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Crítica
13 de Julho de 2015   Metafísica

A ilusão do livre-arbítrio

Robert Blatchford
Tradução de Álvaro Nunes

A ilusão do livre-arbítrio foi um obstáculo no caminho do pensamento humano durante milhares de anos. Vejamos se o senso comum e o conhecimento não podem removê-la.

O livre-arbítrio é um assunto de grande importância para nós neste caso e devemos tratá-lo com os olhos bem abertos e com a inteligência bem desperta; não porque seja muito difícil, mas porque tem sido atado e torcido num emaranhado de nós górdios durante vinte séculos cheios de filósofos palavrosos e malsucedidos.

O partido do livre-arbítrio clama que o homem é responsável pelos seus actos, porque a sua vontade é livre de escolher entre o bem e o mal.

Respondemos que a vontade não é livre e que se fosse, o homem não poderia conhecer o bem e o mal enquanto não fosse ensinado.

O partido do livre-arbítrio afirmará que, no que respeita ao conhecimento do bem e do mal, a consciência é um guia seguro. Mas eu já provei que a consciência não nos diz e não pode dizer-nos o que é correcto ou incorrecto; apenas nos recorda das lições que aprendemos acerca do correcto e o incorrecto.

A “suave voz em surdina” não é a voz de Deus: é a voz da hereditariedade e do meio.

Passemos agora ao livre-arbítrio.

Quando um homem diz que o seu arbítrio é livre, quer dizer que é livre de todo o controlo ou interferência; que pode dominar a hereditariedade e o meio.

Respondemos que o arbítrio é governado pela hereditariedade e pelo meio.

A causa de toda a confusão neste assunto mostra-se em poucas palavras.

Quando o partido do livre-arbítrio diz que o homem tem livre-arbítrio, quer dizer que é livre de agir como escolhe agir.

Não há necessidade de o negar. Mas o que o faz escolher?

Este é o eixo em torno do qual toda a discussão gira.

O partido do livre-arbítrio parece pensar na vontade como algo independente do homem, algo fora dele. Parece pensar que a vontade decide sem o controlo da razão humana.

Se fosse assim, não provaria que o homem é responsável. “A vontade” seria responsável e não o homem. Seria tão ridículo censurar um homem pelo acto de uma vontade “livre” como censurar um cavalo pela acção do seu cavaleiro.

Mas vou provar aos meus leitores, apelando ao seu senso comum e ao seu conhecimento comum, que a vontade não é livre; e que é governada pela hereditariedade e pelo meio.

Para começar, o homem comum estará contra mim. Sabe que escolhe entre dois percursos a toda a hora, e frequentemente a todo o minuto, e pensa que a sua escolha é livre. Mas isso é uma ilusão; a sua escolha não é livre. Pode escolher e, de facto, escolhe. Mas pode apenas escolher como a sua hereditariedade e o seu meio o fazem escolher. Nunca escolhe e nunca escolherá a não ser como a sua hereditariedade e o seu meio — o seu temperamento e a sua formação — o fazem escolher. E a sua hereditariedade e o seu meio fixaram a sua escolha antes de ele a fazer.

O homem comum diz “Sei que posso agir como desejo agir”. Mas o que o faz desejar?

O partido do livre-arbítrio diz “Sabemos que um homem pode escolher e efectivamente escolhe entre dois actos”. Mas o que decide a escolha?

Há uma causa para todo o desejo, uma causa para toda a escolha; e toda a causa de todo o desejo e escolha tem origem na hereditariedade ou no meio.

Pois um homem age sempre devido ao temperamento, que é hereditariedade, ou devido à formação, que é meio.

E nos casos em que um homem hesita ao escolher entre dois actos, a hesitação é devida a um conflito entre o seu temperamento e a sua formação ou, como alguns o exprimem, “entre o seu desejo e a sua consciência”.

Um homem está a praticar tiro ao alvo com uma arma quando um coelho se atravessa na sua linha de fogo. O homem tem os olhos postos no coelho e o dedo no gatilho. A vontade humana é livre. Se ele carregar no gatilho, o coelho é morto.

Ora, como decide o homem se dispara ou não? Por intermédio do sentimento e da razão.

Ele gostaria de disparar apenas para ter a certeza de que é capaz de acertar. Gostaria de disparar porque gostaria de ter coelho para o jantar. Gostaria de disparar porque existe nele o antiquíssimo instinto caçador de matar.

Mas o coelho não lhe pertence. Não tem a certeza de que não se mete em sarilhos se o matar. Talvez — se for um tipo de homem fora do comum — sinta que seria cruel e covarde matar um coelho indefeso.

Bem, a vontade do homem é livre. Se quiser, pode disparar; se quiser, pode deixar ir o coelho. Como decidirá? De que depende a sua decisão?

A sua decisão depende da força relativa do seu desejo de matar o coelho, dos seus escrúpulos acerca da crueldade, e da lei.

Além disso, se conhecêssemos o homem muito bem, poderíamos adivinhar como o seu livre-arbítrio agiria antes que tivesse agido. O desportista britânico comum mataria o coelho. Mas sabemos que há homens que nunca matariam uma criatura indefesa.

De modo geral, podemos dizer que o desportista desejaria disparar e que o humanitarista não desejaria disparar.

Ora, como as vontades de ambos são livres, deve ser alguma coisa fora das vontades que faz a diferença.

Bem, o desportista matará porque é desportista; o humanitarista não matará porque é humanitarista.

E o que faz de um homem um desportista e de outro um humanitarista? Hereditariedade e meio: temperamento e formação.

Um homem é, por natureza, misericordioso e o outro cruel; ou um é, por natureza, sensível e o outro insensível. Esta é uma diferença de hereditariedade.

Um pode ter sido toda a sua vida ensinado que matar animais selvagens é “desporto”; o outro pode ter sido ensinado que é desumano e incorrecto; esta é uma diferença de meio.

Ora, o homem por natureza cruel ou insensível, formado para pensar que matar animais é um desporto, torna-se aquilo a que chamamos um desportista, porque a hereditariedade e o meio fizeram dele um desportista.

A hereditariedade e o meio do outro homem fizeram dele um humanitarista.

O desportista mata o coelho porque é um desportista, e é um desportista porque a hereditariedade e o meio fizeram dele um desportista.

Isso é dizer que o “livre-arbítrio” é realmente controlado pela hereditariedade e pelo meio.

Permita-se-me que dê um exemplo. Um homem que nunca pescou foi levado à pesca por um pescador. Gostou do desporto e durante alguns meses praticou-o entusiasticamente. Mas um dia um acidente convenceu-o da crueldade que é apanhar peixes com um anzol e pôs de lado imediatamente a sua cana e nunca mais voltou a pescar.

Antes da mudança, se era convidado, estava sempre ansioso por ir pescar; após a mudança, ninguém conseguia persuadi-lo a tocar numa linha. A sua vontade foi sempre livre. Como se transformou então a sua vontade de pescar na sua vontade de não pescar? Foi consequência do meio. Aprendeu que pescar é cruel. O conhecimento controlou a sua vontade.

Mas, pode-se perguntar, como explicar que um homem faça o que não deseja fazer?

Nenhum homem alguma vez faz uma coisa que não deseja fazer. Quando há dois desejos, impera o mais forte.

Suponhamos o seguinte caso. Uma jovem recebe duas cartas no mesmo correio; uma é um convite para ir com o seu namorado a um concerto, a outra é um pedido para que visite uma criança doente num bairro de lata. A rapariga é uma grande apreciadora de música e receia bairros de lata. Deseja ir ao concerto e estar com o namorado; receia as ruas imundas e as casas sujas, e evita correr o risco de contrair sarampo ou febre. Mas vai ver a criança doente e não vai ao concerto. Porquê?

Porque o seu sentido do dever é mais forte do que seu amor-próprio.

Ora, o seu sentido do dever é em parte devido à sua natureza — isto é, à sua hereditariedade — mas é principalmente devido ao meio. Como todos nós, a rapariga nasceu sem quaisquer conhecimentos e com apenas uns rudimentos de uma consciência. Mas foi bem ensinada e a instrução faz parte do seu meio.

Podemos dizer que a rapariga é livre de agir como escolhe, mas age de facto como foi ensinada que deve agir. Este ensino, que faz parte do seu meio, controla a sua vontade.

Podemos dizer que um homem é livre de agir como escolhe. Ele é livre de agir como ele escolhe, mas ele escolherá como a hereditariedade e o meio o fizerem escolher. Porque a hereditariedade e o meio fizeram que ele seja aquilo que é.

Diz-se que um homem é livre de decidir entre dois percursos. Mas na realidade ele é apenas livre de decidir de acordo com o seu temperamento e a sua formação [...]

Macbeth era ambicioso; mas tinha consciência. Queria a coroa de Duncan; mas recuava perante a traição e a ingratidão. A ambição puxava-o num sentido, a honra puxava-o no outro. As forças opostas estavam tão uniformemente equilibradas que parecia incapaz de decidir-se. Era Macbeth livre de escolher? Até que ponto era livre? Era tão livre que não conseguia decidir-se e foi a influência da sua mulher que inclinou a balança para o lado do crime.

Era Lady Macbeth livre de escolher? Ela não hesitou. Porque a sua ambição era de tal modo mais forte que a sua consciência que nunca teve dúvidas. Escolheu como a sua toda-poderosa ambição a compeliu a escolher.

E a maior parte de nós nas nossas decisões assemelhamo-nos a Macbeth ou à sua mulher. Ou a nossa natureza é de tal modo mais forte que a nossa formação, ou a nossa formação é de tal modo mais forte que a nossa natureza, que decidimos para o bem e para o mal tão prontamente quanto um rio decide correr colina abaixo; ou a nossa natureza e a nossa formação estão tão bem equilibradas que dificilmente podemos decidir.

No caso de Macbeth, a competição é clara e fácil de seguir. Era ambicioso e o seu meio ensinou-lhe a olhar a coroa como uma possessão gloriosa e desejável. Mas o meio também lhe ensinou que o assassinato, a traição e a ingratidão são perversos e deploráveis.

Se nunca lhe tivessem ensinado estas lições ou se lhe tivessem ensinado que a gratidão é uma tolice, que a honra é uma fraqueza, e que o assassinato é desculpável quando leva ao poder, não teria hesitado. Foi o seu meio que impediu a sua vontade [...]

A acção da vontade depende sempre da força relativa de dois ou mais motivos. O motivo mais forte decide a vontade; tal como o peso mais pesado decide o equilíbrio dos pratos de uma balança [...]

Como podemos, então, acreditar que o livre-arbítrio é exterior e superior à hereditariedade e ao meio? [...]

“O quê! Um homem não pode ser honesto se escolher sê-lo?” Sim, se escolher sê-lo. Mas essa é apenas outra forma de dizer que pode ser honesto se a sua natureza e a sua formação o levarem a escolher honestamente.

“O quê! Não posso satisfazer-me quer beba ou me abstenha de beber?” Sim. Mas isso é apenas dizer que não irás beber porque te apraz estar sóbrio. Mas apraz a outro homem beber, porque o seu desejo por bebida é forte ou porque a sua auto-estima é fraca.

E tu decides como decides e ele decide como decide, porque tu és tu e ele é ele; e a hereditariedade e o meio fizeram de ambos o que são.

E o homem sóbrio pode passar por tempos maus e perder a auto-estima, ou achar o fardo dos seus problemas maior do que aquilo que ele pode aguentar e cair na bebida para se consolar ou esquecer, e tornar-se um bêbado. Não acontece isto frequentemente?

E o bêbado pode, devido a algum choque, ou a algum desastre, ou a alguma paixão, ou a alguma persuasão, recuperar a auto-estima e renunciar à bebida e levar uma vida sóbria e útil. Não acontece isto frequentemente?

E em ambos os caso a liberdade da vontade permanece intacta: é a mudança no meio que eleva os caídos e lança os honrados por terra.

Podemos dizer que a vontade de uma mulher é livre e que ela poderia, se o desejasse, saltar de uma ponte e afogar-se. Mas não pode desejá-lo. É feliz, ama a vida e teme o rio frio e impetuoso. E no entanto, devido a alguma cruel volta da roda da fortuna, pode tornar-se pobre e infeliz; tão infeliz que odeia a vida e está ansiosa pela morte e, por isso, pode saltar para o temeroso rio e morrer.

A sua vontade é tão livre numa altura como na outra. Foi o meio que forjou a mudança. Antes, não podia desejar morrer; agora, não pode desejar viver.

Os apóstolos do livre-arbítrio acreditam que todos os homens são livres. Mas um homem pode apenas desejar aquilo que é capaz de desejar. E um homem é capaz de desejar aquilo que outro homem é incapaz de desejar. Negá-lo é negar os factos da vida mais comuns e mais óbvios [...]

Todos sabemos que podemos prever a acção de certos homens em certos casos, porque conhecemos os homens.

Sabemos que nas mesmas condições Jack Sheppard irá roubar e que Cardinal Manning não irá roubar. Sabemos que nas mesmas condições o marinheiro irá namoriscar com a empregada de balcão e o padre não irá; que o bêbado se embebedará, e o abstémio manter-se-á sóbrio. Sabemos que Wellington recusaria um suborno, que Nelson não fugiria, que Bonaparte agarrar-se-ia ao poder, que Abraham Lincoln seria leal ao seu país, que Torquemada não pouparia um herético. Porquê? Se a vontade é livre, como podemos estar certos, antes de o teste ocorrer, de como a vontade irá agir?

Simplesmente porque sabemos que a hereditariedade e o meio formaram e moldaram de tal modo os homens e as mulheres que em certas circunstâncias a acção das suas vontades é certa.

A hereditariedade e o meio tendo feito de um homem um ladrão, ele irá roubar. A hereditariedade e o meio tendo feito um homem honesto, ele não irá roubar.

Quer dizer, a hereditariedade e o meio decidiram a acção da vontade antes de ter chegado a altura da vontade agir.

Sendo as coisas assim — e todos sabemos que são assim — o que acontece à soberania da vontade?

Deixemos qualquer homem que acredite que pode “agir como lhe agradar” perguntar a si mesmo por que lhe agrada e ele verá o erro da teoria do livre-arbítrio e irá compreender por que a vontade é escrava e não mestre do homem: porque o homem é o produto da hereditariedade e do meio e estes controlam a vontade.

Como queremos esclarecer tanto quanto possível este assunto, consideremos um ou dois exemplos conhecidos da acção da vontade.

Jones e Robinson encontram-se e bebem um copo de whisky. Jones pergunta a Robinson se quer outro. Robinson diz, “não obrigado, chega um”. Jones diz “está bem; tome outro cigarro”. Robinson aceita o cigarro. Ora, temos aqui um caso em que um homem recusa uma segunda bebida, mas aceita um segundo cigarro. É porque iria gostar de fumar outro cigarro, mas não iria gostar de beber outro copo de whisky? Não. É porque sabe que é mais seguro não beber outro copo de whisky.

Como sabe ele que o whisky é perigoso? Aprendeu-o — no seu meio.

“Mas poderia ter bebido outro copo se o tivesse desejado”.

Mas ele não poderia ter desejado beber outro copo, porque havia algo que ele desejava mais — estar seguro.

E por que quer ele estar seguro? Porque aprendeu — no seu meio — que era prejudicial, inútil, e indecoroso ficar bêbado. Porque aprendeu — no seu meio — que é mais fácil evitar adquirir um mau hábito do que eliminar um mau hábito uma vez adquirido. Porque deu valor à boa opinião dos seus vizinhos e à sua posição e perspectivas de futuro.

Estes sentimentos e este conhecimento governaram a sua vontade e fizeram-no recusar o segundo copo.

Mas não há sentimento de perigo ou lição bem aprendida de risco para impedir a sua vontade de fumar outro cigarro. A hereditariedade e o meio não o previnem contra isso. Assim, para agradar ao seu amigo e a si mesmo, aceitou.

Agora supõe que Smith oferece a Williams outro copo. Williams aceita, bebe vários copos e vai depois para casa — como frequentemente vai para casa. Porquê?

Em grande medida porque tem o hábito de beber. Não só a mente repete instintivamente uma acção, como, no caso da bebida, uma grande ânsia física é activada e o cérebro enfraquecido. É mais fácil recusar o primeiro copo do que o segundo; mais fácil recusar o segundo do que o terceiro; e muito mais difícil para um homem que frequentemente se embebeda manter-se sóbrio.

Assim, quando o pobre Williams tem de fazer a sua escolha, tem o hábito contra ele, tem uma grande ânsia física contra ele e tem um cérebro enfraquecido com que pensar.

“Mas, Williams poderia ter recusado o primeiro copo”.

Não. Porque, no seu caso, o desejo de beber, ou de agradar a um amigo, era mais forte do que o seu medo do perigo. Ou pode não ter tido tanta consciência do perigo quanto Robinson. Pode não ter sido tão bem ensinado, ou pode não ter sido tão sensato, ou pode não ter sido tão cuidadoso. De modo que a sua hereditariedade e o seu meio, o seu temperamento e a sua formação, o levaram a tomar a bebida com tanta certeza quanto a hereditariedade e o meio de Robinson o levaram a recusar.

E agora é a minha vez de fazer uma pergunta. Se a vontade é “livre”, se a consciência é um guia seguro, como é que o livre-arbítrio e a consciência de Robinson o fizeram manter-se sóbrio, enquanto o livre-arbítrio e a consciência de Williams o fizeram embebedar-se?

A vontade de Robinson foi contida por certos sentimentos que não conseguiram conter a vontade de Williams. Porque no caso de Williams os sentimentos no outro sentido eram mais fortes.

Foi a natureza e a formação de Robinson que o fizeram recusar o segundo copo e foi a natureza e a formação de Williams que o fizeram beber o segundo copo.

O que teve o livre-arbítrio a ver com isto?

Disseram-nos que todos os homens têm um livre-arbítrio e uma consciência.

Ora, se Williams tivesse sido Robinson, isto é, se a sua hereditariedade e o seu meio tivessem sido exactamente como os de Robinson, ele teria agido exactamente como Robinson agiu.

Foi porque a sua hereditariedade e o seu meio não eram o mesmo que o seu acto não foi o mesmo.

Tinham ambos livre-arbítrio. O que levou um a fazer aquilo que o outro se recusou a fazer? Hereditariedade e meio. Para inverter a sua conduta teríamos de inverter a sua hereditariedade e o seu meio [...]

Dois rapazes têm um emprego difícil e desagradável. Um deixa esse emprego e arranja outro, “sobe na vida” e é elogiado por ter subido na vida. O outro mantém-se naquele emprego toda a sua vida, trabalha muito toda a sua vida e é respeitado como um trabalhador honesto e humilde; quer dizer, é visto pela sociedade como Mr. Dorgan era visto por Mr. Dooely — “é um excelente homem, mas desprezo-o”.

O que faz estas duas vontades livres serem tão diferentes? Um rapaz sabia mais do que o outro. “Conhecia mais”. Todo o conhecimento é meio. Os dois rapazes tinham livre-arbítrio. Era no conhecimento que diferiam: meio!

Quem exalta o poder da vontade e menospreza o poder do meio desmente as suas palavras pelos seus actos.

Porque não mandariam os seus filhos para o meio de más companhias nem permitiriam que lessem maus livros. Não diriam que as crianças têm livre-arbítrio e, portanto, o poder de agarrar o bom e largar o mau.

Sabem muito bem que um mau meio tem o poder de perverter a vontade e que um bom meio tem o poder de a dirigir pelo bom caminho.

Sabem que as crianças podem tornar-se boas ou más por uma boa ou má formação e que a vontade segue a formação.

Sendo assim, têm também de admitir que os filhos das outras pessoas podem ser bons ou maus por formação.

E se uma criança tem uma má formação, como pode o livre-arbítrio salvá-la? Ou como pode ela ser censurada por ser má? Nunca teve oportunidade de ser boa. Que sabem isto é provado pelo cuidado que colocam em providenciar aos seus próprios filhos um meio melhor.

Como disse, cada igreja, cada escola, cada lição de moral é uma prova de que os pregadores e os professores confiam no bom meio, e não no livre-arbítrio, para tornar as crianças melhores.

Nesta, como em muitas outras matérias, as acções falam mais alto do que as palavras.

Isto, espero eu, desata os muitos nós com que milhares de homens eruditos ataram o tema simples do livre-arbítrio e destrói a alegação de que o homem é responsável porque a sua vontade é livre. Mas há outra causa de erro, relacionada com este assunto acerca da qual gostaria de dizer umas quantas palavras.

Ouvimos frequentemente dizer que um homem deve ser censurado pela sua conduta porque “sabia o que estava a fazer”.

É verdadeiro que os homens agem erradamente quando sabem o que fazem. Macbeth “sabia o que fazia” quando assassinou Duncan. Mas também é verdadeiro que frequentemente pensamos que um homem “sabe o que faz” quando não sabe o que faz.

Porque não se pode dizer que um homem sabe uma coisa enquanto não acreditar nela. Se me disserem que a Lua é feita de queijo verde, não se pode dizer que sei que é feita de queijo verde.

Muitos moralistas parecem confundir a palavra “conhecer” com a palavra “ouvir”.

Jones lê romances e toca música de ópera ao Domingo. O Puritano diz que Jones “sabe o que faz” quando quer dizer que disseram a Jones que é incorrecto fazer essas coisas.

Mas Jones não sabe que isso é incorrecto. Ouviu alguém dizer que é incorrecto, mas não acredita nisso. Portanto, não é adequado dizer que sabe.

E igualmente no que respeita à crença. Alguns moralistas sustentam que é mau não acreditar em certas coisas e que os homens que não acreditam nessas coisas serão punidos.

Mas um homem não pode acreditar numa coisa que lhe dizem para acreditar; ele pode apenas acreditar numa coisa em que ele pode acreditar; e ele só pode acreditar naquilo que a sua própria razão lhe diz que é verdadeiro.

Seria inútil pedir a Sir Roger Ball que acredite que a Terra é plana. Ele não poderia acreditar nisso.

É inútil pedir a um agnóstico que acredite na história de Jonas e da baleia. Ele não poderia acreditar nela. Pode fingir que acredita. Pode tentar acreditar nela. Mas a sua razão não lhe permitiria acreditar nela.

Portanto, é um erro dizer que um homem “sabe o que faz” quando lhe disseram para “saber” e ele não pode acreditar no que lhe disseram.

Essa é uma questão simples e parece muito banal; mas quanta má-vontade, quanta intolerância, quanta violência, perseguições e assassinatos foram causados pela estranha ideia de que o homem é mau porque a sua razão não pode acreditar no que para outra razão humana [é] absolutamente verdadeiro.

O livre-arbítrio não tem qualquer poder sobre as crenças de um homem. Um homem não pode acreditar por querer, mas apenas por convicção. Um homem não pode ser forçado a acreditar. Podes ameaçá-lo, feri-lo, bater-lhe, queimá-lo; e ele pode ser assustado, irritado ou atormentado; mas não pode acreditar, nem se pode obrigá-lo a acreditar. Até que seja convencido.

Ora, embora isto possa parecer um truísmo, penso que é necessário dizer aqui que um homem não pode ser convencido nem pela ofensa nem pelo castigo. Ele pode apenas ser convencido pela razão.

Sim. Se queremos que um homem acredite numa coisa, teremos de encontrar umas quantas razões mais poderosas do que um milhão de pragas ou um milhão de baionetas. Queimar um homem vivo por não acreditar que o Sol gira em torno da Terra não é convencê-lo. O fogo é penetrante, mas não lhe parece relevante para a questão. Ele nunca duvidou de que o fogo queima; mas talvez os seus olhos moribundos possam ver o Sol a pôr-se no oeste, à medida que o mundo gira no seu eixo. Morre com a sua crença. E não sabe.

Robert Blatchford
Not Guilty (Albert and Charles Boni, Inc., 1913)
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ISSN 1749-8457