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21 de Dezembro de 2010   Lógica

Nietzsche sobre a lógica

Steven D. Hales
Tradução de Desidério Murcho
“Todos os filósofos são tiranizados pela lógica”.
(Humano, Demasiado Humano §6)

As críticas de Nietzsche à lógica ocupam um lugar muitíssimo peculiar na história da filosofia. Nos mais de cem anos desde que ficou louco, o conhecimento da lógica e a sensibilidade a ela tornou-se para muitos um sine qua non do filosofar. Este facto, juntamente com o renascimento dos estudos sobre Nietzsche, leva-nos a esperar que a bibliografia secundária contenha várias avaliações cuidadosas das suas críticas. Contudo, entre as 1912 entradas de Nietzsche Scholarship in English: A Bibliography 1968-1992, de Hilliard, não há um só artigo dedicado ao tratamento da lógica por parte de Nietzsche, e também nada se encontra entre as 4566 entradas de International Nietzsche Bibliography (1968), de Reichert e Schlecta!1 Mesmo nos textos canónicos sobre Nietzsche há pouquíssimo no que respeita à lógica. Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist, de Kaufmann, faz silêncio sobre a questão, e Nietzsche: Life as Literature, de Nehamas, faz quase o mesmo.2 Nos livros de Clark, Danto e Schacht há apenas umas poucas páginas que dizem respeito às preocupações de Nietzsche.3

A pobreza da bibliografia secundária é suficientemente estranha, mas o próprio conhecimento de Nietzsche da lógica parece um pouco excêntrico. Como filólogo clássico, Nietzsche estava certamente ciente da lógica aristotélica tradicional, chegando até a lançar-se numa reductio ad absurdum contra um oponente (BGE 15).4 E é claro que Nietzsche leu Kant e Hegel, acusando os seus seguidores de serem “operários filosóficos” por empurrarem os dados do passado para fórmulas lógicas rígidas (BGE 211). Contudo, Nietzsche parece ignorar completamente as estrelas da lógica do século XIX. Por exemplo, em 1847 os pais da lógica moderna, Augustus De Morgan e George Boole, publicaram Formal Logic e Mathematical Analysis of Logic, respectivamente. Gottlob Frege, o inventor da lógica de predicados quantificada, publicou o seu seminal Begriffsschrift em 1879 e Die Grunlagen der Arithmetik em 1884. Apesar de estas obras estarem disponíveis no decurso da sua vida produtiva, não há qualquer indício de que Nietzsche tenha lido qualquer delas, ou sequer estivesse ciente delas. Além disso, Nietzsche não menciona em lugar algum John Venn ou C. S. Peirce, e o seu conhecimento de John Stuart Mill parece restringir-se ao pensamento ético. Há também algumas peripécias curiosas: Nietzsche refere-se ao hoje esquecido Afrikan Spir — uma espécie de fenomenalista neo-kantiano que defendia o princípio da identidade como uma verdade sintética a priori — como um “excelente lógico” (HATH 18).5

Dado a sua compreensão imprecisa e idiossincrática da lógica, o que está Nietzsche exactamente a criticar quando ataca a lógica? Esta é a pergunta inicial a que este ensaio procura responder. Nos seus textos, encontramos uma baralhada de passagens superficialmente contraditórias e aparentes vacilações com respeito à lógica. Como é habitual, isto exemplifica o estilo retórico favorito de Nietzsche — uma obliteração aparente de uma posição, seguida de um recuo para a abraçar parcialmente. Exemplos desta táctica incluem a sua denúncia da vontade (BGE 19) e depois uma defesa da vontade de poder; a rejeição da causalidade (WP 551) e depois uma forte dependência do “poder”, uma noção aparentemente causal; a sua malevolência perante o cristianismo, seguida de uma admissão de que Jesus (com algumas reservas) foi um espírito livre (AC 32); e a sua declaração de que não há quaisquer factos morais (BGE 108, TI VII 1), juntamente com fórmulas para a grandiosidade e receitas para a virtude (EH II 10, AC 11).6 A linguagem de Nietzsche é muitas vezes poderosa e é fácil ficarmos enleados na primeira parte da sua táctica e perder de vista a segunda. Assim, temos de ser cuidadosos ao considerar a sua invectiva contra a lógica.

Em HATH 11 Nietzsche declara: “A lógica […] repousa sobre pressupostos que não correspondem a algo de real no mundo, e.g., no pressuposto da igualdade das coisas, a identidade da mesma coisa em diferentes pontos do tempo”. Em TI III 3 encontramos o seguinte: “[…] ciência de fórmulas, sistemas de signos: tal como a lógica e essa lógica aplicada, a matemática. Nestas, a realidade não aparece sequer, nem sequer como problema; tão pouco quanto a questão de que valor poderá possivelmente ter um sistema de signos convencionais como o que constitui a lógica”. A Vontade de Poder contém muito desta crítica; e.g., §512: “A vontade de verdade lógica pode ser levada a cabo apenas depois de se pressupor uma falsificação fundamental de todos os acontecimentos […] a lógica não emerge da vontade de verdade”. WP 516: “A lógica (como a geometria e a matemática) aplica-se apenas a entidades fictícias que criámos. A lógica é a tentativa de compreender o mundo efectivo por meio de um esquema de ser postulado por nós mesmos; mais correctamente, de o tornar formalizável e calculável para nós”. WP 521: “O mundo parece-nos lógico porque o tornámos lógico”. Finalmente, uma nota do início da década de 1870: “a lógica é apenas escravidão nos grilhões da linguagem”.7

Sem dúvida que a sua linguagem é forte, e não é surpreendente que Ofelia Schutte conclua de passagens tais que Nietzsche via a lógica mais como uma inimiga do que como uma amiga (p. 28), tendo considerado silenciar a lógica (p. 29), tendendo a eliminar a necessidade da lógica (p. 31), apresentando a lógica e a vida como adversárias (p. 36), e pretendendo que os seus ensinamentos fossem além da lógica (p. 34).8 Nem é chocante que Michel Haar infira que Nietzsche encoraja a descrença nas leis da lógica (p. 6), visando destruir a lógica (pp. 6-7), repudiando os princípios lógicos (p. 34), e oferecendo uma filosofia que foge da lógica conceptual (p. 6).9 No mesmo campo, Alan Schrift sustenta que Nietzsche considera a lógica um aborto intelectual do qual não podemos senão retirar conclusões ilusórias, e que a lógica não combina com os preceitos mais básicos de Nietzsche.10 Contudo, estes filósofos estão profundamente enganados quanto às perspectivas finais de Nietzsche, arriscando-se muito ao ignorar variadíssimas passagens cruciais.

Apesar das suas óbvias reservas sobre aspectos da lógica, Nietzsche está certamente ciente também dos seus aspectos positivos. Em HATH 256 escreve: “A escola não tem tarefa mais importante do que ensinar o pensamento rigoroso, o juízo cuidadoso, as conclusões lógicas”; e em HATH 271: “O maior progresso realizado pelos homens repousa em aprender a tirar conclusões correctas.” (Itálico de Nietzsche.) TI VIII 7 faz eco disto, denegrecendo as universidades alemãs porque “mesmo entre os próprios estudantes de filosofia, a teoria, a prática, a vocação da lógica começa a morrer”. Em GS 191, reconhece claramente a diferença entre bons e maus argumentos, e critica veementemente os últimos; e em GS 348 elogia profusamente os judeus por argumentarem logicamente, afirmando que a Europa muito lhes deve por terem promovido “hábitos intelectuais mais limpos”. Em BGE 21 critica a ideia de causa sui por ser uma “violentação e perversão da lógica”. Dificilmente estas serão afirmações de alguém que se dispôs a entregar-se à destruição por atacado da lógica. Quanto à afirmação de Schutte de que Nietzsche tencionava estabelecer a vida e a lógica como adversárias — a unicidade fluida livre dionisíaca em contraste com a rígida razão logocêntrica — Nietzsche afirma muitas vezes exactamente o oposto! Por exemplo, numa nota inicial escreve que “Ninguém pode viver no seio de tal negação da razão […] Isto demonstra que a crença na lógica e a crença em si são necessárias para a vida”. (“Drafts” 177). Treze anos depois estava ainda disposto a afirmar aproximadamente o mesmo: “Sem aceitar as ficções da lógica […] o homem não poderia viver” (BGE 4). Compare-se a sua afirmação em WP 522 de que “O pensamento racional é interpretar segundo um esquema que não podemos deitar fora” (itálico de Nietzsche). Assim, não apenas a lógica não se opõe à vida, mas de facto a lógica e o pensamento lógico são condições necessárias para viver.

Não pretendo sugerir que Nietzsche é inequívoco neste aspecto. Nas passagens acabadas de citar Nietzsche afirma que a lógica e a racionalidade são necessárias para a vida, e isto é, aparentemente, a sua posição habitual. Por vezes, em especial no seu precoce ensaio não publicado “Sobre a Verdade e as Mentiras num Sentido Não Moral”, enfraquece a sua afirmação de que são apenas necessárias para pensar, e que a vida poderia ser possível sem elas (cf. TI VIII 7). Em OTL p. 84, Nietzsche escreve que “tudo o que distingue o homem dos animais depende da sua capacidade para volatilizar as metáforas perceptivas num esquema, dissolvendo assim uma imagem num conceito”. Assim, os seres humanos entregam-se a um processo que abstrai das impressões sensoriais para formar conceitos e demarcar objectos. Na expressão feliz de Magnus, “a razão cronofóbica ossifica o fluxo irrestrito”.11 Em última análise, esta conceptualização dá origem ao “grande edifico dos conceitos” (OTL p. 85) que “exala […] lógica”. No §2 de OTL Nietzsche discute o “homem de intuição” que estilhaça o edifício conceptual existente com novas metáforas, mitos e arte. Apesar de o homem de intuição parecer viver ilogicamente, pode na realidade não pensar de todo em todo. Nietzsche afirma que quando a “teia de conceitos é rasgada pela arte” (OTL p. 89), o homem está apenas a sonhar. Passa então a caracterizar as pessoas miticamente inspiradas, como os antigos gregos, afirmando que vivem num sonho. Assim, o argumento de OTL é, ao que parece, que o pensamento propriamente dito apoia-se essencialmente na estrutura conceptual, e por isso na aceitação da lei lógica. Mesmo que a vida seja possível sem pensamento racional ou categorias lógicas, o pensamento não o é. Compare-se com o seu comentário em WP 522 de que “paramos de pensar quando nos recusamos a fazê-lo sob as restrições da linguagem”. Como se verá, Nietzsche considera a lógica nada mais do que a estrutura profunda da linguagem. Tendo isto em vista, a restrição da linguagem não é mais do que a restrição da sua lógica subjacente, e uma vez mais vemos que abandonar a lógica significa parar de pensar.

É evidente que Nietzsche faz afirmações bastante substanciais no que respeita à lógica e à razão: hesita entre considerá-las essenciais para a própria vida ou considerá-las apenas essenciais para o pensamento. De um modo ou do outro, está muito longe de encorajar a destruição da lógica, ou do repúdio dos princípios lógicos, ao contrário do que Haar afirma. Mas talvez Haar, Schutte e Schrift possam responder como se segue. Nas passagens críticas (TI III 3, e.g.), Nietzsche parece centrar-se na lógica como uma “ciência de fórmulas” ou “sistema de signos”. Por outras palavras, é a lógica formal propriamente dita que Nietzsche ataca. Nas passagens aparentemente favoráveis à lógica, Nietzsche não está a elogiar a lógica formal, mas antes a defender a argumentação clara, a racionalidade e o pensamento sem estar poluído pela superstição. De modo que se separarmos a lógica enquanto ciência formal, por um lado, e o pensamento racional, por outro, Nietzsche pode ser interpretado como um crítico da primeira, ainda que seja respeitoso quanto à segunda. Haar et al. têm assim razão quanto ao lado crítico de Nietzsche, ainda que sejam algo insensíveis aos seus comentários positivos.

Apesar de esta ser uma postura interpretativa possível, esta proposta não é, em última análise, sustentável. Há pelo menos duas razões para isto. A primeira é que Nietzsche não separa claramente as questões de lógica formal e do pensamento racional. Apesar de ser verdade que por vezes Nietzsche parece ter a lógica formal em mente (e.g. TI III 3) e noutras parece centrar-se na racionalidade (e.g. WP 522), a maior parte do tempo as duas coisas estão fundidas. Veja-se HATH 265 e 271, onde canta hinos à actividade de retirar conclusões lógicas. É este processo de retirara conclusões lógicas apenas o resultado do pensamento rigoroso e não dogmático, ou há uma conexão com a lógica enquanto ciência do raciocínio correcto? É difícil dizer. E quanto a TI VIII 7, onde Nietzsche lamenta o desaparecimento da lógica como vocação nas universidades alemãs? Talvez aqui a queixa de Nietzsche seja apenas que os estudantes universitários são mentalmente moles e pouco dados ao pensamento. Contudo, é difícil sustentar esta interpretação, dado que na mesma passagem Nietzsche refere-se especificamente à teoria da lógica como uma das coisas que receia estar a desaparecer. Além disso, Nietzsche meter a razão e a lógica no mesmo saco, dedicando um capítulo inteiro em TI — ““Razão” na Filosofia” — a essa crítica. É claro que a própria falta de clareza de Nietzsche não é em si suficiente para impedir que um comentador imponha um esquema interpretativo que desambigúe os textos. A segunda razão contra a dicotomia entre o pensamento racional e a lógica formal é mais fundamental. Vimos que Nietzsche considera que a restrição da linguagem é essencial para pensar e portanto para o pensamento racional. Argumentarei depois que Nietzsche encara também a lógica como a infra-estrutura da linguagem. Assim, a lógica, enquanto semântica formal da linguagem natural, e o pensamento estão inextrincavelmente ligados para Nietzsche. Sejam quais forem as suas perspectivas finais quanto à lógica formal e quanto ao pensamento racional, estão no mesmo barco.

Qual é exactamente, afinal, a sua queixa contra a lógica? Precisamos de examinar as suas afirmações de modo mais preciso para determinar precisamente quais são as características da lógica que Nietzsche promove, e quais são as que considera problemáticas. Duas características fulcrais da lógica que Nietzsche põe em causa são uma suposta dependência da identidade, e um postular ilusório de objectos. No citado HATH 11, Nietzsche afirma que a lógica pressupõe a identidade persistente das coisas ao longo do tempo, e em BGE 4 afirma que o auto-idêntico é parte de um “mundo totalmente inventado”. Em GS 111 e WP 510 sugere que a origem da própria lógica se enraíza num desejo de postular coisas diferentes como idênticas. Além disso, declara que todos os conceitos (OTL p. 83), incluindo o de substância (GS 111), emergem da igualização de coisas desiguais. Isto considera Nietzsche um “artigo de fé” erróneo (GS 110). Considere-se também o seu ataque à coisidade — “a nossa crença em coisas é a condição prévia da nossa crença na lógica” (WP 516). WP 558 faz eco disto ao afirmar que “a coisidade só foi inventada por nós devido às exigências da lógica”. Contudo, não há coisas, pelo menos realmente, e portanto a lógica só se aplica a “entidades fictícias” (WP 516).

Está muita coisa em causa nestas passagens, o que obriga a considerá-las cuidadosamente. Eis algumas das afirmações que Nietzsche parece estar a fazer:

  1. A lógica pressupõe a existência de coisas;
  2. as coisas são apenas ficções inventadas pelos seres humanos;
  3. a lógica pressupõe a identidade persistente das coisas ao longo do tempo;
  4. a lógica pressupõe a identidade das coisas num instante;
  5. não há identidade ao longo do tempo; e
  6. nada é auto-idêntico, ou só as “ficções” o são.

Examinemos a primeira afirmação. É verdade que a lógica pressupõe a existência de coisas? Uma resposta adequada a esta pergunta exige a introdução de alguns dos instrumentos adquiridos no último século de desenvolvimento lógico. Dada a compreensão imprecisa e rudimentar que Nietzsche tinha da lógica, poder-se-á considerar que esta é uma metodologia inapropriada. Há duas boas razões para não o pensar. Primeiro, estamos interessados em saber se as posições em que Nietzsche aposta são verdadeiras ou, se o não forem, se pelo menos fazem sentido e são consistentes. Ignorar o que se aprendeu sobre a lógica desde o tempo de Nietzsche é simplesmente uma abordagem retrógrada a uma questão técnica. Segundo, os conceitos e a clareza do vocabulário moderno podem iluminar problemas a que Nietzsche só confusamente podia aludir.

A interpretação de Nietzsche proposta por Clark, por exemplo, padece de não subscrever completamente esta metodologia. Clark argumenta que nas suas obras iniciais Nietzsche sustenta que a lógica falsifica a realidade (a lógica pressupõe que há coisas reais “lá fora” quando só há ficções, que há coisas idênticas, etc.), ao passo que na sua obra tardia Nietzsche aborda a lógica como uma ciência formal que nada diz sobre a realidade.12 Em defesa desta última afirmação, Clark refere a citada passagem TI III 3, na qual Nietzsche afirma que nos sistemas de signos como a lógica a realidade não surge sequer como um problema. Assim, Clark atribui a Nietzsche uma mudança no seu pensamento sobre a lógica. Contudo, há uma explicação alternativa dos dados. A lógica moderna divide-se em sintaxe e semântica, e quando se insere as afirmações de Nietzsche neste quadro de referência, a explicação de Clark é desnecessária. É o aspecto sintáctico da lógica que se mantém à distância do mundo; fornece regras para a manipulação de operadores, conectivas, quantificadores, letras predicativas, variáveis e constantes do sistema formal, para mudar símbolos de lugar e para demonstrar teoremas a partir de axiomas. A sintaxe e a teoria da demonstração nada dizem sobre o mundo e nada pressupõem quanto à aplicabilidade dos símbolos da nossa linguagem formal a seja o que for. Com respeito à sintaxe, TI III 3 está perfeitamente correcta — a realidade não surge sequer como problema. Contudo, dado que não compete à sintaxe preocupar-se com a realidade, ou saber se a lógica e a matemática podem aplicar-se a algo, isto não deveria ser surpreendente.

A interpretação das fórmulas da lógica compete à semântica. A semântica especifica domínios não vazios de entidades, ou universos de discurso, juntamente com uma função de interpretação que nos leva dos símbolos fornecidos pela sintaxe para as entidades no domínio. Ou seja, a semântica ocupa-se do significado dos nossos símbolos lógicos. A função de interpretação atribui um só objecto no domínio a cada constante, diz-nos a que coisas as variáveis se aplicam, e fornece uma extensão no domínio para cada letra predicativa. Com respeito à semântica, WP 516 e 558 estão correctas — a coisidade é uma exigência da lógica. Isto é, para que os símbolos e fórmulas da lógica tenham significado ou para que tenham aplicabilidade, precisamos de conjuntos de coisas que os símbolos e fórmulas possam referir. A natureza destas coisas é uma questão complementar que, estritamente falando, está para lá do alcance da lógica, sendo mais apropriadamente objecto da metafísica ou da ontologia. Em qualquer caso, é perfeitamente consistente que Nietzsche sustente simultaneamente que a lógica pressupõe a existência de coisas, e que a lógica nada diz sobre a realidade. A primeira é verdadeira se for interpretada como uma afirmação sobre a semântica, e a segunda se for interpretada como uma afirmação sobre a sintaxe. Assim, não estamos obrigados a concluir, como Clark, que ao longo do tempo Nietzsche mudou de ideias quanto à lógica. Nem temos sequer de concluir que Nietzsche compreendia bem a distinção aqui traçada entre sintaxe e semântica. Sugiro apenas que é plausível que no seu pensamento sobre sistemas de símbolos, Nietzsche se sentia atraído igualmente pelas duas ideias superficialmente conflituantes de que a lógica tem e não tem pressupostos sobre a realidade. Ao aplicar a distinção entre sintaxe e semântica da lógica moderna podemos explicar de maneira consistente estes dois impulsos, de um modo que ambos se revelam verdadeiros.

Assim, a primeira afirmação de Nietzsche sobre a lógica, de que pressupõe a existência de coisas, é verdadeira com algumas reservas. A reserva principal é que só as fórmulas lógicas interpretadas pressupõem a existência de coisas. As fórmulas não interpretadas nada pressupõem sobre as coisas e são, na expressão de Nietzsche em OTL p. 81, “cascas ocas” que nada dizem sobre a realidade. Até aqui, Nietzsche ainda não fez grandes críticas à lógica, e a sua primeira afirmação é facilmente integrável na teoria lógica moderna. Que dizer, contudo, da segunda afirmação, segundo a qual as coisas são apenas ficções intentadas pelos seres humanos? Neste caso, trata-se de um exemplo do seu anti-realismo consumado. O realismo e o anti-realismo estão no centro de uma parte importante do debate actual, e são termos notavelmente escorregadios.13 Putnam caracteriza bem o género de realismo a que Nietzsche se opõe:

Nesta perspectiva, o mundo consiste numa totalidade fixa de objectos independentes da mente. Há exactamente uma descrição verdadeira e completa “do modo como o mundo é” […] Chamarei externista a esta perspectiva, pois o seu ponto de vista favorito é um ponto de vista de Deus.14

Que Nietzsche rejeita um ponto de vista de Deus dificilmente é novidade. Na verdade, Nietzsche considera a ideia de tal perspectiva uma das “sombras de Deus” que ainda precisam de ser conquistadas e que subsistem depois da morte de Deus (GS 108).15 Este facto serve para explicar o seu comentário em TI III 5: ““Razão” na linguagem: oh, que velha enganadora! Receio que não estejamos a livrar-nos de Deus porque ainda acreditamos na gramática…”. Um dos legados da deificação da natureza é a ideia de que há objectos reais, bem individuados, e verdades no mundo que podem ser conhecidas por Deus. Mesmo depois da morte de Deus permanecemos com esta ontologia realista e com o ponto de vista de Deus que inventámos para se adequar à nossa religião. A afirmação de Nietzsche acima (e compare-se os seus comentários em BGE 34) é que a lógica inscrita na nossa linguagem tem os mesmos tipos de compromissos ontológicos que tinha a nossa religião. A nossa fé na gramática origina uma fé na lógica, que não é muito melhor do que a fé no velho Deus — ambos nos conduzem aos mesmos erros metafísicos. Assim, não nos livrámos de Deus, ou, mais precisamente, da sua sombra, ao persistir na nossa fé na gramática.16

O que Nietzsche defende é então que a estrutura da nossa linguagem codifica uma metafísica errada. Logo, não é de esperar que a metodologia da análise linguística nos forneça uma interpretação aceitável do mundo. Dado que Nietzsche encara a lógica como a estrutura profunda da linguagem, e como já vimos que a lógica realmente se compromete com entidades, segue-se que temos razões para suspeitar dessas entidades. O que urge fazer é investigar a semântica da linguagem natural e o género de entidades que esta requer, e portanto, inicialmente, uma investigação da própria linguagem. Há uma intersecção interessante entre a posição de Nietzsche sobre a linguagem e a semiótica de Rudolf Carnap. Um breve olhar sobre a posição de Carnap permitirá tornar mais nítida a crítica de Nietzsche da semântica e mostrar como Carnap peca em não atender às preocupações de Nietzsche.17

Carnap oferece os seguintes exemplos de frases destituídas de significado (cf. pp. 67-68):

  1. César é e.
  2. César é um número primo.

É fácil ver o que há de errado na primeira frase; viola as regras da sintaxe. Mas a segunda é diferente: parece apenas falsa, dado não se dar o caso de César ser um número primo. Por que é destituída de significado e não falsa? A resposta de Carnap apoia-se numa distinção entre a sintaxe gramatical e a sintaxe lógica. As regras sintácticas efectivas da linguagem natural incluem a sintaxe gramatical. Carnap pensa que a sintaxe gramatical é inadequada e enganadora porque não distingue tipos de palavras de um modo suficientemente subtil. Permite assim a construção gramaticalmente correcta de frases que na realidade são destituídas de sentido, como 2. A sintaxe gramatical distingue entre substantivos, adjectivos, verbos, etc., mas não distingue (o que Carnap pensa que deveria fazer) entre substantivos que denotam propriedades físicas e os que denotam números. Se a sintaxe comum fizesse tal distinção, então 2 seria tão agramatical quanto 1. É esta imprecisão da sintaxe gramatical que permite o que Carnap considera a quintessência da verborreia destituída de significado (pp. 69-71): a passagem de Heidegger “E quanto a este Nada? — O Nada em si nadifica”.

Assim, a sintaxe gramatical comum é logicamente deficiente e a cura apropriada é uma sintaxe melhorada que faça todas as distinções subtis entre “categorias sintácticas” que Carnap exige. A isto chama Carnap “sintaxe lógica”. Uma linguagem perfeita para Carnap seria uma linguagem com uma sintaxe lógica, na qual a metafísica não pudesse sequer ser expressa. Carnap chama à construção desta linguagem a grande tarefa filosófica que os lógicos enfrentam.

Há muita concordância entre Carnap e Nietzsche. Ambos estão interessados em corroer a metafísica, ambos pensam que há algo de errado na linguagem comum que nos engana, ambos consideram que a metafísica é uma “ainda não ciência” (TI III 3), e ambos preferem análises históricas e empíricas à especulação metafísica. O comentário de Carnap de que os “metafísicos são músicos sem capacidade musical” (p. 80) quase soa a aforismo nietzschiano. Na verdade, Carnap leu Nietzsche e elogia-o (p. 80). Contudo, Carnap parece não estar ciente das críticas de Nietzsche à linguagem, ou de como estas se poderiam aplicar ao seu próprio programa. Nietzsche dificilmente pensaria que o advento da sintaxe lógica constituiria uma melhoria relativamente à sintaxe gramatical, e consideraria sem dúvida que nada mais seria do que a substituição de um conjunto de erros por outro. O modo como a linguagem é agora pode conduzir-nos à verborreia heideggeriana, mas a almejada sintaxe lógica de Carnap integraria na própria estrutura da linguagem vários pressupostos sobre o mundo e sobre a efectiva natureza das coisas. As categorias sintácticas subtis que distinguiriam entre palavras para coisas, para propriedades e para números são na realidade apenas categorias ontológicas com uma coloração linguística. Claro que Carnap tem razão ao pensar que a metafísica não se poderia exprimir numa linguagem com uma sintaxe lógica, mas isso seria apenas porque os pressupostos e divisões metafísicos estariam previamente integrados na linguagem. As perguntas metafísicas “Há diferença entre coisas e propriedades?” ou “São os números redutíveis a propriedades?” tornar-se-iam incompreensíveis uma vez solidificadas e canonizadas na sintaxe as divisões entre coisas, números e propriedades.

Nietzsche considera que a linguagem natural é defeituosa, em grande parte tal como a linguagem “logicamente perfeita” de Carnap. É fácil ver como os compromissos ontológicos fazem parte da sintaxe lógica de Carnap. Menos evidente, mas ainda presente segundo Nietzsche, são os compromissos ontológicos das nossas linguagens naturais. “São os números redutíveis a propriedades?” é um pergunta destituída de significado para a linguagem logicamente perfeita de Carnap. De modo semelhante, a pergunta “Existem coisas?” é uma pergunta destituída de significado na linguagem natural comum. Para ver porquê considere-se uma resposta negativa — não, as coisas não existem, ou pelo menos algumas coisas não existem. Isto é, há (existe) um x tal que x não existe! Um corolário disto é que tudo existe (dado que não se dar o caso de haver um x tal que x não existe, segue-se que para todo o x, x existe). Como perspicácia filosófica, isto é evidentemente tolo. A posição de Nietzsche é que tal tolice nada é senão o resultado de certos pressupostos existenciais codificados na nossa linguagem. Claro que isto não é, por si, uma crítica. Precisamos de razão para pensar que estes pressupostos existenciais são maus. É aqui que entra o anti-realismo de Nietzsche quanto a objectos.

O que Nietzsche defende é que não há uma descrição única e privilegiada do mundo, e não há objectos já feitos nos quais possamos tropeçar. Isto não significa que nada exista, ou que fiquemos reduzidos ao idealismo; ao invés, categorizamos os nossos fenómenos sensoriais de um modo que se adequa aos nossos fins e propósitos. Por exemplo, Roderick Chisholm refere-se ao “han”, um termo introduzido pelo exército britânico na primeira guerra mundial.18 Um han é o objecto que consiste num cavaleiro e o seu cavalo, e os hans eram contabilizados juntamente com armas, mantimentos e outros aprestos de guerra. Um han é um género estranho de objecto, contudo. Não parece correcto dizer que um dia o exército britânico descobriu a existência de hans, tendo prontamente notificado a Fleet Street. Numa certa medida, um han é um objecto inteiramente inventado, uma fabricação, uma ficção.19 Compare-se com os comentários semelhantes de Nietzsche em OTL (p. 85):

Se eu inventar a definição de um mamífero, e depois, após inspeccionar um camelo, declaro “Olha, um mamífero”, trouxe realmente à luz uma verdade, mas é uma verdade de limitado valor. O que é dizer que é uma verdade completamente antropomórfica que não contém um só ponto que seria “verdadeira em si” e universalmente válida separadamente do homem.

Nietzsche não distingue entre objectos que existem realmente por si, e os que inventamos, como os hans. Para ele, tudo é uma invenção ou ficção, e tudo é o resultado do modo como impomos categorias e formamos conceitos a partir do caos sensorial. Assim, “o mundo “aparente” é o único: o mundo “real” não foi senão mentirosamente acrescentado” (TI III 2). Há um número infinito de maneiras de o caos cru da experiência poder ser talhado em objectos; os seres humanos têm simplesmente de escolher aquelas interpretações que lhes permitem viver e promover os seus interesses. Foi assim que tornámos o mundo lógico (WP 521), formalizável e calculável para nós (WP 516).20

Suponha-se que concedíamos o anti-realismo esboçado em traços largos de Nietzsche. Em que medida afecta isto a lógica? Já estabelecemos que a lógica pressupõe de facto a existência de coisas, dado a semântica exigir domínios não vazios de entidades. Exige a semântica entidades realistas, ou poderia safar-se tranquilamente com entidades “fictícias” inventadas pelos seres humanos? Não parece haver razão para a lógica exigir uma ontologia realista. As variáveis abrangem com igual facilidade objectos construídos ou “reais”; pares de cavalos e cavaleiros pode estar na extensão de “han” sem qualquer dificuldade, e os camelos podem estar na extensão de “mamífero”. A semântica exige domínios, mas os domínios podem ser igualmente populados com coisas realistas ou anti-realistas; a lógica pode ser aplicada seja qual for a metafísica das coisas que se adopte. Dificilmente podemos imaginar um anti-realista contemporâneo como Goodman a aconselhar o abandono da lógica. Assim, parece que mesmo que aceitemos as afirmações de Nietzsche de que a lógica pressupõe coisas, e que as coisas não passam de ficções, isto não põe a lógica minimamente em causa.

Talvez Nietzsche tenha pensado que não tenha sido apenas uma questão contingente, histórica o facto de a lógica ter pressuposto o realismo metafísico. Talvez tenha acreditado que seja necessário que a lógica tenha uma semântica realista.21 Tal postura conduziria certamente a uma reductio directa da lógica, se o anti-realismo de Nietzsche estiver correcto. Se a sua perspectiva era que há uma conexão necessária, então estava enganado, como argumentei no parágrafo anterior. É claro que é completamente consistente da sua parte estar enganado quanto à relação entre a lógica e o realismo e ter razão nas suas críticas de outros aspectos da lógica ou da metafísica realista.

Talvez a verdadeira queixa de Nietzsche seja que a lógica é enganadora, isto é, ainda que a lógica não insista formalmente no realismo, ao apoiarmo-nos na lógica subjacente à nossa gramática conduz as pessoas à aceitação do realismo. Talvez seja isto que Nietzsche tem em mente em TI III 5: “damos connosco no seio de um fetichismo grosseiro quando invocamos os pressupostos básicos da metafísica da linguagem — o que é dizer, da razão”; e em WP 516, onde escreve: “[se] fizermos da lógica um critério do verdadeiro ser, estamos prestes a postular como realidades todas essas hipóteses: substância, atributo, objecto, acção, etc.; isto é, estamos a um passo da concepção de um mundo metafísico […] um “mundo real””. Contudo, o suposto facto no qual os lógicos se apoiam por fé (GS 110), ou em relação ao qual são “supersticiosos” (BGE 17), é um facto sobre lógicos, e não sobre a lógica em si.

Claro que isto não impede uma combinação de ambos. Um exemplo vívido é BGE 34, onde Nietzsche declara que “que a verdade é mais do que mera aparência não passa de um preconceito moral”, passando de seguida a pôr em causa vários elementos desta fé até agora inquestionada, incluindo a fé na gramática, discutida acima. Um objecto do seu escrutínio é a bivalência, a tese de que toda a proposição tem um valor de verdade, e que este valor de verdade é o verdadeiro ou o falso. Nietzsche examina isto perguntando: “Efectivamente, o que nos força a supor que há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”? Não será suficiente admitir graus de aparência e, digamos, sombras mais ou menos escuras e matizes de aparência — diferentes “valores”, para usar a linguagem dos pintores?” Nietzsche sustenta que a bivalência é um pressuposto não demonstrado dos lógicos, e especula sobre os vários matizes de valores como uma alternativa, para mostrar como a bivalência não é a única opção concebível. É um pequeno passo, ainda que precipitado, passar desta crítica da fé dos lógicos para uma rejeição genuína da própria bivalência, e daí é apenas um salto (ainda que errado) para a rejeição da própria lógica. Clark, por exemplo, parece pensar que a rejeição da bivalência implica a rejeição de toda a lógica, assim como Derrida.22 Isto está completamente errado, contudo. A rejeição da bivalência não significa uma rejeição da lógica — sobram ainda várias lógicas completamente multivalentes.

Nada disto é dizer que a psicologia dos lógicos é desinteressante ou sem importância, mas é puramente ad hominem inferir que a lógica é defeituosa ou tem problemas partindo da observação de que os lógicos são supersticiosos e têm preconceitos (é como desconsiderar a obra tardia de Nietzsche em virtude da sua loucura). Se os lógicos tendem a comprometer-se com uma metafísica realista isso não é culpa da lógica, que é neutra na matéria. Se os lógicos pressupõem a bivalência sem defesa, isto não é devido a uma qualquer característica essencial da lógica, pois esta pode ser modificada para acomodar a multivalência, mas antes porque eles pressupõem a bivalência por outras razões. Estas razões considerava Nietzsche que eram psicológicas, e constituem certamente um tópico que lhe interessava, como parte integrante do seu projecto geral de pôr a nu a genealogia das ideias. Assim, podemos conceder a Nietzsche as suas duas afirmações (que a lógica pressupõe a existência de coisas e que as coisas são meras ficções inventadas pelos seres humanos) sem com isso termos de abjurar ou modificar qualquer parte da lógica contemporânea.

Consideremos então a terceira afirmação de Nietzsche: que a lógica pressupõe a identidade persistente das coisas ao longo do tempo. À primeira vista, isto parece claramente falso, dado que as fórmulas lógicas não se comprometem com o tempo nem com a flexão temporal. Talvez a lógica temporal insista na mesma coisa em diferentes momentos do tempo, mas é muitíssimo improvável que Nietzsche tivesse este esotérico ramo da lógica em mente (que no seu tempo nem sequer existia), e os géneros comuns de lógica — e.g., lógica aristotélica, proposicional e de predicados — nada dizem sobre a identidade ao longo do tempo. É mais provável que o verdadeiro interesse de Nietzsche seja o raciocínio prudencial, que depende efectivamente da persistência ao longo do tempo. A sua discussão da dicotomia entre o devedor e o credor no ensaio II da Genealogia é um dos exemplos. É esta relação que Nietzsche pensa ser responsável por instilar memória na humanidade. O devedor tem de se lembrar que deve ao credor, e este tem de se lembrar que o outro lhe deve. Não só o devedor tem de se recordar que deve algo a alguém, como tem de acreditar que ele mesmo é uma coisa que persiste ao longo do tempo. O devedor tem de acordar amanhã dando-se conta de que é a mesma pessoa do que a que contraiu a dívida, não nasce de novo todos os dias, sendo assim um objecto que persiste ao longo do tempo. Uma das funções do castigo é encorajar esta crença na identidade diacrónica. O medo do castigo conduz depois ao raciocínio prudencial da parte do devedor — se eu pagar a dívida (no futuro, e eu existirei nesse futuro) segundo os termos do empréstimo, então evitarei o castigo; logo, pagarei. Assim, este tipo de raciocínio conduz a uma crença num ego ou eu contínuo, uma crença (afirma Nietzsche em TI III 5) que é deslocada para outros objectos, criando assim o conceito de “coisa”.

Suponha-se que a análise de Nietzsche está correcta quanto a isto, e que o raciocínio prudencial depende realmente de um compromisso com a identidade diacrónica; em que medida exactamente é isto um erro? Nietzsche não está interessado em pôr em causa o raciocínio lógico dado que, como vimos, considera-o pelo menos necessário para o pensamento, e muito provavelmente também para a própria vida. Além disso, sem um tipo qualquer de raciocínio meios-fins, é extremamente difícil ver como se poderia desenvolver intencionalmente a nossa vontade de poder, ou entregarmo-nos à superação de nós, ou a qualquer outra das coisas que Nietzsche elogia. É mais provável que Nietzsche não queira ver-se livre do conceito de identidade ao longo do tempo, nem queira fazer as pessoas parar de acreditar em seres persistentes, mas antes que esteja a lembrar que, como os objectos, a identidade diacrónica é uma ficção. A crítica da identidade é outra manifestação do seu anti-realismo quanto às coisas.

Além disso, este aspecto do seu anti-realismo é curiosamente implicado pela teoria dos feixes que apresenta em A Vontade de Poder.23 Em WP 557 escreve: “As propriedades de uma coisa são efeitos de outras “coisas”: se removermos as outras “coisas”, então uma coisa não tem propriedades, i.e., não há uma coisa sem outras coisas, i.e., não há a “coisa em si””. Aqui, Nietzsche está a fornecer uma definição de “propriedade”; uma propriedade é um certo género de relação, talvez causal, entre “coisas”. Note-se, é claro, o seu uso das aspas: Nietzsche tem o cuidado de evitar comprometer-se com qualquer posição normal quanto às coisas enquanto substâncias imutáveis, coisas em si, etc. Contudo, do modo como interpretamos realmente o mundo, este tem mesas e cães e árvores. O que são estes objectos? Nietzsche deve-nos uma explicação destas “coisas”; usar apenas aspas não lhe permite escarpar-se. Nietzsche afirma depois: “Se removermos todas as relações, todas as “propriedades”, todas as “actividades” de uma coisa, a coisa não permanece” (WP 558). E em WP 551: “Uma “coisa” é a soma dos seus efeitos”. Ou seja, as coisas quotidianas comuns são feixes de propriedades, aglutinadas por nós para satisfazer os requisitos da lógica e para facilitar a comunicação (WP 558). O que não reconhecemos, afirma Nietzsche, é que “a “coisa” em que acreditamos só foi inventada como fundamento dos vários atributos” (WP 561). É devido a este erro que acabamos por aceitar o realismo da substância e acreditamos que há um pequeno âmago inflexível sob todas as propriedades, uma coisa em si ou particular nu ou algo.

Nietzsche é membro de uma esplêndida tradição filosófica no que respeita a esta teoria dos feixes, prefigurada em Berkeley e Hume, e pósfigurada em Russell. Recorde-se esta famosa passagem do Tratado de Hume:

Pela minha parte, quando entro do modo mais íntimo no que chamo eu, tropeço sempre numa ou noutra percepção particular, de calor ou frio, de luz ou sombra, de amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca consigo apanhar-me, a qualquer momento que seja, sem uma percepção, e nunca consigo observar seja o que for a não ser a percepção. Quando as minhas percepções são removidas por qualquer período de tempo, como quando durmo profundamente, desde que não tenha qualquer sensibilidade de mim, pode-se verdadeiramente dizer que não existo. E fossem todas as minhas percepções removidas com a minha morte, não pudesse eu pensar, sentir ou ver, nem amar ou odiar, depois da dissolução do meu corpo, eu seria totalmente aniquilado, nem concebo que outro requisito mais seja necessário para me fazer uma perfeita não entidade.24

Compare-se com Berkeley: “Tendo-se observado que uma certa cor, gosto, cheiro, configuração e consistência andam juntas, sendo consideradas uma coisa distinta, sendo o significado do substantivo maçã; outras colecções de ideias constituem uma pedra, uma árvore, um livro e coisas sensíveis semelhantes”.25 Considere-se também os comentários de Russell: “O nosso propósito é, se possível, construir a partir das qualidades feixes tendo as propriedades espácio-temporais que a física exige das “coisas””.26 E também “Quero sugerir que “isto é vermelho” não é uma proposição sujeito-predicado, sendo antes da forma “o vermelho está aqui”; que “vermelho” é um substantivo, e não um predicado; e que o que comummente se chamaria “coisa” nada é senão um feixe de qualidades coexistentes, como a vermelhidão, rigidez, etc”.27 Como estas afirmações soam a Nietzsche!

Se a posição de Nietzsche é que uma “coisa” é um feixe de propriedades num instante, então segue-se aproximadamente que a mudança é coisa que não existe. Ou seja, dadas as perspectivas normais de que os conjuntos têm os seus membros essencialmente e que as somas mereológicas têm as suas partes essencialmente, se uma coisa é identificada como um conjunto de propriedades ou uma soma mereológica de propriedades, então não poderia mudar uma só dessas propriedades sem cessar de existir. Dado que as coisas mudam efectivamente, isto é uma objecção recorrente às teorias dos feixes.28 Contudo, Nietzsche enfrenta sem vacilar este resultado. Não tem problemas em aceitar que as coisas não mudam ou, visto de outro modo, que só há mudança, não havendo coisas persistentes sob a mudança. Razão: os feixes são formados e individuados originalmente por meio de perspectivas sobre percepções. À medida que estas perspectivas revêm os feixes, dissolvendo basicamente os feixes antigos e juntando novos grupos de propriedades, as coisas estão constantemente a deixar de existir e a passar a existir. De modo que à medida que as interpretações mudam, mudam os feixes. Assim, não há identidade diacrónica genuína; a duração do feixe (i.e., uma coisa) é efémera. A identidade ao longo do tempo é uma história conveniente para contar sobre feixes sucessores, mas não há verdadeira persistência.

O que dizer então destes feixes sucessores, ou feixes que persistem o tempo? Por que não poderia uma perspectiva agrupar feixes em diferentes instantes, juntando-os num feixe transtemporal? Tal feixe transtemporal teria direito a reivindicar constituir uma coisa que persiste ao longo do tempo. Sim, diz Nietzsche, tal feixe seria, para todos os efeitos e propósitos, uma coisa com identidade diacrónica. O que há a notar é que um feixe transtemporal não é fundamentalmente diferente de um feixe num dado instante. Tal como um feixe num instante é apenas um molho de propriedades agrupadas entre si para promover os interesses de uma perspectiva, não tendo qualquer natureza intrínseca em si, nenhum pequeno cerne rígido subjacente, nenhuma ecceidade emergente, o mesmo acontece com os feixes transtemporais. Juntamos de facto feixes transtemporais para satisfazer os nossos interesses (e baseamo-nos neles no nosso raciocínio prudencial), mas trata-se de ficções convenientes, exactamente como os feixes num instante são ficções. As “coisas” são ficcionais em todas as dimensões.

Há uma história semelhante para contar quanto à crítica final de Nietzsche da lógica, a ideia de que não há coisas auto-idênticas, ou não há identidade sincrónica. Em si, uma passagem como WP 516 é difícil de engolir, se é que não é completamente burlesca:

Supondo que não há qualquer “A” auto-idêntico, ao contrário do que se pressupõe em toda a proposição da lógica (e da matemática), e o “A” fosse já mera aparência, então a lógica teria um mundo meramente aparente como sua condição […] o “A” da lógica é, como o átomo, a reconstrução da coisa.

O que poderia ser mais louco do que a rejeição de que A = A? Contudo, quando uma afirmação deste tipo é reinserida no contexto do anti-realismo de Nietzsche sobre as coisas, começa a fazer sentido. Uma vez mais, a crítica de Nietzsche tem menos a ver com o conceito de identidade sincrónica do que com uma crítica da ideia de que há coisas reais que possam ser auto-idênticas. Se não há coisas genuínas, então não há coisas que sejam auto-idênticas. Os objectos ficcionais, agrupados em feixes por via das perspectivas adoptadas quanto às propriedades, podem ser auto-idênticos, mas tal identidade é por isso perspectívica. O argumento de Nietzsche é que não há qualquer identidade an sich, tal como não há coisas em si. Uma vez mais vemos que a crítica de Nietzsche é de facto sobre a aplicabilidade da lógica e sobre o realismo dos objectos, e não sobre a lógica em si.

Em que ficamos então? A crítica de Nietzsche da lógica é fundamentalmente sobre a semântica, e centra-se na sua equação da semântica existente com uma semântica realista. Argumenta contra a metafísica realista com a sua afirmação de que os objectos são ficções convenientes, construídos a partir de propriedades agrupados em feixes que satisfazem os interesses de uma dada perspectiva. Os objectos são deste modo perspectívicos, tal como afirma que a verdade é perspectívica. Nietzsche afirma ainda que a lógica é a estrutura escondida da linguagem, e tal como a lógica pode ser enganadora devido à semântica realista, sustenta também que a linguagem engana as pessoas, fazendo-as aceitar o realismo dos objectos. Vimos que a lógica pode acomodar todas estas queixas. Uma semântica realista não é a única possível, e os universos de discursos tanto podem ser preenchidos com ficções nietzschianas como com coisas em si. A crítica de Nietzsche da lógica visa libertar a razão dos grilhões königsbergianos. A acusação de que a lógica ou a linguagem são enganadoras é em última análise uma crítica dos que se deixam enganar desse modo, não sendo uma objecção que destrua a lógica como ciência do pensamento ou como representação formal da linguagem natural. Assim, as questões aparentemente sobre a lógica tornam-se questões sobre as origens dos nossos conceitos metafísicos, um tema muitíssimo apropriado à abordagem genealógica de Nietzsche. As preocupações fundamentais de Nietzsche são afinal de contas a metafísica e a fé dos lógicos, alvos legítimos que lhe permitem sustentar de modo consistente o papel crucial de preservação do pensamento e da vida que estabelece para a lógica e a racionalidade.29

Steven D. Hales
Philosophy and Phenomenological Research, Vol. LVI, N.º 4, Dezembro 1996, pp. 819-835.

Notas

  1. Nietzsche Scholarship in English: A Bibliography 1968-1992 (with supplement), org. B. Bryan Hilliard (Urbana, Illinois: North American Nietzsche Society, ed. rev. 1993); International Nietzsche Bibliography, org. Herbert W. Reichert e Karl Schlecta (Chapel Hill: University of North Carolina, ed. rev. 1968).
  2. Walter Kaufmann, Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist (Princeton: Princeton University Press, 4.ª ed. 1974); Alexander Nehamas, Nietzsche: Life as Literature (Cambridge: Harvard University Press, 1985).
  3. Maudemarie Clark, Nietzsche on Truth and Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, 1990); Arthur C. Danto, Nietzsche as Philosopher (Nova Iorque: Columbia University Press, 1965); Richard Schacht, Nietzsche (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1983).
  4. Abreviaturas dos textos de Nietzsche:
    HATH — Human, All Too Human, ed. e trad. Marion Faber e Stephen Lehmann (Lincoln: University of Nebrasca Press, 1984; edição original: 1878).
    OTL — “On Truth and Lies in a Nomoral Sense” in Philosophy and Truth: Selections From Nietzsche's Notebooks of the Early 1870's, ed. e trad. Daniel Breazeale (Londres: Humanities Press International, 1979).
    GS — The Gay Science, ed. e trad. Walter Kaufmann (Nova Iorque: Vintage Books, 1974; edição original: 1882).
    BGE — Beyond Good and Evil, ed. e trad. Walter Kaufmann (Nova Iorque: Vintage Books, 1966; edição original: 1886).
    GM — On the Genealogy of Morals, ed. e trad. Walter Kaufmann (Nova Iorque: Vintage Books, 1967; edição original: 1887).
    AC — The Antichrist, ed. e trad. R. J. Hollingdale (Nova Iorque: Viking Penguin, 1968; edição original: 1895).
    TI — The Twilight of the Idols, ed. e trad. R. J. Hollingdale (Nova Iorque: Viking Penguin, 1968; edição original: 1889).
    EH — Ecce Homo, ed. e trad. Walter Kaufmann (Nova Iorque: Vintage Books, 1967; edição original: 1908).
    WP — The Will to Power, ed. e trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale (Nova Iorque: Vintage Books, 1968).
  5. O artigo de Mary-Barbara Zeldin's, “Afrikan Alexandrovich Spir”, in The Encyclopedia of Philosophy, dir. P. Edwards (Nova Iorque: Macmillan, 1967) vol. 7, p. 554, é útil.
  6. Para mais informação sobre a sua teoria moral positiva veja-se Steven D. Hales, “Was Nietzsche a Consequentialist?”,International Studies in Philosophy (vol. 27, n.º 3, Verão 1995), pp. 25-34.
  7. Trata-se de um excerto de “Drafts” §177 in Philosophy and Truth: Selections From Nietzsche's Notebooks of the Early 1870's, ed. e trad. Daniel Breazeale (Londres: Humanities Press International, 1979).
  8. Os números citados das páginas são de Ofelia Schutte, Beyond Nihilism: Nietzsche Without Masks (Chicago: University of Chicago Press, 1984).
  9. Os números citados das páginas são de Michel Haar, “Nietzsche and Metaphysical Language”, in D. B. Allison, org., The New Nietzsche (Nova Iorque: Dell Publishing, 1977), pp. 5-36.
  10. Alan D. Schrift, Nietzsche and the Question of Interpretation (Nova Iorque: Routledge, 1990), p. 134.
  11. Bern Magnus, Nietzsche's Existential Imperative (Bloomington: Indiana University Press, 1978), p. 196.
  12. Clark, Nietzsche on Truth and Philosophy, p. 105.
  13. Para alguma discussão sobre como Nietzsche é anterior ao anti-realismo contemporâneo, veja-se Cornel West, “Nietzsche's Prefiguration of Postmodern American Philosophy”, in Why Nietzsche Now?, org. Daniel O'Hara (Bloomington: Indiana University Press, 1985), pp. 241–269.
  14. Hilary Putnam, Reason, Truth and History (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), p. 49. Veja-se também o seu Realism With a Human Face (Cambridge: Harvard University press, 1990) e Midwest Studies in Philosophy: Realism and Antirealism (Vol. 12, 1988).
  15. Para um prolongamento deste tema, veja-se Christoph Cox, “Nietzsche, Naturalism, and Interpretation”, International Studies in Philosophy (vol. 27, n.º 3, 1995), pp. 3-18.
  16. Schutte é desnecessariamente literal quanto a TI III 5. Veja-se Beyond Nihilism: Nietzsche Without Masks, p. 27.
  17. O que se segue é uma apresentação da teoria que Carnap formula em “The Elimination of Metaphysics Through the Logical Analysis of Language”, in A. J. Ayer, org. Logical Positivism (Nova Iorque: Macmillan, 1959), pp. 60–81. Os números seguintes das páginas referem-se a este artigo.
  18. Chisholm discutiu os hans em vários seminários de pós-graduação na Universidade de Brown. Veja-se também a sua discussão de entia per alio nas suas lições Carus, publicadas como Person and Object (La Salle, Illinois: Open Court, 1976).
  19. Sartre também acusa o antropomorfismo do modo como conceptualizamos. Afirma que “o homem é o único ser pelo qual uma destruição pode ocorrer”. Ou seja, os terremotos e tempestades não destroem por si mesmos, apenas mudam tralha graúda de um lugar para outro. Somos nós que classificamos isto como destruição; não há qualquer destruição objectiva no mundo para lá dos nossos interesses. Veja-se Jean-Paul Sartre, Being and Nothingness, trad. Hazel E. Barnes (Nova Iorque: Simon and Shuster, 1956), cap. 1, §2.
  20. Se certas interpretações são necessárias para que os seres humanos vivam, então não serão estas de algum modo necessidades reais, verdadeiras vidas humanas, ou algum género de verdades absolutas? Como se harmoniza isto com o anti-realismo radical e o perspectivismo de Nietzsche? Os conhecidos enigmas da auto-referência espreitam. Tratei destas questões em Steven D. Hales e Robert C. Welshon, “Truth, Paradox, and Nietzschean Perspectivism”, History of Philosophy Quarterly (Vol. 11, n.º 1, Janeiro 1994), pp. 101–119.
  21. Um consultor anónimo desta revista sugeriu que Nietzsche o afirma em HATH 18.
  22. Clark, Nietzsche on Truth and Philosophy, p. 66. Para alguma discussão de perspectiva de Derrida veja-se John M. Ellis, Against Deconstruction (Princeton: Princeton University Press, 1989), cap. 1.
  23. Nehamas também interpreta Nietzsche no sentido de estar a oferecer uma teoria dos feixes em Nietzsche: Life as Literature, cap. 3, apesar de não usar esta terminologia.
  24. David Hume, Tratado do Conhecimento Humano, livro 1, §6.
  25. George Berkeley, Of the Principles of Human Knowledge, parte I, §1.
  26. Bertrand Russell, An Inquiry Into Meaning and Truth (Londres: Allen and Unwin, 1950), p. 100.
  27. Russell, An Inquiry Into Meaning and Truth, p. 97.
  28. Veja-se, por exemplo, o excelente artigo de James Van Cleve, “Three Versions of the Bundle Theory”, Philosophical Studies (vol. 47, 1985), pp. 95-107. Nietzsche não é citado como um defensor da teoria dos feixes.
  29. Agradeço a Robert Welshon críticas a uma versão anterior, e a três consultores anónimos de Philosophy and Phenomenological Research.
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ISSN 1749-8457