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Crítica
9 de Maio de 2008   Metafísica

Mistificação e linguagem

Desidério Murcho

Ludwig Wittgenstein (1889–1951) declara nas secções 6.44 e 6.45 do Tratactus Logico-Philosophicus (trad. de M. S. Lourenço, Gulbenkian) que “O que é místico é que o mundo exista, não como o mundo é. A contemplação do mundo sub specie aeterni é a sua contemplação como um todo limitado. Místico é sentir o mundo como um todo limitado”. A tradução desta passagem é problemática, e provavelmente não haverá duas iguais. E isso é parte do problema.

A ideia de Wittgenstein é que há um sentimento místico relacionado com o facto bruto de o universo, com tudo o que contém, existir. Está a dar voz à pergunta mais claramente formulada por Gottfried Leibniz (1646–1716) no texto “Da Origem Última das Coisas”: por que há algo e não nada? Muitas pessoas têm a impressão de que esta pergunta é profunda e Wittgenstein dá-lhe uma dimensão esotérica, sugerindo que compreender a própria pergunta é já um acto místico.

Contudo, é defensável que Wittgenstein é vítima da mistificação linguística que ele mesmo criou. Parece-me que o sentimento místico é em si o acto de usar uma linguagem mistificadora sobre o sentimento místico. Se introduzirmos clareza e honestidade na expressão, desaparecem estas fantasias porque desaparecem as palavras e expressões moribundas que dão a aparência de haver pensamento quando não há pensamento algum. Mal nos perguntamos claramente o que realmente se quer dizer com tais coisas, ficamos reduzidos ao silêncio de Crátilo.

O universo existe e poderia não ter existido. Poderia? Não sabemos. Talvez a existência do universo seja necessária, como se defende comummente que é o deus judaico-cristão e islâmico. Parece que quando admitimos que o universo poderia não ter existido precisamos de uma explicação da sua existência, explicação de que não precisamos se a existência do universo não for opcional. Mas isto é uma ilusão. Se precisamos de explicar a existência do que poderia não ter existido, precisamos também de explicar a existência do que não poderia não ter existido. Afinal, por que razão o universo não poderia não ter existido?

O que está em causa é uma maneira subtil de nos fazer parar de pensar num certo ponto e não noutro. Como geralmente se pensa que o universo poderia não ter existido, inventa-se a mistificação de que só por isso é que precisamos de perguntar por que razão há algo e não o nada. E como geralmente se pensa que o deus dos cristãos, dos judeus e dos islâmicos não só existe como não poderia não existir, conclui-se que só este tipo de deus pode explicar a existência do universo. Poderá explicá-la ou não, mas a sua própria existência carece de explicação. Por que razão existe tal deus, e por que razão não poderia não existir?

A mistificação linguística é uma maneira subtil de nos impedir de pensar outra vez quando pensar outra vez revela a infeliz tendência da humanidade para dar voz aos seus desejos mais infantis de conforto e esperança. Que um filósofo lhe chame pomposamente “o místico”, como Wittgenstein, torna a mistificação ainda mais ridícula.

Desidério Murcho
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ISSN 1749-8457