Menu
Crítica
29 de Março de 2016   Ética

O que faz a vida de uma pessoa correr pelo melhor

Derek Parfit
Tradução de Pedro Galvão

O que seria melhor para uma pessoa? O que mais seria do seu interesse? O que faria a vida dessa pessoa correr da melhor forma possível, para ela mesma? Às respostas a esta questão chamo teorias do interesse pessoal. Há três tipos de teorias. Segundo as Teorias Hedonistas, o que seria melhor para uma pessoa é aquilo que tornaria a sua vida mais feliz. Segundo as Teorias da Realização de Desejos, o que seria melhor para uma pessoa é aquilo que, ao longo da sua vida, realizaria da melhor forma os seus desejos. Segundo as Teorias da Lista Objectiva, certas coisas são boas ou más para nós, independentemente de querermos ter as coisas boas ou evitar as coisas más.

Os Hedonistas Estritos presumem, erradamente, que tanto o prazer como a dor são experiências de um tipo distinto. Comparemos os prazeres de satisfazer uma sede ou um apetite sexual intensos, de ouvir música, de resolver um problema intelectual, de ler uma tragédia e de saber que o nosso filho é feliz. Estas diversas experiências não partilham nenhuma qualidade distinta.

As relações com os nossos desejos são aquilo que as dores e os prazeres têm em comum. Segundo o uso de “dor” que tem importância racional e moral, todas as dores são indesejadas quando experienciadas — e uma dor é pior ou maior na medida em que é indesejada. Do mesmo modo, todos os prazeres são desejados quando experienciados — e são melhores ou maiores na medida em que são desejados. Estas são as alegações do Hedonismo de Preferências. De acordo com esta perspectiva, uma de duas experiências é mais aprazível se é preferida à outra.

Esta teoria não precisa de seguir os usos comuns das palavras “dor” e “prazer”. Suponha-se que posso ir a uma festa para fruir os prazeres diversos de comer, beber, rir, dançar e conversar com os meus amigos. Em vez disso, também posso ficar em casa e ler O Rei Lear. Sabendo como seria cada uma das alternativas, prefiro ler O Rei Lear. Dizer que isto me daria mais prazer é ir além do uso comum da palavra. No entanto, segundo o Hedonismo de Preferências, se aduzirmos alguns pressupostos adiante indicados, ler O Rei Lear dar-me-ia uma noite melhor. Griffin aponta um caso mais extremo. Pelo fim da sua vida, Freud recusou substâncias analgésicas, dado preferir pensar atormentado a ficar confusamente eufórico. A euforia é o mais aprazível destes dois estados mentais. Contudo, segundo o Hedonismo de Preferências, pensar atormentado era, para Freud, um estado mental melhor. Ganha-se em clareza se não fugirmos aqui ao significado da palavra “aprazível”. Um hedonista de preferências deverá afirmar apenas que, como Freud preferia pensar lucidamente ainda que atormentado, a sua vida terá corrido melhor se correu como ele preferia.

Consideremos agora as Teorias da Realização de Desejos. A mais simples é a Teoria Irrestrita. Esta afirma que o que é melhor para uma pessoa é aquilo que, ao longo da sua vida, realizaria da melhor forma todos os seus desejos. Suponha-se que encontro um desconhecido que sofre de uma doença presumivelmente fatal. Isto desperta a minha compaixão e quero intensamente que este desconhecido fique curado. Nunca nos encontramos novamente. Mais tarde, sem que eu chegue a saber disso, o desconhecido fica curado. De acordo com a Teoria da Realização de Desejos Irrestrita, este acontecimento é bom para mim e faz a minha vida correr melhor. Isto não é plausível. Devemos rejeitar esta teoria.

Outra teoria atende apenas aos nossos desejos sobre a nossa própria vida. Chamo-lhe Teoria do Sucesso. Esta teoria difere do Hedonismo de Preferências apenas de uma forma. A Teoria do Sucesso atende a todas as nossas preferências sobre a nossa própria vida. Um hedonista de preferências atende apenas a preferências que respeitam àqueles aspectos da nossa vida que são introspectivamente discerníveis. Suponha-se que quero intensamente não ser enganado por outras pessoas. Segundo o Hedonismo de Preferências, será melhor para mim acreditar que não estou a ser enganado. Se a minha crença for falsa isso será irrelevante, dado que não faz nenhuma diferença para o meu estado de espírito. Segundo a Teoria do Sucesso, se a minha crença for falsa, isso será pior para mim. Tenho um desejo forte sobre a minha própria vida — que não seja enganado dessa forma. Será mau para mim esse desejo não se realizar, mesmo que acredite, erradamente, na sua realização.

Quando esta teoria atende apenas a desejos sobre a nossa própria vida, pode não ser claro o que exclui. Suponha-se que quero ter uma vida em que todos os meus desejos, sejam quais forem os seus objectos, se realizem. Pode parecer que isto faz a Teoria do Sucesso, quando aplicada a mim, coincidir com a Teoria da Realização de Desejos Irrestrita. Mas um defensor da Teoria do Sucesso deverá afirmar que esse desejo não é realmente sobre a minha própria vida. Isto assemelha-se à distinção entre uma mudança real num objecto e aquilo a que se chama uma mudança Cambridge. Um objecto sofre uma mudança Cambridge se há uma mudança nas afirmações verdadeiras que se podem fazer a seu respeito. Suponha-se que faço um corte na face enquanto me barbeio. Isso causa uma mudança real em mim. Também causa uma mudança em Confúcio. Torna-se verdade, a respeito de Confúcio, que ele viveu num planeta em que mais tarde ocorreu mais um corte numa face. Isto não passa de uma mudança Cambridge.

Suponha-se que sou um exilado e que não posso comunicar com os meus filhos. Quero que as suas vidas corram bem. Posso dizer que quero viver a vida de alguém que tem filhos cujas vidas correm bem. Uma vez mais, o defensor da Teoria do Sucesso deverá afirmar que esse não é realmente um desejo sobre a minha própria vida. Se um dos meus filhos morrer numa avalanche, sem que eu chegue a saber disso, esse acontecimento não será mau para mim e não fará a minha vida correr pior.

Um defensor da Teoria do Sucesso atenderia a alguns desejos semelhantes. Suponha-se que tento dar um bom começo de vida aos meus filhos. Tento dar-lhes a educação certa, bons hábitos e força psicológica. Uma vez mais, sou agora um exilado e nunca conseguirei descobrir o que aconteceu aos meus filhos. Suponha-se que, sem que eu chegue a saber disso, as vidas dos meus filhos correm mal. Um deles descobre que a educação que lhe dei o torna imprestável, outro sofre um esgotamento nervoso e outro torna-se um vigarista. Se as vidas dos meus filhos fracassam destas formas, e se esses fracassos se devem em parte a erros que cometi enquanto pai, então os fracassos nas vidas dos meus filhos serão vistos, na Teoria do Sucesso, como maus para mim. Um dos meus desejos mais fortes era ser um pai bem-sucedido. Aquilo que acontece agora aos meus filhos, ainda que não chegue ao meu conhecimento, mostra que este desejo não se realizou. A minha vida fracassou num dos aspectos em que eu mais queria que fosse bem-sucedida. Este facto, ainda que o ignore, é mau para mim e faz que seja verdadeiro que tive uma vida pior. Isto assemelha-se ao caso em que quero intensamente não ser enganado. Será mau para mim tanto ser enganado como revelar-me um pai fracassado, mesmo que nunca chegue a conhecer estes factos. Não temos aqui diferenças introspectivamente discerníveis na minha vida consciente, pelo que, segundo o Hedonismo de Preferências, estes acontecimentos não são maus para mim. Mas a Teoria do Sucesso diz o contrário.

Consideremos agora os desejos que algumas pessoas têm a respeito do que acontecerá após a sua morte. Para um hedonista de preferências, nada de mau poderá acontecer-me depois de morrer. Um defensor da Teoria do Sucesso deverá negar isto. Regressemos ao caso em que todos os meus filhos têm uma vida desgraçada por causa de erros que cometi enquanto pai. Suponha-se que a vida dos meus filhos corre mal apenas depois de eu ter morrido. A minha vida revela-se um fracasso num dos aspectos que mais me importava. Quem defenda a Teoria do Sucesso deverá afirmar que, também neste caso, isto faz que seja verdadeiro que tive uma vida pior.

Alguns defensores da Teoria do Sucesso rejeitariam esta afirmação, dado que nos dizem para ignorar os desejos dos mortos. Todavia, se me perguntassem “Queres que seja verdadeiro, mesmo depois de teres morrido, que foste um pai bem-sucedido?”, responderia “Sim”. É irrelevante, no que toca ao meu desejo, que este se realize antes ou depois de eu ter morrido. Os defensores da Teoria do Sucesso julgam ser mau para mim que os meus esforços fracassem mesmo que, por ser um exilado, nunca chegue a saber disso. Como poderá então importar que, quando os meus esforços fracassam, já esteja morto? Tudo o que a minha morte faz é garantir que nunca chegarei a saber disso. Se julgamos que é irrelevante eu nunca chegar a saber que os meus desejos não se realizaram, não podemos alegar defensavelmente que a minha morte faz alguma diferença.

Passo agora a questões e a objecções que se colocam tanto ao Hedonismo de Preferências como à Teoria do Sucesso.

Deveremos atender apenas aos desejos e preferências que uma pessoa tem efectivamente? Voltemos à minha escolha entre ir a uma festa e ficar em casa a ler O Rei Lear. Suponha-se que, sabendo como seria cada uma das alternativas, escolho ficar em casa. E suponha-se que acabo por nunca lamentar esta escolha. De acordo com uma teoria, isto mostra que ter ficado em casa a ler O Rei Lear proporcionou-me uma noite melhor. Isto é um erro. Pode ser verdadeiro que, se tivesse escolhido ir à festa, nunca lamentaria ter feito essa escolha. De acordo com esta teoria, isto mostraria que ir à festa ter-me-ia dado uma noite melhor. Esta teoria implica, então, que cada alternativa é melhor do que a outra. Dado que esta teoria implica contradições deste género, tem de ser revista. A revisão óbvia é atender não só às minhas preferências efectivas, na alternativa que escolho, mas também às preferências que teria tido se tivesse feito outra escolha.

Neste exemplo, seja qual for a alternativa que escolha, nunca lamentarei essa escolha. Se isto é verdadeiro, poderemos ainda afirmar que uma das alternativas me proporcionará uma noite melhor? De acordo com algumas teorias, quando teria tais preferências contrárias em duas alternativas, nenhuma das alternativas será melhor ou pior para mim. Isto não é plausível quando uma das minhas preferências contrárias teria sido muito mais forte do que a outra. Suponha-se que, se escolher ir à festa, ficarei apenas moderadamente contente por ter feito essa escolha, mas que, se escolher ficar em casa e ler O Rei Lear, ficarei muito contente. Se isto é verdade, ler O Rei Lear proporciona-me uma noite melhor.

Tanto no Hedonismo de Preferências como na Teoria do Sucesso, não devemos atender apenas aos desejos ou preferências que tenho efectivamente. Devemos atender também aos desejos ou preferências que teria tido nas diversas alternativas que, em alturas diferentes, estiveram ao meu dispor. Uma dessas alternativas será a melhor para mim se for aquela na qual os meus desejos e preferências mais fortes se realizariam. Isto permite-nos afirmar que uma vida alternativa teria sido melhor para mim, ainda que ao longo de toda a minha vida efectiva esteja contente por ter escolhido esta vida em vez dessa alternativa.

Há outra distinção que se aplica tanto ao Hedonismo de Preferências como à Teoria do Sucesso. Estas teorias são sumativas se atendem a todos os desejos de uma pessoa, efectivos ou hipotéticos, que respeitem ou aos seus estados mentais, ou à sua própria vida. Ao decidir que alternativa produziria o maior total líquido de realização de desejos, atribuímos um número positivo a cada desejo realizado e um número negativo a cada desejo frustrado. Esses números dependerão da intensidade dos desejos em questão. (No caso da Teoria do Sucesso, que atende aos desejos anteriores, poderão depender também da dimensão do período durante o qual a pessoa teve o desejo. Como sugeri no Capítulo 8, isto pode ser uma fraqueza desta teoria. Esta questão não se coloca no Hedonismo de Preferências, que atende apenas aos desejos que temos, em diversas alturas, sobre os nossos estados mentais presentes.) O total líquido da realização de desejos é a soma dos números positivos com os negativos. Desde que possamos comparar a força relativa dos diversos desejos, teoricamente será possível efectuar este cálculo. A escolha de uma certa unidade para os números não importa para o resultado.

Outra versão destas teorias não atende, desta forma, a todos os desejos e preferências de uma pessoa sobre a sua própria vida. Atende apenas a desejos e preferências globais, não a locais. Uma preferência é global se respeita a uma parte da nossa vida, considerada como um todo, ou à nossa vida inteira. Creio que as versões globais destas teorias são mais plausíveis.

Consideremos um exemplo. Sabendo que o leitor aceita uma Teoria Sumativa, digo-lhe que estou prestes a fazer a sua vida correr melhor. Vou injectar-lhe uma substância viciante. Daqui em diante, acordará todas as manhãs com um desejo extremamente forte de injectar essa substância. Ter o desejo não será intrinsecamente aprazível nem doloroso, mas, se passar uma hora e este não se realizar, tornar-se-á muito doloroso. No entanto, não tem motivos para se preocupar, dado que lhe darei uma grande quantidade da substância. Todas as manhãs poderá realizar imediatamente este desejo. A injecção e os seus efeitos subsequentes também não serão aprazíveis nem dolorosos. Passará o resto dos seus dias como agora.

O que implicam as Teorias Sumativas a respeito deste caso? Podemos supor, plausivelmente, que o leitor não ficaria encantado com a minha proposta. Iria preferir não ficar viciado na substância, mesmo que eu lhe assegurasse que esta nunca lhe faltaria. Também é plausível supor que, caso eu lhe desse a injecção, o leitor lamentaria para sempre ter ficado viciado na substância. É de esperar, no entanto, que o seu desejo inicial de ficar viciado e a sua aversão posterior a estar viciado não fossem tão fortes como os desejos que teria, em cada manhã, de injectar a substância. Dados os factos que descrevi, a sua razão para preferir não ficar viciado não seria muito forte. A ideia de ficar viciado seja no que for poderia desagradar-lhe. E poderia lamentar a pequena inconveniência associada a lembrar-se sempre de levar consigo uma quantidade suficiente da substância. Mas estes desejos poderiam ser muito mais fracos do que os desejos que teria, em cada manhã, de mais uma injecção.

De acordo com as Teorias Sumativas, se eu fizer de si um viciado, estarei a aumentar o total líquido da sua realização de desejos. Farei com que um dos seus desejos não se realize: o desejo de não ficar viciado, o qual, depois do meu acto, se transforma no desejo de ficar curado. No entanto, também estarei a dar-lhe uma série indefinida de desejos fortes, um em cada manhã, e poderá realizar todos eles. A realização de todos estes desejos suplantaria a frustração dos seus desejos de não ficar viciado e de ficar curado. Segundo as Teorias Sumativas, ao fazer de si um viciado estarei a beneficiá-lo — a fazer a sua vida correr melhor.

Esta conclusão não é plausível. Ter esses desejos e realizá-los não é aprazível nem doloroso. Não precisamos de ser hedonistas para crer, mais plausivelmente, que de forma alguma é melhor para si ter e realizar esta série de desejos fortes.

Poderão as Teorias Sumativas ser revistas de modo a superar esta objecção? Os desejos decorrentes do vício terão algum aspecto que justifique ignorarmo-los quando calculamos a soma da nossa realização de desejos? Poderemos alegar que podem ser ignorados porque são desejos que preferíamos não ter. Mas esta não é uma revisão aceitável. Suponha que está com uma dor intensa. Tem agora o desejo muito forte de não se encontrar no estado em que se encontra. De acordo com a nossa teoria revista, um desejo não conta se preferia não o ter. Isto tem de se aplicar ao seu desejo intenso de não se encontrar no estado em que se encontra. Preferia não ter este desejo. Se não tivesse uma aversão ao estado em que se encontra, este não seria doloroso. Dado que a nossa teoria revista exclui desejos que preferia não ter, ela implica, absurdamente, que estar com uma dor intensa não pode ser mau para si.

Talvez outras revisões possam superar estas objecções. Mas é mais simples optar pelas versões globais tanto do Hedonismo de Preferências como da Teoria do Sucesso. Estas atendem apenas aos desejos que uma pessoa tem a respeito de uma parte da sua vida, considerada como um todo, ou da sua vida inteira. As Teorias Globais dão-nos a resposta correcta no caso em que eu faço de si um viciado. Preferia nunca ter ficado viciado e, mais tarde, preferia deixar de estar viciado. Estas são as únicas preferências a que as Teorias Globais atendem. Ignoram os seus desejos particulares, em cada manhã, dado que já considerou estes desejos ao formar a sua preferência global.

Este caso imaginário do vício é, no essencial, semelhante a casos incontáveis. Há casos incontáveis nos quais é verdadeiro que (1) se a vida de uma pessoa seguir um de dois caminhos, isso produzirá uma soma maior de realização de desejos locais, embora (2) a outra alternativa seja aquela que a pessoa em questão preferirá globalmente, seja qual for o caminho que a sua vida siga de facto.

Em vez de descrever um dos casos reais incontáveis, vou mencionar um caso imaginário. Este caso corresponde, no âmbito de uma vida, à Conclusão Repugnante, discutida na Parte IV. Suponha-se que posso ter ou cinquenta anos de vida com uma qualidade extremamente elevada, ou um número indefinidamente vasto de anos que quase não merecem ser vividos. Na primeira alternativa, os meus cinquenta anos, segundo qualquer teoria, correriam muitíssimo bem. Seria muito feliz, realizaria grandes feitos, faria um grande bem, amaria e seria amado por muitas pessoas. Na segunda alternativa a minha vida mereceria sempre ser vivida, mas por pouco. Não haveria nada de mau nesta vida e ela incluiria um ou outro prazer menor em cada dia.

Segundo as Teorias Sumativas, a segunda vida seria a melhor para mim se fosse suficientemente longa. Dentro desta vida, alguns desejos sobre a minha vida são realizados em cada dia. Nos cinquenta anos da primeira alternativa, haveria uma grande soma de realização de desejos locais. Mas essa soma seria finita e acabaria por ser suplantada pela soma da realização de desejos na minha segunda alternativa, que é indefinidamente longa. Pode-se explicar isto de uma forma mais simples. A primeira alternativa seria boa. Na segunda alternativa, como a minha vida merece ser vivida, viver cada dia adicional será bom para mim. Se nos limitarmos a adicionar aquilo que seja bom para mim, um certo número desses dias adicionais produzirá uma soma maior.

Não creio que a segunda alternativa me desse uma vida melhor. Rejeito, portanto, as Teorias Sumativas. É de esperar que, em ambas as alternativas, preferisse globalmente a primeira. Dado que as Teorias Globais implicam, então, que a primeira alternativa me dá uma vida melhor, estas parecem-me mais plausíveis.

Passo agora ao terceiro tipo de teoria que mencionei: a Teoria da Lista Objectiva. De acordo com esta teoria, certas coisas são boas ou más para as pessoas, independentemente de elas quererem ter as coisas boas ou evitar as coisas más. As coisas boas poderão incluir a bondade moral, a actividade racional, o desenvolvimento das nossas capacidades, ter filhos e ser um bom pai, o conhecimento, o apercebimento da verdadeira beleza. As coisas más poderão incluir ser traído, manipulado, difamado, enganado, ser privado da liberdade ou da dignidade, fruir prazer sádico, ou prazer estético com aquilo que na verdade é feio.

Um defensor da Teoria da Lista Objectiva poderá alegar que a sua teoria coincide com a versão global da Teoria do Sucesso. De acordo com esta última, aquilo que faz a minha vida correr da melhor forma depende do que eu prefira, agora e em diversas alternativas, caso conheça todos os factos relevantes sobre essas alternativas. Um defensor da Teoria da Lista Objectiva poderá dizer que os factos mais relevantes são precisamente os mencionados — os factos sobre o que seria bom ou mau para mim. E poderá alegar que quem conheça estes factos desejará aquilo que é bom para si e quererá evitar aquilo que seria mau para si.

Mesmo que isto fosse verdadeiro, embora a Teoria da Lista Objectiva coincidisse com a Teoria do Sucesso, estas não deixariam de ser distintas. Um defensor da Teoria do Sucesso rejeitaria esta descrição da coincidência. Segundo a sua teoria, nada é bom ou mau para as pessoas sejam quais forem as suas preferências. Uma coisa é má para uma pessoa apenas quando, se ela conhecesse os factos, iria querer evitá-la. E os factos relevantes não incluem os supostos factos apontados pelo defensor da Teoria da Lista Objectiva. De acordo com a Teoria do Sucesso, o engano, por exemplo, é mau para uma pessoa se e porque essa pessoa não quer ser enganada. O defensor da Teoria da Lista Objectiva faz a alegação inversa. As pessoas não querem ser enganadas porque isso é mau para elas.

Como estas observações sugerem, há uma diferença importante entre, por um lado, o Hedonismo de Preferências e a Teoria do Sucesso e, por outro, a Teoria da Lista Objectiva. As teorias dos dois primeiros tipos dão-nos uma explicação do interesse pessoal que é puramente descritiva — que não recorre a factos valorativos. Esta explicação recorre apenas àquilo que uma pessoa prefere e preferiria, tendo um conhecimento pleno dos factos inteiramente não-valorativos sobre as alternativas. Ao invés, a Teoria da Lista Objectiva recorre directamente àquilo que alega serem factos valorativos.

Ao escolher entre estas teorias, temos de tomar uma decisão quanto ao peso a dar aos casos imaginários em que as preferências plenamente informadas de uma pessoa são bizarras. Se pudermos recorrer a esses casos, tanto o Hedonismo de Preferências como a Teoria do Sucesso ficarão em dúvida. Consideremos o homem, imaginado por Rawls, que quer passar a sua vida a contar folhas de relva em diversos relvados. Suponha-se que este homem sabe que poderia realizar um grande progresso caso se dedicasse antes a trabalhar numa parte especialmente útil da matemática aplicada. Embora pudesse atingir esses resultados significativos, prefere continuar a contar folhas de relva. De acordo com a Teoria do Sucesso — se admitirmos que esta teoria abranja todos os casos imagináveis —, poderia ser melhor, para essa pessoa, contar folhas de relva em vez de atingir resultados matemáticos úteis e importantes.

O contra-exemplo pode ser mais ofensivo. Suponha-se que aquilo que uma pessoa mais prefere, conhecendo as alternativas, é uma vida na qual, sem ser detectada, inflija tanta dor quanto possível às outras pessoas. De acordo com a Teoria do Sucesso, essa vida seria a melhor para essa pessoa.

Podemos ser incapazes de aceitar estas conclusões. Deveremos, portanto, abandonar esta teoria? Foi isso que Sidgwick fez, embora aqueles que o citam raramente se apercebam disso. Ele sugere que “o bem global futuro de um homem é aquilo que ele agora desejaria e procuraria globalmente, se, no momento presente, todas as consequências de todas as diferentes linhas de conduta de que dispõe fossem previstas rigorosamente e realizadas adequadamente na imaginação”. Como ele observa: “A noção de ‘bem’ assim alcançada contém um elemento ideal: é algo que não é sempre desejado e visado realmente pelos seres humanos. Todavia, o elemento ideal é inteiramente interpretável em termos de factos, reais ou hipotéticos, e não introduz qualquer juízo de valor”. Sidgwick rejeita depois esta perspectiva, afirmando que aquilo que, em última análise, é bom para uma pessoa é o que ela desejaria se os seus desejos estivessem em harmonia com a razão. Esta última ideia é necessária, pensou Sidgwick, para excluir os casos em que os desejos de uma pessoa são irracionais. Ele presume que temos boas razões para desejar algumas coisas e que temos boas razões para não desejar outras coisas. Estas coisas podem ser aquelas que, segundo as Teorias da Lista Objectiva, são boas ou más para nós.

Suponha-se que concordamos que, em alguns casos imaginários, aquilo que uma pessoa mais quereria tanto agora como mais tarde, conhecendo plenamente as alternativas, não seria aquilo que seria melhor para ela. Se aceitarmos esta conclusão, pode parecer que temos de rejeitar tanto o Hedonismo de Preferências como a Teoria do Sucesso. Talvez, como Sidgwick, tenhamos de colocar restrições àquilo que pode ser racionalmente desejado.

Poder-se-á alegar que podemos ignorar o recurso a esses casos imaginários. Poder-se-á alegar que aquilo que as pessoas de facto prefeririam, se conhecessem os factos relevantes, seria sempre algo que poderíamos aceitar como realmente bom para elas próprias. Será esta uma boa réplica? Se concordarmos que, nos casos imaginários, aquilo que uma pessoa preferiria poderá ser algo mau para ela própria, teremos abandonado a nossa teoria no respeita a esses casos. Assim, poderemos defender a nossa teoria dizendo que, a respeito dos casos reais, esta não se desencaminha? Creio que esta não é uma defesa adequada. Mas não vou aprofundar aqui a questão.

Esta objecção poderá não ser tão forte quando aplicada ao Hedonismo de Preferências. Segundo esta teoria, aquilo que pode ser bom ou mau para uma pessoa só pode consistir em aspectos discerníveis da sua vida consciente. Estes são aqueles aspectos que uma pessoa quer, ou não quer, na altura em que estão presentes. Perguntei se será mau para as pessoas serem enganadas porque elas preferem não ser enganadas, ou se preferem não ser enganadas porque isso é mau para elas. Consideremos a questão comparável a respeito da dor. Há quem tenha alegado que a dor é intrinsecamente má e que é por isso que lhe temos aversão. Como disse, duvido desta alegação. Depois de tomarem certas substâncias, as pessoas dizem que, embora a qualidade das suas sensações não se tenha alterado, já não têm aversão a essas sensações. Descreveríamos essas substâncias como analgésicos eficazes. Isto sugere que o mal de uma dor consiste em termos-lhe aversão — e que não lhe temos aversão por ser má. O desacordo entre estas perspectivas exigiria uma discussão aprofundada. Mas, se a segunda perspectiva for melhor, será mais plausível afirmar que aquilo que uma pessoa quer ou não quer experienciar — por muito bizarros que os seus desejos nos pareçam — deve contar como algo que, para essa pessoa, é verdadeiramente aprazível ou doloroso, sendo, por essa razão, bom ou mau para ela. (Ainda assim, poderão existir casos a respeito dos quais é plausível afirmar que seria mau para uma pessoa ela fruir certos tipos de experiência. Poder-se-á dizer isto, por exemplo, a respeito do prazer sádico. Mas talvez existam poucos casos deste género.)

Se recorrermos antes à Teoria do Sucesso, não nos importa apenas a qualidade experienciada da nossa vida consciente. Importam-nos coisas como estarmos ou a não a concretizar aquilo que estamos a tentar concretizar, por exemplo, ou estarmos ou não a ser enganados. Quando consideramos esta teoria, será mais fácil alegarmos plausivelmente que, mesmo que uma pessoa conhecesse os factos, as suas preferências poderiam desencaminhar-se e não corresponder àquilo que seria bom ou mau para ela própria.

Destas teorias diferentes, qual devemos aceitar? Não vou tentar responder aqui a esta questão. Mas terminarei indicando outra teoria que, arguivelmente, combina o que há de mais plausível nestas teorias rivais. É impressionante que aqueles que abordaram esta questão tenham discordado tão profundamente. Muitos filósofos são hedonistas convictos; muitos outros têm a convicção igualmente forte de que o hedonismo é um erro grosseiro.

Alguns hedonistas chegam à sua perspectiva da forma que passo a explicar. Consideram uma perspectiva rival, como a que afirma que aquilo que é bom para uma pessoa é ter conhecimento, envolver-se em actividades racionais ou aperceber-se da verdadeira beleza. Estes hedonistas perguntam: “Estes estados mentais seriam bons se não trouxessem nenhuma satisfação, e se a pessoa que os tem não tivesse o menor desejo de que prossigam?”. Como respondem pela negativa, concluem que o valor desses estados mentais tem de residir no facto de serem apreciados e de suscitarem o desejo de que prossigam.

Este raciocínio pressupõe que o valor de um todo é apenas a soma do valor das suas partes. Se removermos a parte à qual o hedonista atende, aquilo que sobra parece não ter nenhum valor, pelo que o hedonismo é verdadeiro.

Suponha-se antes, mais plausivelmente, que o valor de um todo pode não ser a mera soma do valor das suas partes. Nesse caso, poderemos afirmar que aquilo que é melhor para as pessoas é um composto. Não é apenas estarem em estados conscientes nos quais querem estar. Nem é apenas terem conhecimento, envolverem-se em actividades racionais, aperceberem-se da verdadeira beleza ou algo do género. Aquilo que é bom para uma pessoa não é apenas aquilo que os hedonistas dizem ser bom, nem apenas aquilo que os defensores das Teorias da Lista Objectiva dizem ser bom. Podemos acreditar que, se tivéssemos uma dessas coisas sem a outra, teríamos algo com pouco ou nenhum valor. Podemos afirmar, por exemplo, que aquilo que é bom ou mau para uma pessoa é ter conhecimento, envolver-se em actividades racionais, experienciar amor mútuo e aperceber-se da beleza — ao mesmo tempo que se quer com intensidade precisamente essas coisas. De acordo com esta perspectiva, cada parte do desacordo viu apenas metade da verdade. Cada parte apresentou como suficiente algo que era apenas necessário. O prazer obtido com certos objectos de vários géneros não tem nenhum valor. E não há nenhum valor no conhecimento, na actividade racional, no amor ou no apercebimento da beleza, se estas coisas forem inteiramente desprovidas de prazer. Aquilo que tem valor, ou que é bom para uma pessoa, consiste em ter ambas as coisas: estar envolvido nessas actividades e querer intensamente esse envolvimento.

Derek Parfit
Reasons and Persons (Oxford: Oxford University Press, 1984)
Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457