as culturas, mas igualmente no interior de cada nação e de cada cultura.

Para concluir…

O conceito de direitos humanos universais oferece bastantes atractivos para o senso comum e para a boa compreensão da nossa humanidade comum. Esta ideia unificadora tem sido objecto de críticas virulentas, por parte de separatistas culturais e de porta-vozes de governos autoritários. Esta ideia universalista tem sido frequentemente utilizada de forma manipuladora pelo chauvinismo intelectual ocidental, pretendendo arrogar-se como o lugar único da tolerância, da liberdade e dos direitos humanos em todos os tempos. Tais críticas e reivindicações são, não raras vezes, profundamente a-históricas. É verdade que há dissensões no mundo, mas as linhas de divergência não coincidem com as fronteiras nacionais, nem com a grande dicotomia entre o Oriente e o Ocidente. Isto aplica-se tanto às tradições do passado quanto às prioridades e às aspirações actuais.

No nosso empenho de levar em conta a diversidade, não devemos ignorar a heterogeneidade no interior de cada país ou cultura nem deixar de reconhecer o apoio dado pelos militantes aos direitos humanos, mesmo sob regimes autoritários. As divergências que observamos nos estudos históricos sobre a heterogeneidade das culturas repetem-se nas que constatamos no mundo contemporâneo. A diversidade no interior dos países pode estranhamente contribuir para unificar o mundo e torná-lo menos discordante. Os direitos humanos podem contribuir para este processo e também dele colher frutos.

Amartya Sen
“Direitos Humanos e Diferenças Culturais”, de Amartya Sen, in Democracia, ed. R. Darnton e O. Duhamel (Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 421–429). Adaptação de Desidério Murcho.
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ISSN 1749-8457