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Crítica
15 de Abril de 2009   Estética

Os princípios da arte

R. G. Collingwood
Tradução de Desidério Murcho

1. As duas condições de uma teoria estética

A tarefa deste livro é responder à pergunta “O que é a arte?”

Uma pergunta deste tipo tem de ser respondida em duas fases. Em primeiro lugar, temos de garantir que a palavra crucial (neste caso “arte”) é tal que sabemos aplicá-la onde deve ser aplicada e recusá-la onde deve ser recusada. Não serviria de muito começar por discutir a definição correcta de um termo geral cujos casos não pudéssemos reconhecer quando os víssemos. A nossa primeira tarefa é, então, colocarmo-nos numa posição em que possamos dizer confiantemente “isto e isto e isto são arte; aquilo e aquilo e aquilo não são arte”.

Dificilmente valeria a pena insistir nisto não fossem dois factos: que a palavra “arte” é de uso comum, e que é usada equivocadamente. Se não fosse uma palavra de uso comum, poderíamos decidir por nós quando aplicá-la e quando recusá-la. Mas o problema de que nos ocupamos não é tal que se possa abordar desse modo. É um daqueles problemas em que o que queremos fazer é clarificar e sistematizar ideias que já temos; consequentemente, não vale a pena usar palavras de acordo com uma regra privada que seja nossa, temos de as usar de um modo que se adeqúe ao uso comum. Uma vez mais, isto seria fácil não fosse o facto de o uso comum ser ambíguo. A palavra “arte” quer dizer várias coisas diferentes; e temos de decidir qual destes usos nos interessa. Além disso, os outros usos não podem ser simplesmente eliminados por serem irrelevantes. São muito importantes para a nossa investigação; em parte porque se geram teorias falsas por incapacidade para os distinguir, de modo que ao elucidar um uso temos de dar uma certa atenção a outros; em parte porque confundir os vários sentidos da palavra pode resultar em má prática tal como em má teoria. Temos consequentemente de passar em revista os sentidos inapropriados da palavra “arte” de um modo cuidadoso e sistemático; de maneira que no fim possamos não apenas dizer “aquilo e aquilo e aquilo não são arte”, mas “aquilo não é arte por exemplo é pseudo-arte do tipo A; aquilo, porque é pseudo-arte do tipo B; e aquilo, porque é pseudo-arte do tipo C”.

Em segundo lugar, temos de definir o termo “arte”. Isto vem em segundo lugar, e não em primeiro, porque ninguém pode sequer tentar definir um termo até ter estabelecido na sua própria mente um dado uso do termo: ninguém pode definir um termo de uso comum até se sentir satisfeito de que o seu uso pessoal está em harmonia com o uso comum. Definir significa necessariamente definir uma coisa em termos de outra; logo, para definir qualquer coisa, temos de ter não apenas uma ideia clara do que há a definir, mas também uma ideia igualmente clara de todas as outras coisas com referência às quais o definimos. As pessoas erram muitas vezes nisto. Pensam que para construir uma definição ou (o que é o mesmo) uma “teoria” de algo, é suficiente ter uma ideia clara dessa coisa. Isso é absurdo. Ter uma ideia clara da coisa permite-lhes reconhecê-la quando a vêem, tal como ter uma ideia clara de uma certa casa lhes permite reconhecê-la quando lá estão; mas definir a coisa é como explicar onde fica a casa ou indicar a sua posição no mapa; é necessário conhecer igualmente as suas relações com as outras coisas, e se as nossas ideias sobre essas outras coisas são vagas, a nossa definição será fútil.

2. Artistas estetas e filósofos estetas

Dado que qualquer resposta à pergunta “O que é a arte?” tem de ser dividida em duas fases, há duas maneiras de correr mal. Pode resolver o problema do uso satisfatoriamente, mas errar no problema da definição; ou pode lidar competentemente com o problema da definição mas falhar no problema do uso. Estes dois tipos de deficiência podem ser respectivamente descritos do seguinte modo: saber do que estamos a falar, mas dizer coisas destituídas de sentido; e dizer coisas com sentido, mas não saber do que estamos a falar. O primeiro tipo dá-nos um tratamento bem informado e relevante, mas desordenado e confuso; o segundo, um tratamento arrumado e metódico, mas irrelevante.

As pessoas que têm interesse em filosofia da arte subsumem-se aproximadamente em duas classes: artistas com uma inclinação para a filosofia e filósofos com um gosto pela arte. O artista esteta sabe do que está a falar. Consegue discriminar coisas que são arte de coisas que são pseudo-arte, e consegue dizer o que são estas outras coisas: o que as impede de serem arte e o que engana as pessoas fazendo-as pensar que são arte. Isto é a crítica de arte, que não é a mesma coisa que filosofia da arte, mas apenas com a primeira das duas fases que a constituem. É uma actividade perfeitamente válida e valiosa em si; mas as pessoas que são boas nessa actividade não conseguem necessariamente de modo algum chegar à segunda fase e oferecer uma definição de arte. Tudo o que conseguem fazer é reconhecê-la. Isto acontece porque se contentam com uma ideia demasiado vaga das relações que a arte mantém com as coisas que não são arte: não tenho em mente os vários tipos de pseudo-arte, mas coisas como ciência, filosofia, e assim por diante. Contentam-se em conceber estas relações como meras diferenças. Para formular uma definição de arte é necessário pensar em que consistem essas diferenças exactamente.

Os filósofos estetas têm formação para fazer bem exactamente o que os artistas estetas fazem mal. Estão admiravelmente protegidos contra a conversa destituída de sentido: mas não há garantia de que saibam do que estão a falar. Daí que a sua teorização, por mais competente que seja em si, facilmente sofra de fraquezas na sua fundamentação factual. A tentação que sentem é iludir esta dificuldade dizendo: “Não pretendo ser um crítico; não estou à altura de ajuizar os méritos do Sr. Joyce, do Sr. Eliot, da Menina Sitwell, ou da Menina Stein; de modo que me limito a Shakespeare e Miguel Ângelo e Beethoven. Há muito a dizer sobre a arte com base apenas nos clássicos reconhecidos”. Isto seria aceitável para um crítico; mas para um filósofo não. O uso é particular, mas a teoria é universal, e a verdade que se tem em vista é index sui et falsi. O esteta que declara saber o que faz de Shakespeare um poeta está tacitamente a declarar que sabe se a Menina Stein é ou não uma poetisa, e, se não o é, por que não. O filósofo esteta que se restringe a artistas clássicos garante certamente que localizará a essência da arte não no que faz deles artistas mas no que os faz deles clássicos, isto é, aceitável aos olhos do espírito académico.

A estética dos filósofos, não dispondo de um critério material a favor da verdade das teorias na sua relação com os factos, não pode senão aplicar um critério formal. Pode detectar defeitos lógicos numa teoria e consequentemente rejeitá-la por ser falsa; mas nunca pode aclamar ou proclamar qualquer teoria como verdadeira. É completamente inconstrutiva; tamquam virgo Deo consecrata, nihil parit. Contudo, a virtude fugitiva e enclausurada da estética académica não é totalmente destituída de aplicação, ainda que meramente negativa. A sua dialéctica é uma escola na qual o artista esteta ou o crítico podem aprender as lições que lhe mostrarão como passar da crítica de arte à teoria estética.

3. A situação actual

A divisão entre artistas estetas e filósofos estetas corresponde razoavelmente aos factos existentes há meio século, mas não com os factos de hoje. Na última geração, e cada vez mais nos últimos vinte anos, a distância entre estas duas classes foi vencida pelo aparecimento de uma terceira classe de teoristas estéticos: poetas e pintores e escultores que se deram ao trabalho de se formar em filosofia ou psicologia ou ambas, não escrevendo com os ares e graças de um ensaísta nem a condescendência de um hierofante, mas com a modéstia e seriedade de um homem que contribui para uma discussão na qual outros além de si estão a falar, e da qual espera que emirjam verdades que ainda ninguém conhece — nem ele próprio.

Este é um aspecto de uma mudança profunda no modo como os artistas se concebem a si e à relação que mantêm com outras pessoas. Na parte final do século XIX o artista caminhava entre nós como um ser superior, diferente dos comuns mortais até na maneira como se vestia; demasiado elevado e etéreo para ser questionado por outros, demasiado seguro da sua superioridade para se questionar a si mesmo, e ressentindo-se da sugestão de que os mistérios do seu ofício deviam ser objecto de análise e teorização por parte de filósofos e de outras pessoas profanas. Hoje, em vez de constituir um clube de admiração mútua cujo ambiente sereno era de tempos a tempos interrompido por tempestades inedificantes de ciúme, e cujo desprendimento de preocupações mundanas era arruinado de vez em quando por escandalosos contactos com a lei, os artistas fazem a sua vida como outros homens, dedicando-se a uma actividade na qual não têm mais do que um orgulho decente, e criticando-se entre si publicamente quanto às maneiras de a levar a cabo. Neste novo terreno brotou uma nova vegetação de teoria estética; rica em quantidade e em geral de alta qualidade. É demasiado cedo para escrever a história deste movimento, mas não demasiado tarde para dar uma contribuição; e é só porque tal movimento está em curso que um livro como este pode ser publicado com alguma esperança de ser lido com o mesmo espírito com que foi escrito.

4. História da palavra “arte”

Para eliminar as ambiguidades associadas à palavra “arte” temos de olhar para a sua história. O sentido estético da palavra, o sentido que nos diz aqui respeito, é de origem muito recente. Ars em latim antigo, como τεχνη em grego, quer dizer algo muito diferente. Quer dizer um ofício ou tipo especializado de competência, como a carpintaria ou a ferraria ou a medicina. Os gregos e os romanos não tinham concepção do que chamamos “arte” como algo diferente de um ofício; o que chamamos “arte” era por eles encarado meramente como um grupo de ofícios, como o ofício da poesia (ποιητικη τεχνη, ars poetica), que entendiam, por vezes sem dúvida com algumas apreensões, como em princípio precisamente como a carpintaria e tudo o resto, diferindo de cada um desses ofícios apenas do mesmo género de modo em que estes diferem entre si.

É difícil darmo-nos conta deste facto, e ainda mais difícil darmo-nos conta das suas implicações. Se as pessoas não têm uma palavra para um certo tipo de coisa, é porque não estão cientes dela como uma coisa distinta. Porque admiramos a arte dos gregos antigos, supomos naturalmente que eles a admiravam com o mesmo tipo de espírito que nós. Mas nós admiramo-la como um tipo de arte, carregando consigo a palavra “arte” todas as implicações subtis e elaboradas da consciência estética europeia moderna. Podemos estar perfeitamente certos que os gregos não a admiravam desse modo. Abordavam-na de outro ponto de vista. Como o faziam, podemos talvez descobri-lo lendo o que pessoas como Platão escreveram sobre isso; mas não sem grandes dificuldades, porque a primeira coisa que qualquer leitor moderno faz, quando lê o que Platão tem a dizer sobre a poesia, é pressupor que Platão está a descrever uma experiência estética semelhante à nossa. A segunda coisa que faz é perder a paciência porque Platão a descreve tão mal. Com a maior parte dos leitores não há uma terceira fase.

Ars no latim medieval, assim como “arte” no inglês moderno primordial, que tomou de empréstimo tanto a palavra como o sentido, queria dizer qualquer forma especial de saber livresco, como a gramática ou a lógica, a magia ou a astrologia. É esse ainda o que quer dizer no tempo de Shakespeare: “repousa, minha arte”, profere Próspero, pondo de lado a sua toga de mágico. Mas a renascença, primeiro em Itália e depois noutros países, restabeleceu o significado antigo; e os artistas renascentistas, como os do mundo antigo, encaravam-se na verdade a si mesmos como artífices. Não foi senão no século XVII que se começou a desenredar os problemas e concepções do estético dos do técnico ou da filosofia do ofício. No final do século XVIII, esse desenredar tinha sido tão completo que estabeleceu uma distinção entre as belas artes e as artes úteis; sendo que em inglês se chamava fine arts às primeiras, mas não no sentido de serem delicadas ou de exigirem habilidade, mas no sentido de serem belas (les beaux arts, le belle arti, die schöne Kunst). No século XIX esta expressão, abreviada eliminando o epíteto e generalizada substituindo o plural distributivo pelo singular, tornou-se “arte”.

Neste ponto, a separação entre a arte e o ofício ficou completa, em termos teóricos. Mas só em termos teóricos. O novo uso da palavra “arte” é uma bandeira colocada no cume de uma montanha pelos primeiros conquistadores; não prova que o cume está efectivamente ocupado.

5. Ambiguidade sistemática

Para tornar a ocupação efectiva, as ambiguidades anexas à palavra têm de ser esclarecidas e tem de se trazer à luz o seu significado apropriado. O significado apropriado de uma palavra (não falo de termos técnicos, a que os padrinhos bondosos, pouco depois do nascimento, atribuem definições arrumadas e metódicas, mas de palavras de uma língua viva) nunca é algo em cima do qual a palavra se acoite como uma gaivota numa rocha; é algo sobre o qual a palavra esvoaça como uma gaivota sobre a popa de um navio. Tentar fixar o significado apropriado nas nossas mentes é como treinar a gaivota para se acoitar na enxárcia, aceitando a regra de que a gaivota tem de estar viva quando se acoita: é necessário não lhe dar um tiro para depois a prender onde queremos. A maneira de descobrir o significado apropriado de uma palavra não é perguntar “O que queremos dizer?”, mas antes “O que estamos a tentar dizer?” E isto envolve a pergunta “O que nos impede de dizer o que estamos a tentar dizer?”

Estes impedimentos, os significados inapropriados que afastam as nossas mentes do apropriado, são de três tipos. Chamar-lhes-ei significados obsoletos, analógicos e de cortesia.

Os significados obsoletos que toda a palavra com história está condenada a ter são significados que já teve, e que retém por força do hábito. Formam um rasto atrás da palavra como acontece numa estrela cadente, e dividem-se de acordo com a sua distância entre mais ou menos obsoletos. Os muito obsoletos não constituem um perigo para o uso actual da palavra; estão mortos e enterrados, e só o antiquário deseja exumá-los. Mas os menos obsoletos constituem um perigo muitíssimo grave. Agarram-se às nossas mentes como homens a afogar-se, e fustigam de tal modo o significado actual que só através da mais cuidadosa análise conseguimos distingui-lo do obsoleto.

Os significados analógicos resultam do facto de que quando queremos discutir a experiência de outras pessoas só podemos fazê-lo na nossa própria linguagem. A nossa própria linguagem foi inventada para exprimir a nossa própria experiência. Quando a usamos para discutir a experiência de outras pessoas, assimilamos a experiência delas à nossa. Não podemos falar em inglês sobre como pensa e sente uma tribo negra sem os fazer parecer pensar e sentir como um inglês; não podemos explicar aos nossos amigos negros na sua própria linguagem como os ingleses pensam e sentem sem dar a impressão de que pensamos e sentimos como eles.1 Ou melhor, a assimilação de um tipo de experiência a outro corre bem por um tempo, mas mais cedo ou mais tarde surge uma descontinuidade, como quando tentamos representar um tipo de curva por meio de outra. Quando isso acontece, a pessoa cuja linguagem está a ser usada pensa que a outra ficou mais ou menos louca. Assim, ao estudar história antiga usamos a palavra “estado” se escrúpulos como tradução de πολις. Mas a palavra “estado”, que nos vem da renascença italiana, foi inventada para exprimir a nova consciência política secularizada do mundo moderno. Os gregos não tinham tal experiência; a sua consciência política era religiosa e política ao mesmo tempo; de modo que o que queriam dizer com πολις era algo que nos parece uma confusão entre igreja e estado. Não temos palavras para tal coisa porque não temos a coisa. Quando para o exprimir usamos palavras como “estado”, “político”, e assim por diante, não estamos a usá-las no seu sentido apropriado, mas num sentido analógico.

Os significados de cortesia surgem do facto de que as coisas a que damos nomes são coisas a que damos importância. Seja como for o caso dos tecnicismos científicos, as palavras de uma língua viva nunca são usadas sem alguma matização prática ou emocional, que por vezes ganha precedência sobre a sua função descritiva. As pessoas aceitam ou rejeitam títulos como cavalheiro, cristão ou comunista descritivamente, por pensarem que têm ou não as qualidades que tais títulos conotam; ou emocionalmente, porque desejam ter ou não tais qualidades, e isso sem ter em consideração se as conhecem ou não. As duas alternativas estão muito longe de ser mutuamente exclusivas. Mas quando o motivo descritivo fica submergido pelo emocional, a palavra torna-se um título de cortesia ou de descortesia, consoante o caso.

6. Plano do Livro I

Ao aplicar isto à palavra “arte”, descobrimos que o seu significado apropriado está cercado de significados obsoletos, analógicos e de cortesia bem estabelecidos. O único significado obsoleto de qualquer importância é o que identifica a arte com o ofício. Quando este significado se enreda com o significado apropriado, o resultado é aquele tipo especial de erro a que chamo a teoria técnica da arte: a teoria de que a arte é um dado tipo de ofício. Levanta-se então, é claro, a pergunta: Que tipo de ofício? E aqui há muito espaço para controvérsia entre perspectivas rivais quanto à sua diferença específica. Para essa controvérsia, este livro nada contribuirá. A questão não é a arte ser este ou aquele tipo de ofício, mas ser um ofício de todo em todo. Nem sequer me proponho refutar a teoria de que é um tipo qualquer de ofício. Não é uma questão que careça de demonstração. Todos sabemos perfeitamente bem que a arte não é ofício; e tudo o que desejo fazer é relembrar ao leitor as diferenças bem conhecidas que separam as duas coisas.

Analogicamente, usamos a palavra “arte” para muitas coisas que em certos aspectos (importantes, sem dúvida) se parecem com o que chamamos “arte” no nosso próprio mundo europeu moderno, mas que dele diferem noutros. O exemplo que abordarei é a arte mágica. Faço agora uma pausa para explicar o que isto quer dizer.

Quando as pinturas e esculturas naturalistas de animais do paleolítico superior foram descobertas no século passado, foram saudadas por representarem a descoberta de uma nova escola de arte. Pouco depois tomou-se consciência de que esta descrição sugeria uma certa incompreensão. Chamar-lhes “arte” sugeria o pressuposto de que tinham sido concebidas e executadas com o mesmo propósito que as obras modernas a partir das quais o nome lhes tinha sido dado; e descobriu-se que este pressuposto era falso. Quando o Sr. John Skeaping, cujo estilo muito deve obviamente a estes predecessores paleolíticos, faz um dos seus belos desenhos de animais, coloca-o numa moldura de vidro, expõe-no num lugar frequentado pelo público, tem a expectativa de que as pessoas vão até lá e o observem e tem a esperança de que alguém o compre, o leve para casa, e o pendure para ser contemplado e desfrutado por si e pelos seus amigos. Todas as teorias modernas da arte insistem que uma obra de arte é para ser contemplada desse modo. Mas quando um pintor aurignaciano ou magdaleniano fazia um desses desenhos, colocava-o onde ninguém vivia, e muitas vezes onde as pessoas não poderiam sequer aproximar-se sem grandes incómodos, e numa qualquer ocasião especial; e parece que o que esperava que fizessem era que lhe projectassem lanças ou lhe disparassem flechas, após o que, depois de ficar desfigurado, estava disposto a outro por cima.

Se o Sr. Skeaping escondesse os seus desenhos numa cave para carvão e tivesse a expectativa de que qualquer pessoa que os encontrasse os enchesse de buracos de balas, os teorizadores da estética diriam que não era um artista, pois quereria que os seus desenhos fossem usados, como alvos, e não para contemplação, como obras de arte. Pelo mesmo argumento, as pinturas do paleolítico não são obras de arte, por mais que se lhes pareçam: a semelhança é superficial; o que conta é o propósito, e o propósito é diferente. Não preciso de entrar aqui nas razões que levaram os arqueólogos a decidir que o propósito era mágico, e que estas pinturas eram instrumentos de um género qualquer de ritual no qual os caçadores prefiguravam e desse modo asseguravam a morte ou captura dos animais representados.2

Uma função mágica ou religiosa semelhante é reconhecível noutros casos. Os retratos da escultura do Egipto antigo não eram concebidos para exposição e contemplação; estavam escondidos na escuridão do túmulo, sem visitas, onde nenhum espectador poderia vê-los, mas onde podiam fazer o seu trabalho mágico, fosse isso exactamente o que fosse, sem interrupções. Os retratos romanos derivavam das imagens dos seus antecessores que, velando pela vida doméstica da sua descendência, tinham um propósito mágico ou religioso em relação às quais as suas qualidades artísticas eram subservientes. O teatro grego e a sua escultura começaram como instrumentos do culto religioso. E todo o corpo da arte cristã medieval exibe o mesmo propósito.

Os termos “arte”, “artista”, “artístico”, e assim por diante, são muito usados como títulos de cortesia. Quando temos em vista por atacado as coisas que os exigem mas, em suma, os exigem sem verdadeira justificação, torna-se evidente que a coisa que mais constantemente exige e recebe o título de cortesia de “arte” é a coisa cujo nome real é “diversão” ou “entretenimento”. A esmagadora maioria da nossa literatura em prosa e verso, da nossa pintura e desenho e escultura, da nossa música, da nossa dança e teatro, e assim por diante, é muito claramente e muitas vezes bastante explicitamente concebido para divertir, mas chama-se-lhe “arte”. Contudo, sabemos que há uma distinção. O comércio gramofónico, algo recente que tem a franqueza de um enfant terrible, formula mesmo a distinção, ou tenta fazê-lo, nos seus catálogos. Quase todos os seus discos são editados francamente como música de diversão; o pouco que resta é assinalado como “discos de connoisseur” ou algo assim. Os pintores e os romancistas fazem a mesma distinção, mas não tão publicamente.

Este é um facto de grande interesse para o teorizador da estética porque, a menos que o apreenda, pode perverter a sua concepção da própria arte fazendo-o identificar a arte propriamente dita com diversão; e é de igual interesse para o historiador da arte, ou antes da civilização como um todo, porque é do seu foro compreender o lugar que a diversão ocupa relativamente à arte e à civilização em geral.

A nossa primeira tarefa, pois, é investigar estes três tipos do que falsamente se chama “arte”. Feito isso, temos de ver o que resta dizer da arte propriamente dita.

R. G. Collingwood
The Principles of Art (Oxford: Clarendon Press, 1938)

Notas

  1. “Considere o leitor qualquer argumento que possa demolir todas as afirmações dos Zande a favor do poder do oráculo. Se fosse traduzido para os modos de pensar dos Zande [o que é o mesmo que dizer: se fossem traduzidos para a linguagem dos Zande] serviria para sustentar a totalidade da sua estrutura de crenças”. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande (1937), pp. 319-320.
  2. Os leitores ingleses que quiserem entrar na questão podem consultar o Conde Bégouen, “The Magical Origin of Prehistoric Art”, in Antiquity, iii (1929), pp. 5–19, e Baldwin Brown, The Art of the Cave-Dweller (1928).
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