Menu
Crítica
26 de Julho de 2016   Estética

O fim da arte e a dissolução dos ideais revolucionários

Paula Mateus

Em After The End of Art Arthur C. Danto defende que a arte — ou pelo menos um certo tipo de arte — chegou ao fim. A ideia não é nova. É o próprio Danto quem nos informa que entende por “fim da arte” exactamente o mesmo que Hegel já havia anunciado há mais de um século.

Pela designação que tem, a tese do fim da arte pode levar-nos a pensar que Danto e Hegel descrevem um momento a partir do qual não se fazem obras de arte, uma espécie de mundo em que os artistas deixam de existir ou de ter algum papel a desempenhar. Obviamente, uma tese deste género seria afastada com rapidez, caso os seus autores tivessem a pretensão de a aplicar quer ao passado quer ao presente, pois a experiência poderia mostrar que tanto hoje como no tempo de Hegel continuam e existir artistas que produzem obras de arte, e muitas destas continuam a produzir efeitos nas vidas das pessoas que as conhecem.

O fim da arte não é o fim das obras de artes — de quadros, de esculturas, de música ou de literatura. É sim o fim de um tipo de arte que pode ser compreendido pela história da arte, uma história que agrupa estilos, relaciona movimentos, explica obras particulares, e sobretudo, parece mostrar uma linha quase contínua de evolução e progresso artístico. O que morreu não foi a arte, mas sim a possibilidade de explicar a arte através de manifestos e narrativas. Os artistas depois do fim da história comprometem-se mais com a liberdade de escolher qualquer estilo ou tipo de arte, do que com os compromissos dos manifestos. Produzem aquilo que querem, como querem, quando querem. E por isto deixa de poder dizer-se como as obras têm de ser. Podem até ser indiscerníveis dos objectos do quotidiano. A arte que assume estas possibilidades torna-se autoconsciente, filosófica. Numa palavra poderíamos dizer que os artistas do fim da arte não deixam de fazer arte, deixam de fazer história. Quanto a isto, Danto nada acrescenta a Hegel.

Mas para Danto o fim da história não aconteceu com o romantismo, como supunha Hegel, nem Shakespeare é o autor das obras em que a arte se torna autoconsciente. O fim da arte aconteceu nos anos sessenta, com a arte Pop, e Andy Warhol é talvez um dos seus maiores mentores.

Para que um acontecimento nos pareça um fim é indispensável perceber o que está antes dele e como a sua presença marca de facto uma diferença. Para isso, e antes de explorarmos o tema do fim da arte, procuraremos entender o que existe antes dele, na época das narrativas, no curso da história da arte.

Narrativas e manifestos

A era da arte não tem início quando se começam a produzir obras de arte, ou pelo menos aquilo a que hoje chamamos obras de arte, mas sim quando certos objectos começam a ser pensados em termos estéticos. E também não acaba quando deixam de existir obras de arte, mas sim quando a produção das mesmas deixa de ser coerente e quando essa falta de coerência é consciente e assumida. Entre o princípio e o fim da arte conta-se uma história, a história da arte que primeiro foi mimética e depois foi moderna. Danto acredita terem existido duas grandes narrativas da arte, dois grandes discursos acerca do que a arte é e do que deve ser, a saber, o de Giorgio Vasari, no sec. XVI e o de Clement Greenberg no sec. XX. Nas palavras de ambos encontra Danto bons exemplos de como foi possível tornar compreensível em poucas palavras a arte de vários séculos, mostrando em que consiste a essência da mesma e como esta pode ser realizada. É de Greenberg que Danto mais se serve para mostrar o que é uma narrativa e como ela deixou de fazer sentido para a arte dos nossos dias.

Clement Greenberg é conhecido por todos como um dos grandes teorizadores do modernismo, mais propriamente da pintura modernista. Não é Greenberg o primeiro modernista, mas é quem nos oferece uma teorização do modernismo que nos permite compreender como a arte evoluiu até chegar ao modernismo e como deve ser a arte a partir dele. Uma aproximação teórica como a de Greenberg permite compreender tanto o passado como o presente e o futuro da arte. Faz com que ela tenha uma história, uma coerência, um percurso. Segundo Greenberg a pintura deve mostrar os limites e os meios da própria pintura. As influências de Kant em Greenberg são claras: tal como a razão se auto-analisou nas Críticas kantianas, concluindo que a razão prática deve ser pura, também a pintura alcança a perfeição quando se auto-reflecte, quando serve para nos mostrar o que é a própria pintura, quais os seus recursos e os seus instrumentos. A pintura, tal como a razão, deve tornar-se pura, prescindindo de todos os caracteres das outras artes. Não entendamos que a pintura deve tornar-se obrigatoriamente abstracta; a arte modernista como Greenberg a entende pode continuar a ser figurativa, mas terá de prescindir do tipo de espaço em que se moviam as figuras da pintura mimética, porque este é o espaço próprio da escultura. O expressionismo abstracto — com nomes como Jackson Pollock, M. Gorky, Rothko, Frankenthaler e Dubuffet — e posteriormente a pintura do campo de cor (Frank Stella e Paul Jenkins) são a materialização clara do que Greenberg julgava dever ser a pintura.

Uma pintura de Jackson Pollock tornava visível tudo o que Kant havia pensado acerca da beleza. Com ele o público pode ter uma intuição da imaginação criativa à qual não pode ser dado qualquer conceito. A forma e só a forma da pintura, o modo como a tinta se liberta em direcção à tela e esta a recebe, pode provocar um prazer desinteressado, comunicável e universalmente necessário. No juízo de gosto, diz Kant, devem suspender-se a moralidade, as considerações sobre a utilidade do objecto e as expectativas de vantagens pessoais. O respeito de Greenberg pelas palavras de Kant é tal que chega por vezes a atingir momentos caricaturais. Para cumprir o que o mestre havia dito sobre o juízo de gosto, Greenberg costumava utilizar uma técnica curiosa para fazer a apreciação de obras de arte: deslocava-se ao atelier de jovens pintores e pedia que nada lhe fosse mostrado até estar pronto, voltava-se de costas e de repente gritava: “Hit me!”, momento em o quadro lhe era mostrado como que de surpresa. A apreciação resultante desse momento sui generis deveria tornar-se em juízo universal, servindo geralmente de trampolim para a fama aos jovens pintores.

As considerações que Greenberg tece sobre a natureza da arte estabelecem um critério claro para aquilo que deve ser a arte, mas permitem também traçar um percurso mais ou menos contínuo na história da arte a partir dos impressionistas. Com Cézanne as formas representadas aproximam-se das formas da tela e com Manet, por exemplo, torna-se claro que as cores saíram de dentro de boiões de tinta. A partir daí os princípios da arte modernista desenvolvem-se das mais variadas maneiras, deste os expressionistas, como Gauguin, passando por Picasso, pelo suprematismo de Malevich e pelo neo-plasticismo de Mondrian. No entanto, não deve entender-se que os museus de arte moderna se transformaram em exposições de quadrados pretos e rectângulos vermelhos, ou de mulheres bicudas e animais coloridos. Algo mais radical aconteceu com o modernismo. Dado que a forma, e não o conteúdo, passou a ser o objecto da arte, o critério para identificar uma obra como modernista passou também a ser, naturalmente, um certo tratamento “geometrizado” da forma, uma exploração radical das potencialidades e dos instrumentos de cada tipo de arte, e uma especial atenção à cor. Assim, muitas obras feitas antes do aparecimento do modernismo tornaram-se modernistas, nomeadamente o artesanato das chamadas culturas primitivas que até aí se encontrava nos museus de Etnologia. Segundo esta perspectiva, o modernismo parece ter as suas raízes no passado, onde podemos procurar a sua história.

De vez em quando surgem algumas pedras no sapato do modernismo visto por Greenberg. O Surrealismo foi uma delas. O conteúdo, e não a forma, preocupam o surrealismo. É recuperada a representação do espaço tridimensional em que as figuras desfilam. Obviamente, o surrealismo não é um regresso à arte narrada por Vasari, porque a imitação da realidade exterior não é o seu objectivo. Mas se não é nem realismo nem modernismo, que poderá ser? Segundo Greenberg, o Surrealismo é algo que está fora do rumo da história, uma manifestação marginal que em nada contribui para o progresso da arte.

Repare-se que este tipo de exclusão é típico de qualquer narrativa que institua um critério para definir a essência da arte. Os impressionistas já tinham sido alvo de algo muito parecido, quando foram apelidados de loucos, pela apresentação de uma arte que saía fora dos limites da história (out of the pale of history). Sair destes limites é apenas fazer um tipo de arte que não pode ser compreendida à luz das teorias históricas vigentes. Quando um conjunto de obras parece sair dos limites da história, a primeira coisa que há a fazer é tentar interpretá-lo segundo os parâmetros estabelecidos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com as obras mais polémicas de Duchamp. Depois do choque inicial, foi fácil interpretá-las como tentativas do autor de pôr em destaque as propriedades formais (as linhas, as cores, as formas, as texturas) de objectos do quotidiano. O que inicialmente foi um protesto contra a arte do modernismo, tal como é vista por Greenberg, transformou-se em mais um exemplo do mesmo tipo de arte. Quando não é possível fazer este tipo de reintegração, o veredicto é um só: alguns tipos de arte são menores, impuros, desprezíveis, e talvez até indignos do nome “arte”, visto que a essência da arte não se encontra neles.

Os princípios a que obedece a narrativa de Greenberg, que é de certa forma um manifesto da pintura modernista, são comuns a outras narrativas do século XX, mesmo aquelas que são excluídas dos limites da arte traçados por Greenberg. É o caso da arte regulada pelo manifesto Dada, pelos manifestos do Surrealismo, do Futurismo, e outros. Todos eles obedecem à estrutura quase canónica do manifesto comunista: aqueles que estão connosco estão no caminho certo e encontrarão a essência do homem, a verdade, aqueles que não nos seguem são aberrações da história que ela própria se encarregará de eliminar.

Danto atribui a Giorgio Vasari (1511–1574) a narrativa que antecedeu o modernismo. Também esta tem uma estrutura semelhante às já descritas. Esta narrativa entende a arte como imitação da realidade e o seu progresso como a realização de obras de arte cada vez mais próximas da realidade. O início da utilização da perspectiva representou um importante passo nesta direcção. Apesar de Vasari não conhecer a arte que se fez em grande parte do século dezanove, por exemplo, não quer dizer que a sua narrativa não se lhe aplique, dado que, como já foi dito, uma narrativa é um plano daquilo que foi e daquilo que deve ser a arte, é uma história que se conta acerca do modo como a arte deve desenvolver a sua essência. Esta narrativa termina apenas quando a arte deixa de ser feita segundo os princípios delineados por ela, quando aquilo que parecia ser a essência da arte passa a ser entendido apenas como um aspecto contingente. E quando termina uma narrativa é fácil colocar outra no seu lugar, mostrando que a história da arte foi contada até aí de uma maneira incorrecta e “desfocada”.

A arte pop e o princípio do fim

Segundo Danto, a era pós-histórica inicia-se nos anos sessenta com a aparecimento da arte Pop. Os artistas começam, então, a interessar-se pelos objectos do quotidiano e a trazê-los para dentro das próprias obras. O exemplo que mais marcou Danto foi Brillo Box de Andy Warhol. Apesar de ser feito de madeira e não de cartão, Brillo Box poderia facilmente confundir-se com as caixas de cartão onde vinham as embalagens de detergente, as caixas “reais”. Mas a obra é tão real quanto a caixa de detergente, é um objecto eventualmente indiscernível do original. O impacto que Brillo Box causou em Danto foi tal que a questão da indiscernibilidade de idênticos na arte inspirou grande parte da sua obra, nomeadamente o seu artigo mais influente, “The Artworld”.

Não bastará, no entanto, esta característica de grande parte da arte Pop para nos fazer perceber que pode ter esta a ver com o fim da arte. Aliás, Duchamp havia já trazido os objectos mais comuns para dentro da própria arte e nem por isso Danto considera que o fim da arte se inicia aí. Há que notar que, entre as obras de Duchamp e as obras da arte Pop, parece existir uma diferença importante: enquanto que A Fonte de Duchamp se apresenta claramente como um desafio, ou até um protesto, Brillo Box não é um protesto e se calhar nem sequer é um desafio. Os artistas da arte Pop estão reconciliados com o que está à sua volta e provavelmente nem sequer estão muito interessados em destruir seja o que for. Não deve entender-se daqui que não existe qualquer tipo de rebeldia na produção destas obras. É óbvio que existe, mas talvez ela seja mais uma afirmação do que um protesto. É a liberdade que inspira estas obras, é o desejo de poder fazer da arte um palco para a diversidade das pessoas e das suas experiências. Os artistas amam a civilização que conhecem e o lugar comum (commonplace). Não são anti-modernos, mas sim pós-modernos. A reconciliação que se realiza entre o artista e aquilo que o rodeia verifica-se também entre o artista e os vários tipos de arte. Este deixa de ser exclusivamente pintor, escultor ou escritor para poder ser todas estas coisas, mesmo que o seja simultaneamente. Andy Warhol, por exemplo, conseguiu uma boa aproximação ao ideal de reconciliação marxista, em que o homem pode pescar de manhã, guardar o gado à tarde e escrever crítica à noite. E talvez este tenha sido o primeiro momento em que os artistas venceram a dilaceração kantiana entre natureza e razão. Talvez este bem-estar tenha sido um dos golpes mais profundos na vida do modernismo. A revolução total tornou-se desnecessária porque os seus objectivos foram alcançados com naturalidade — ou pelo menos com a naturalidade possível do Flower Power.

Com a arte pop as obras tornam-se impuras (no sentido da narrativa de Greenberg): misturam-se estilos e tipos de arte, cores, formas e materiais. A arte sai da sua redoma: as pinturas deixam de aparecer só em quadros, a escultura faz-se de gesso, de plástico ou até de lixo, as misérias tornam-se estéticas. A desordem instala-se. Tudo é permitido. A proliferação de estilos revela a inexistência de um critério para distinguir a arte do que não é arte. Deixa de ser possível ensinar o que é a arte através da exemplificação porque deixam de existir traços comuns entre as obras. A partir daqui só a filosofia pode tentar mostrar-nos qual a essência da arte e que significa o momento em que ela se encontra.

Deve notar-se que Danto assinala uma diferença entre os conceitos de pós-modernismo e de era pós-histórica. O pós-modernismo pode, a limite, identificar-se com um estilo, ou uma corrente artística, caracterizada pelo carácter heterogéneo das obras, pela repulsa pelos princípios da lógica mais comum, e pela deliberada espontaneidade, se é que uma espontaneidade deliberada pode ser espontaneidade. Estas obras pertencem obviamente ao momento pós-histórico, mas não o esgotam. É perfeitamente possível que continuem a existir pinturas realistas ou tipicamente modernistas na era pós-histórica, só que estas não terão nem exclusividade nem maioria. Na era pós-histórica as obras não têm de ser desta ou daquela maneira; não há limites e por isso não há exclusões. Nada fica de fora dos limites da história, porque a história não tem limites.

Isto não significa que todas as obras, consideradas individualmente, tenham o mesmo valor. O que acontece é que a qualidade deixa de ser uma questão de estilos para passar a ser uma questão de obras. A crítica de arte continua, por isso, a fazer sentido mesmo depois da era pós-histórica.

A propósito da crítica de arte Danto parece revelar por vezes alguma ingenuidade. Diz-nos como se fosse óbvio que o papel do crítico é entender o significado da obra e seu modo de apresentação. Ora, saber qual o significado de uma obra é exactamente uma das coisas mais difíceis de conseguir no que diz respeito à arte. Em “The Artworld” Danto dá-nos, de facto, indicações sobre o modo como isto pode ser feito:

Sem a teoria provavelmente não o veríamos [a caixa de Brillo] como arte, e de forma a podermos vê-lo como parte do mundo da arte, deveremos ter tido contacto com uma grande quantidade de teoria artística e de história recente da pintura de Nova Iorque. Não poderia ter sido arte há cinquenta anos. […] O mundo tem de estar preparado para certas coisas e o mesmo acontece com o mundo da arte. É o papel das teorias artísticas, agora e sempre, tornar o mundo da arte, e a arte, possíveis. (“The Artworld”, The Journal of Philosophy, LXI, 1964)

Em After The End of Art, mostra através de um exemplo os princípios gerais da crítica já indicados:

Primeiro o quadro funciona por si mesmo. Ele é vermelho. É quadrado e não muito grande. Está colocado convenientemente à altura dos olhos numa parede com bastante espaço livre à sua volta. […] O objecto está pendurado na parede como se fosse uma pintura. De facto ele está pintado, ele é uma pintura. Que tipo de referências faz como pintura? […] o suporte de madeira vem da Renascença, […] a superfície colorida de uma só cor pertence à tradição da pintura monocromática, a forma quadrada é neutra e moderna, o tamanho é humano, não sendo nem grande nem pequeno, a única pintura é um exemplar do trabalho do artista. (Robert Nickas e Xavier Douroux, Red, Brussels: Galerie Isy Brachot, 1990, citado em After The End of Art, p. 168)

O que Danto quer exactamente dizer quando indica o papel do crítico tornar-se-á um pouco mais claro adiante, quando considerarmos o que é a essência da arte. Todavia, não nos será dito como o crítico avalia, de facto, as obras particulares. Quando se refere à crítica, Danto parece esquecer que é também a função do crítico atribuir um valor a cada obra, e não apenas mostrar as relações que estas podem ter com a arte já existente, o seu conteúdo ou o seu modo de apresentação. É compreensível que o faça, uma vez que a tese do fim da arte implica a inexistência de critérios específicos de avaliação, como existiam com o modernismo ou com a arte mimética. Mas como crítico e como filósofo não seria de esperar que o fizesse…

O fim da arte

Uma das teses mais difíceis e enigmáticas acerca do fim da arte é a da afirmação da natureza filosófica das obras da era pós-histórica. Diz-se que elas se tornam autoconscientes. Mas esta autoconsciência não poderá significar que a arte se torna objecto para si mesma, tal como acontece com a pintura modernista (destinada a mostrar o que é a pintura) porque esta é uma característica da arte modernista. Se significa que a arte serve para fazer pensar acerca da própria arte e da sua natureza, teremos de saber em que se distingue uma obra de arte de um texto filosófico.

A ideia de um desenvolvimento tripartido que culmina num momento de autoconsciência é claramente hegeliana. O Espírito reconhece-se nesse momento e percebe as suas manifestações, a sua história, torna-se consciente de si mesmo quando entende que todos os seus momentos são necessários e que a sua essência histórica chegou agora a bom termo. O momento pós-histórico da arte é comparável à realização do Espírito Absoluto. A arte sabe agora qual é a sua essência, compreende a sua história e percebe que todos os “estádios de evolução” foram necessários. Não há nada de problemático nos momentos anteriores da história da arte porque também eles manifestam a essência da arte. Com o fim da arte chega também ao fim qualquer revolução, porque as revoluções justificam-se enquanto meios para atingir a plenitude que, neste momento, foi já atingida. Tal como Hegel se julga o profeta do fim da história, Danto apresenta-se em After The End of Art como aquele cuja clarividência permitiu anunciar o fim da arte, tornando a arte consciente de si mesma.

O que é exactamente a essência da arte, é algo difícil de perceber nas palavras de Danto. A Fonte e Brillo Box não provam que não exista uma essência na arte, provam sim que aqueles que até agora tentaram dizer o que ela é estavam errados. Para Danto, a essência da arte é histórica e Hegel foi o único que a compreendeu. Segundo Hegel a apreciação das obras de arte deve fazer-se atendendo a dois aspectos já aqui mencionados: 1) O conteúdo da arte, 2) o meio da apresentação. Do modo como ambos se relacionam resulta a própria obra. Se um dado conteúdo for apresentado de duas maneiras teremos duas obras e não uma. Se um artista nos quiser dizer alguma coisa acerca da contingência da existência humana, por exemplo, poderá fazê-lo através do drama ou da comédia. Mas a escolha de um ou de outro condicionará também a mensagem a transmitir. Podemos entender até que um conteúdo específico requer o meio de apresentação adequado a ele, que as coisas que um artista quer dizer só podem ser ditas de uma certa maneira, recorrendo a um certo meio de apresentação. Só na conjugação dos dois existe propriamente a obra. Danto aceita que estas duas condições não são conjuntamente suficientes para termos uma obra de arte. A definição de arte só parcialmente deve ser feita a partir delas. No entanto, se retomarmos o que Danto nos diz em “The Artworld” poderemos perceber um pouco melhor o que é a essência da arte.

De acordo com o estado da arte num determinado momento histórico, algumas obras são possíveis enquanto que outras são impossíveis. Por estado da arte entende-se o conhecimento da história da arte que têm as pessoas que usualmente se relacionam com as obras, bem como o conjunto de teorias estéticas que estas dominam. Reconhecer um objecto como obra de arte será, torná-lo possível à luz destes dois elementos. Um objecto só se torna uma obra de arte quando o contexto o permite.

É exactamente este contexto que determina a maneira como se relacionam o conteúdo da obra e o modo de apresentação. Em qualquer momento histórico os artistas têm coisas a dizer que, obviamente se relacionam com o modo como vivem o seu momento histórico. No entanto, nem todos os modos de apresentação (aliás, como nem todos os conteúdos) estão disponíveis à partida. Eles surgem na história e passam a fazer parte do mundo da arte, tal como Danto o entende, a partir do momento em que podem ser entendidos à luz da história da arte e das teorias estéticas disponíveis. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com os impressionistas. O modo de apresentação que propunham era o único que se adequava ao que queriam dizer. Se o dissessem de outro modo ele seria alterado. Embora o mundo da arte não estivesse preparado para reconhecer as obras dos impressionistas como arte, em breve se criaram os instrumentos para o fazer. À medida que as obras se tornavam mais familiares, foi possível entendê-las como uma continuação do esforço de representação há muito iniciado, trazendo também agora para a arte alguma referência à percepção humana. As obras dos impressionistas passam assim a fazer parte do mundo da arte.

Poder-se-á concluir, então, que ser historicamente determinada é a essência da arte. O erro de Greenberg, tal como o de todos aqueles que identificaram um estilo determinado com a essência da arte, foi o de não perceberem que aquela era a arte necessária num momento específico da história e não a arte necessária em si. O que parecia uma necessidade era, afinal uma contingência. Parece ser exactamente isto o que Hegel tem em mente quando nos explica a arte simbólica ou a arte clássica como momentos transitórios mas indispensáveis ao desenvolvimento, a caminho da consciencialização da arte com o Romantismo.

No momento pós-histórico, a arte torna-se consciente porque os artistas perceberam já que uma obra é um conteúdo veiculado por um modo de apresentação. Ambos são historicamente determinados. A conjugação dos dois só resultará numa obra de arte quando o mundo da arte a reconhecer como tal. Os artistas podem perceber a história da arte como uma sucessão de manifestações da sua essência, e ao fazê-lo realizam a compreensão num todo daquilo que o entendimento percebia anteriormente como contraditório. O fim da história é também o fim da arte. O Espírito auto-reconheceu-se nas suas manifestações finitas.

Uma das características do momento pós-histórico, que deriva exactamente dessa autoconsciencialização da arte, é a proliferação de estilos. Os artistas têm hoje ao seu dispor mais meios de apresentação do que nunca, e através deles pode veicular-se um número infinitamente maior de mensagens. Reconhecendo que não há “o modo como a arte tem de ser”, os artistas fazem dela o que querem. Todavia, a arte também é hoje o que o mundo da arte e o momento histórico permitem que ela seja. A diferença é que estes permitem muito mais do que anteriormente, porque perceberam a essência da arte.

A possibilidade de usar os estilos dos períodos históricos anteriores, não equivale a dizer que eles têm a mesma função que tinham quando surgiram. Um modo de apresentação serve um determinado conteúdo, adequa-se a ele, mas não a outros. Podemos desenhar como os homens das cavernas ou criar música barroca, mas não nos podemos relacionar com eles como se vivêssemos no momento histórico em que surgiram. Isso não inviabiliza que os possamos incluir em obras contemporâneas, caso esta inclusão nos permita construir um modo de apresentação que mais convém ao conteúdo que queremos transmitir. De certa forma, talvez possamos concluir que a proliferação de modos de apresentação sensíveis serve a emancipação do conteúdo, tal como ela se verifica, segundo Hegel, do simbolismo até ao romantismo. A arte conceptual seria, assim, uma das expressões mais filosóficas da arte, um momento em que a arte se apresenta em conceitos e já não em formas sensíveis. A autoconsciencialização e a essência estariam então realizadas e nada de novo poderia existir no futuro que não fosse o cumprimento desta essência e desta auto consciência.

As dificuldades de After The End of Art

Uma das questões que foi deixada por explicar em After The End of Art foi a de saber o que é exactamente esse conteúdo que os artistas transmitem e o modo como lhe podemos aceder. Ele não poderá ser exclusivamente de natureza histórica, dado que se calhar nem todas as obras espelham o seu tempo, a vida do artista ou o que o artista pensa dela. Seria fácil encontrar obras que tanto poderiam pertencer a um século como a outro, a um artista como a outro. Se Hegel nos diz que é o Espírito que se manifesta na história — na arte, na religião e na filosofia — já Danto não é claro quanto ao que se manifesta nas obras de arte. Talvez Danto esteja a pensar na “Arte” (um conceito parecido com o de Espírito) que se manifesta nas obras finitas, dado que estas parecem ser o meio pelo qual uma outra coisa se revela, mesmo que esta outra coisa também sejam elas próprias (tal como os povos manifestam o Espírito e são o Espírito, mas não esgotam o Espírito). Mas isto certamente não é claro.

Se pretendermos, como sugere Danto, encontrar o conteúdo das obras recorrendo ao mundo da arte, ou seja às informações da história da arte e às teorias estéticas, estaremos a comprometer-nos com uma arte para minorias, uma arte apenas acessível aos conhecedores de arte, e completamente estranha ao público pouco informado. Contudo, o século XX parece ter sido aquele em que a arte desceu à rua e se tornou acessível às massas. Certamente, e apesar de ser um objecto do quotidiano, Brillo Box não faz parte das obras que a maioria das pessoas está disposta a aceitar como arte, mas parece inequívoco que hoje o público da arte é bem mais vasto do que anteriormente e que o estatuto de obra de arte é reconhecido hoje a uma maior diversidade de obras. Dever-se-á este facto à proliferação de estilos? Terão as massas sido informadas em matéria de história da arte? No que respeita às teorias estéticas não me parece que o tenham sido… Que aconteceu à arte ou que aconteceu ao público para que esta mudança se tenha verificado?

A definição de arte proposta por Danto terá todos os problemas das definições “externistas” da arte. Fica por explicar por que dois críticos com exactamente as mesmas informações acerca da história da arte e das teorias estéticas podem destacar aspectos diferentes numa mesma obra, ou mesmo avaliá-la de maneiras radicalmente distintas, tendo ela sempre as mesmas propriedades formais. Em resumo podemos dizer que a questão da interpretação se coloca não só para o público em geral, mas também para o público especializado que são os críticos. A sua posição é ambígua em After The End of Art. Se os críticos têm de reconhecer um objecto como uma obra de arte, poderemos facilmente imaginar que por vezes façam um esforço pouco honesto para que uma obra do seu interesse seja reconhecida como tal. Por outro lado, não é também absurdo supor que existam obras já realizadas que nenhum crítico ainda teve oportunidade de apreciar e reconhecer. Não serão estas já obras de arte? Parece um pouco “injusto” ou inapropriado que uma obra não possa ser reconhecida como tal apenas porque no mundo da arte não existem estruturas para isso, passando muitas vezes a sê-lo apenas porque um crítico assim o decide…

Para além disso, a função daqueles que conhecem o mundo da arte (que não são apenas os críticos) levanta problemas de linguagem. Que poder têm as palavras daqueles que instituem um objecto como uma obra de arte? Que relação se estabelece entre alguém que reconhece um objecto como obra de arte e um público que aceita esse reconhecimento? Ou seja, que tipo de aceitação implícita esperam os críticos quando transformam um objecto numa obra de arte, apenas com as suas palavras?

Quando lemos After The End of Art, não podemos deixar de ter a sensação de uma certa localização das palavras de Danto. A arte que mudou foi arte feita em Nova Iorque depois dos anos sessenta. Serão as obras que Danto caracteriza como as obras livres da era pós-histórica reveladoras do estado geral da arte? Poderemos concluir a partir delas uma transformação global na arte? Poderemos aceitar o fim da arte, como Danto o expõe? Não será o estado da arte actual revelador da prosperidade económica que se verifica na Europa e Estados Unidos nas últimas décadas? Se esta prosperidade regredir, se por qualquer outro motivo os artistas voltarem a sentir a dilaceração (provocada, por exemplo, pelo aumento excessivo do consumo) não voltará a arte a ser revolucionária? Se podemos aceitar estas possibilidades é porque o fim da arte não é assim tão óbvio, ou pelo menos tão necessário quanto Danto sugere…

Talvez a maior dificuldade de After The End of Art seja a possibilidade de entender a tese do fim da arte como mais uma narrativa, com aspectos muito semelhantes aos das narrativas anteriores: a arte é explicada a partir de uma suposta essência que se desenrola ao longo da história, atinge um fim ou ponto de realização máxima e do seu percurso algumas manifestações são excluídas, porque ficam fora dos limites da história. No caso da narrativa de Danto, ficariam fora dos limites da história todas as obras que depois dos anos sessenta fossem realizadas sem que os artistas tivessem conhecimento da essência da arte, e obviamente todas as que não fossem reconhecidas pelo mundo da arte. Mas se a tese do “fim da arte” for mais uma narrativa, então a arte pode não ter chegado ao fim…

Paula Mateus
Intelectu, 2 (Agosto de 1999).

Bibliografia

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457