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Crítica
17 de Maio de 2012   Filosofia da ciência

Em defesa do realismo científico

Stathis Psillos
Tradução de L. H. Marques Segundo

Até agora tenho oferecido argumentos contra o empirismo redutivo, contra várias versões de instrumentalismo, tanto do tipo eliminativo quanto do tipo duheniano (não-eliminativo). Vimos que a chamada “via de Ramsey” não oferece um compromisso estável e satisfatório entre o realismo e o instrumentalismo. Por isso, a única alternativa é adotar uma atitude realista frente às entidades inobserváveis postuladas por nossas melhores teorias. Se o realismo semântico for adotado, então teremos uma resposta simples à pergunta: como é o mundo de acordo com uma determinada teoria científica? (Ou similarmente, como é o mundo se certa teoria científica for verdadeira?). A resposta não é outra senão a de que o mundo é do modo como a teoria científica — literalmente entendida — descreve como sendo.

Essa resposta parece ter certas implicações para as questões epistemológicas. Grosso modo, uma vez que o realismo semântico é adotado, o problema da crença justificada na existência de entidades inobserváveis parece resolver-se: na medida em que as teorias científicas são bem confirmadas, é racional acreditar na existência das entidades que elas postulam. Pois, onde mais além de nas nossas melhores teorias deveríamos procurar a fim de decidir em que é razoável acreditar acerca do mundo? Se a nossa melhor ciência não é o nosso melhor guia para os nossos compromissos ontológicos, então nada mais é.

A virada realista na filosofia da ciência desde o início da década de 1960 visou remover os últimos escrúpulos que se poderia ter contra a confirmabilidade e a confirmação efetiva das teorias científicas. Os realistas ofereceram uma bateria de argumentos que visavam defender uma atitude realista frente às nossas melhores teorias científicas, tanto quanto bloquear os contra-exemplos de seus oponentes que pretendiam mostrar que as teorias científicas não podem ser aceitas como aproximadamente verdadeiras. Assim, a virada realista visou assegurar o otimismo epistêmico associado ao realismo científico — uma perspectiva que já foi explicada na Introdução deste livro. Neste capítulo, tento mostrar que essa atitude de otimismo epistêmico é bem intencionada e justificada.

Um argumento central na defesa do realismo científico é o famoso “argumento do milagre” (doravante AM) que visa mostrar que se pode razoavelmente acreditar nas nossas melhores teorias científicas como aproximadamente verdadeiras. O AM encontra a sua formulação “normal” nestas palavras de Hilary Putnam:

O argumento positivo a favor do realismo é que é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre. Que os termos nas teorias científicas maduras tipicamente referem (essa formulação é devida a Richard Boyd), que as teorias aceitas nas ciências maduras são tipicamente aproximadamente verdadeiras, que os mesmos termos possam referir ao mesmo referente mesmo quando ocorram em teorias diferentes — essas afirmações são vistas não como verdades necessárias, mas como parte da única explicação científica do sucesso da ciência e, portanto, como parte de qualquer descrição adequada da ciência e de suas relações com os seus objetos. (1975: 75)

Desse modo, o AM visa defender a alegação realista de que as teorias científicas bem-sucedidas deveriam ser aceitas como descrições verdadeiras (ou melhor, aproximadamente verdadeiras) do mundo, tanto de seus aspectos observáveis quanto inobserváveis. Em particular, a alegação realista é que aceitar que as teorias científicas bem-sucedidas descrevem verdadeiramente (ou aproximadamente) o mundo inobservável explica melhor por que essas teorias são empiricamente bem-sucedidas. Isto é, explica melhor por que os fenômenos observáveis são como foram previstos por aquelas teorias.

Como expresso por Putnam, pretende-se que o AM seja uma instância da inferência a favor da melhor explicação (doravante IME ou abdução). O que precisa ser explicado, o explanandum, é o grande sucesso empírico da ciência. O AM visa concluir que as principais teses associadas ao realismo científico, especialmente a tese de que as teorias bem-sucedidas são aproximadamente verdadeiras, oferece a melhor explicação do explanandum. Portanto, elas têm de ser aceitas precisamente com base nisso. Essa leitura baseada na IME subscreve a atual defesa do realismo desenvolvida por Richard Boyd e elaborada por mim no presente capítulo. Irei chamá-lo, portanto, de argumento de Putnam-Boyd. No entanto, o argumento de Putnam-Boyd tem sido acusado repetidamente de ser viciosamente circular e pressupor contra os críticos do realismo aquilo que está em causa. Pois, nota-se, embora os críticos do realismo neguem (ou simplesmente duvidem) que a IME seja um método inferencial fiável, o AM pressupõe a sua fiabilidade. Como dito por Fine (1991: 82), uma defesa do realismo baseada na IME carece de força argumentativa, uma vez que emprega “o mesmo tipo de argumento cuja cogência está em discussão”. Afastar o ataque da circularidade viciosa e a petição de princípio deveria ser uma tarefa central em minha defesa do realismo. Mas antes disso, é preciso alguma discussão detalhada no que diz respeito à estrutura do principal argumento realista. Em particular, tentarei, nas seções subseqüentes, destrinchar várias versões do AM. As próximas duas seções determinam e articulam cuidadosamente aquela que considero a versão mais forte do AM, mostrando que ela pode oferecer uma boa defesa do realismo, contanto que seja vista como parte de um pacote epistemológico externista e naturalista completo.

Coincidências cósmicas e o sucesso da ciência

Aquelas que parecem ser as variantes do AM foram apresentadas já antes do slogan de Putnam ter aparecido por J. J. C. Smart e Grover Maxwell. Smart argumentou contra os instrumentalistas que eles “tinham de acreditar numa coincidência cósmica” (1963: 39). Na verdade, ele se referia ao “fenomenismo acerca de entidades teóricas”, mas considere isso como o instrumentalismo eliminativo, i.e. a perspectiva de que “as afirmações sobre elétrons, etc. têm apenas valor instrumental: elas simplesmente nos ajudam a prever fenômenos em nível de galvanômetros e câmaras de nuvens” (ibid.).

Já vimos (Capítulo 2) que o instrumentalismo eliminativo considera as teorias científicas meramente como constructos sintático/matemáticos para a organização dos fatos experimentais e empíricos, e para agrupar leis empíricas e observações que de outro modo seriam irrelevantes umas às outras. Dessa perspectiva, as afirmações teóricas não têm sequer condições de verdade, i.e. não são susceptíveis de serem verdadeiras ou falsas; e nem as teorias implicam compromissos existenciais com inobserváveis. A emergência do teorema de Craig coincidiu o com auge dessa perspectiva. Pois, como vimos (pp. 22–23), ele oferece ao instrumentalista uma maneira sistemática de eliminar os termos teóricos.

Na abordagem instrumentalista eliminativa, um vasto número de fenômenos observáveis ontologicamente desconectados é “conectado” apenas em virtude de uma teoria puramente instrumental: eles apenas acontecem, e apenas acontece de se relacionarem uns com os outros de modo que a teoria do estilo de Craig seja verdadeira. Se assim for, o que, além de uma coincidência gigante, torna a teoria craigiana verdadeira? Ao aceitar o vasto número de conexões implicada por uma teoria do estilo de Craig excede-se os limites de tolerância, especialmente quando há uma abordagem mais fácil que afasta toda essa coincidência. Mas olhe para realismo científico, diz Smart. Ele não deixa espaço para coincidência numa escala cósmica: é porque as teorias são verdadeiras e porque as entidades inobserváveis que elas postulam existem que os fenômenos são do modo que são, e se relacionam uns com os outros do modo que se relacionam. Eis o contraste nas próprias palavras de Smart:

Não é estranho que os fenômenos do mundo fossem de tal modo que tornassem uma teoria puramente instrumental verdadeira? Por outro lado, se interpretarmos uma teoria de modo realista, então não teremos necessidade de tal coincidência cósmica: não é surpreendente que galvanômetros e câmaras de nuvens se comportem do modo que se comportam, pois se há de fato elétrons, etc., é isso que deveríamos esperar. (1963: 39)

Pode-se considerar o argumento de Smart como uma versão do argumento do “milagre” apresentado por Putnam. À primeira vista, parece que estamos lidando de fato com o mesmo argumento. A única diferença parece ser lexical: Smart exclui as coincidências cósmicas, enquanto que Putnam exclui os milagres. Afinal, o próprio Smart também falou de um “milagre cósmico” (1979: 364). Parece que ambos os argumentos assentam-se naquilo que tomam como a melhor explicação do porquê de os fenômenos observáveis serem como foram previstos pelas teorias científicas. Enquanto uma aproximação isso poderia estar correto. No entanto, se olharmos cuidadosamente para os detalhes dos dois argumentos, é pertinente distinguir a versão de Smart da versão de Putnam-Boyd do AM.

O argumento de Smart não pretende ser uma inferência a favor da melhor explicação. Ele é um argumento filosófico mais geral, que é às vezes chamado de argumento de plausibilidade (cf. Smart 1963: 8–12). Para Smart, o argumento a favor do realismo é amplamente a priori. Ele considera que pelo menos parte do método distintivamente filosófico é clarificar disputas conceituais, i.e. disputas que não são susceptíveis de testes empíricos. Dessa perspectiva, o trabalho do filósofo é oferecer argumentos a favor de cada lado da disputa. A consistência não está em questão aqui, pois cada posição pode ser tornada consistente com ingenuidade o suficiente. Antes, o filósofo deveria pretender examinar a plausibilidade ou arbitrariedade de cada posição, especialmente nas grandes disputas que “afetam a nossa mundividência como um todo” (Smart 1963: 8). A controvérsia realista-instrumentalista é concebida por Smart como uma grande disputa conceitual sobre a interpretação das teorias científicas. De acordo com isso, o argumento da “coincidência cósmica” de Smart repousa em juízos primariamente intuitivos como o que é mais plausível e o que requer explicação. Defende que é intuitivamente mais plausível aceitar o realismo ao invés do instrumentalismo, pois o realismo deixa menos coisas inexplicadas e coincidentes do que o instrumentalismo. A sua força argumentativa, se tiver alguma, é que qualquer um que tenha uma mente aberta e bom senso poderia e acharia a conclusão do argumento intuitivamente plausível, persuasivo e racional para se aceitar — embora não seja logicamente atrativo: não porque se poderia reconhecer o argumento como uma instância de um esquema inferencial confiante, mas por causa das considerações sobre aquilo que é mais e aquilo que é menos plausível.

Um argumento análogo a favor do realismo foi oferecido por Maxwell (1962a). Tanto quanto sei, ele foi o primeiro a recorrer explicitamente ao sucesso das teorias científicas a fim de defender o realismo. O grande sucesso empírico da ciência, disse Maxwell, é um fato que exige explicação. A alegação instrumentalista de que as teorias são “caixas pretas” que quando alimentadas com premissas observacionais produzem conclusões observacionais verdadeiras não ofereceria qualquer explicação do fato dessas “caixas pretas” serem tão bem-sucedidas. À luz disso, ele afirma: “A única explicação razoável do sucesso das teorias da qual estou ciente é que as teorias bem confirmadas são conjunções de enunciados genuínos bem confirmados e que as entidades às quais elas se referem provavelmente existem” (1962a : 18). Como apontado algures, a diferença entre as abordagens da ciência realista e antirrealista é que

quando o nosso conhecimento teórico aumenta em escopo e poder, os rivais do realismo se tornam cada vez mais enrolados e ad hoc, e explicam menos do que o realismo. Por uma coisa, eles não explicam por que as teorias que sustentam são meros instrumentos cognitivamente sem significado tão bem-sucedidos, e como é que podem fazer previsões poderosas e bem-sucedidas. O realismo explica isso de modo bastante simples mostrando que as previsões são conseqüências das proposições verdadeiras (ou aproximadamente verdadeiras) que constituem as teorias. (Maxwell 1970: 12)

O argumento de Maxwell difere do de Smart num aspecto interessante. Inclui uma tentativa de fundamentar os juízos de plausibilidade que são exigidos para a defesa do realismo e mostrar que tais juízos não são, afinal, distintamente filosóficos. Num certo sentido, o argumento de Maxwell é a “ponte” entre o argumento a priori de Smart e a versão naturalista subseqüente de Putam-Boyd. Maxwell sugere que considerações de simplicidade, compreensão e falta de manobras ad hoc são virtudes que tornam mais plausíveis os juízos que as exibem do que os juízos que não as possuem. Além do mais, Maxwell (1970) dá uma guinada bayesiana em seu argumento a favor do realismo. Ele enfatiza que nas abordagens probabilísticas padrão da confirmação, caso duas ou mais hipóteses mutuamente inconsistentes acarretem os mesmos dados, o único modo pelo qual os dados podem ser usados para sustentar uma hipótese mais do que a(s) outra(s) é via algum tipo de plausibilidade inicial que avalie as hipóteses rivais. Essa avaliação é então refletida nas probabilidades iniciais atribuídas às hipóteses rivais. O seu argumento a favor do realismo capta precisamente esse fato já batido. Suponha, diz ele, que tanto o realismo (R) quanto o instrumentalismo (I) acarretam que as teorias científicas são bem-sucedidas (S). Assim, as probabilidades do realismo e do instrumentalismo são iguais a um, i.e.:

prob (R/S) = prob (S/I) = 1

Pelo teorema de Bayes, a probabilidade posterior do realismo é

prob (R/S) = prob (R)/prob (S)

e a probabilidade posterior do instrumentalismo é

prob (I/S) = prob (I)/prob (S)

onde prob (R) é a probabilidade inicial do realismo, prob (I) a probabilidade inicial do instrumentalismo, e prob (S) é a probabilidade dos “dados”, i.e. do sucesso da ciência.

Dado que a prob (S) é a mesma para o realismo e para o instrumentalismo, qualquer diferença no grau de confirmação de R e I refletiria numa diferença nas suas respectivas probabilidades iniciais. Baseado na idéia de que a explicação realista do sucesso da ciência é mais simples, mais compreensiva e menos ad hoc do que qualquer tentativa instrumentalista de tal explicação, Maxwell (1970: 17–18) argumenta que a probabilidade inicial do realismo deveria ser muito maior do que a probabilidade inicial do instrumentalismo: i.e. prob (R) ≫ prob (I). Portanto, a confirmação adicional do realismo é muito maior do que a do instrumentalismo.

Penso que o objetivo de Maxwell é duplo. Por um lado, assentar-se em probabilidades iniciais é uma rotina de todo juízo humano. É também claro na própria prática científica: nem todas as hipóteses que acarretam os mesmos dados são avaliadas como igualmente plausível pelos cientistas. De fato, as próprias virtudes da simplicidade, compreensão e falta de manobras ad hoc são usadas pelos cientistas para avaliar as hipóteses cientificas rivais. Por outro lado, os problemas filosóficos, como a disputa realista-instrumentalista, não são muito mais difíceis do que — nem qualitativamente diferentes — os problemas científicos comuns, em que nenhum dado pode distinguir entre duas hipóteses rivais. Portanto, eles exigem o mesmo tratamento que os problemas científicos comuns. Como Maxwell disse: “Minhas razões para aceitar o realismo são do mesmo tipo que aquelas para se aceitar qualquer teoria científica sobre as outras que também explicam os dados disponíveis” (ibid.).1

Isso tudo é muito apressado, o leigo poderia pensar. As probabilidades iniciais poderiam ser de fato indispensáveis no raciocínio ampliativo. Mas baseados em que, o leitor pode perguntar, dizemos que a probabilidade inicial do realismo é maior do que a do instrumentalismo (eliminativo)? Uma vez que a conclusão do argumento depende crucialmente da atribuição de probabilidades iniciais diferentes para o realismo e para o instrumentalismo, essa conclusão teria sido diferente se tivéssemos adotado uma determinação inicial que favorece o instrumentalismo sobre o realismo. Como, então, pode-se decidir sobre essa determinação? Em particular, essa determinação é supostamente objetiva ou subjetiva? Se for a primeira, então precisamos de algum argumento adicional do porquê o realismo ser objetivamente mais provável do que o instrumentalismo. Se for a última, o que os graus de crença, ou estimativas subjetivas de probabilidade inicial, têm a ver com a alegada superioridade do realismo?

Penso que o que é correto enfatizar é que quando se trata do debate realismo-instrumentalismo, uma atribuição de probabilidade inicial alta ao realismo pode ser racional — e, portanto, objetiva — nestes dois sentidos. Primeiro, os juízos de plausibilidade inicial podem ser assunto e resultado de deliberação racional. Por exemplo, uma via para se argumentar a favor da maior plausibilidade inicial do realismo é mostrar que o realismo deriva grande parte de sua plausibilidade de um juízo que subjaz à postulação de objetos matérias de tamanho médio. Contra o instrumentalismo eliminativo, os realistas estabelecem corretamente certa analogia — e continuidade — entre postular objetos materiais de tamanho médio para dar conta do curso regular e coerente da experiência sensível e postular inobserváveis para dar conta dos fenômenos observáveis. Se o senso comum foi a única coisa exigida para o primeiro, então tanto melhor para o último. Ao negar a existência das entidades inobserváveis, os instrumentalistas eliminativos têm de adotar “padrões existenciais dúbios”. Mas como vimos (pp. 18-22), não há bons argumentos para sustentar tais padrões dúbios.

Segundo, os juízos de plausibilidade inicial podem ser racionais e objetivos porque assentam em expectativas sólidas. Por que é inicialmente mais plausível interpretar as teorias científicas realisticamente? Porque numa interpretação instrumentalista — como meras “caixas pretas”, cálculos sintáticos e assim por diante — não há razão para esperar que essas teorias possam ser empiricamente bem-sucedidas. Na verdade, as “caixas pretas” e os similares são construídos de modo a sistematizar as regularidades observáveis conhecidas. Mas disso não se segue que as caixas pretas tenham a capacidade de prever regularidades ainda desconhecidas ou conexões ainda imprevistas entre regularidades conhecidas. E nem se pode esperar tal coisa sobre quaisquer bases racionais. No entanto, se a teoria for entendida realisticamente, então as novas previsões sobre os fenômenos não causam surpresa. Realisticamente entendidas, as teorias acarretam muitas afirmações novas, a maioria delas sobre inobserváveis (e.g. a de que há elétrons, que a luz desvia próximo a corpos de grande massa). Não vem a ser uma surpresa que alguns dos novos fatos teóricos que uma teoria prevê possam ser de tal modo que dêem origem a novos fenômenos observáveis, ou que possam revelar conexões ainda imprevistas entre fenômenos conhecíveis. Por exemplo, a identificação teórica de James Clerk Maxwell da luz com uma onda eletromagnética previu uma conexão até o momento desconhecida entre as leis da propagação da luz e a propagação das ondas elétricas. De qualquer modo, seria bastante surpreendente se os poderes causais das entidades postuladas pelas teorias científicas fossem esgotados na geração de fenômenos empíricos já conhecidos que conduziram à introdução da teoria. Portanto, num entendimento realista das teorias, as novas previsões e o sucesso empírico genuíno têm de ser esperados (dado que, certamente, o mundo coopera).

O mais importante é que juízos tais como os acima foram fortes o bastante para mitigar a força das abordagens instrumentalistas padrão. Como vimos no Capítulo 2, juízos de plausibilidade similares foram apresentados pelos “instrumentalistas clássicos” como Pierre Duhem e Henri Poincaré. Ambos argumentaram que o sucesso preditivo recente — uma característica que não foi desenvolvida suficientemente bem por Maxwell — está em dissonância com uma interpretação instrumentalista eliminativa das teorias científicas como “prateleiras cheias de ferramentas” (Duhem 1906: 334) ou como “simples receitas práticas” (Poincaré 1902: 174). Isso não é surpreendente: numa abordagem instrumentalista, o sucesso preditivo recente é, se for, uma característica acidental das teorias. O argumento de Maxwell toca precisamente nesse estado de coisas. Sugere que o realismo científico é a única alternativa que supera o problema que torna o instrumentalismo implausível — o quão as novas previsões empíricas são possíveis. Penso que o que isso acrescenta a essa sugestão é o seguinte. Uma vez que as teorias sejam tratadas como o realismo semântico sugere, o sucesso empírico recente pode resultar apenas da confirmação da teoria: quanto mais improvável a previsão, maior a confirmação adicional da teoria que a torna disponível.

Não há razão para se duvidar de que os argumentos de Smart e de Maxwell minam drasticamente a justificação do instrumentalismo eliminativo. Mas são ineficazes contra posições empiristas sofisticadas à la van Fraassen (1980; 1989). Durante muito tempo, o instrumentalismo eliminativo foi a alternativa dominante ao entendimento realista das teorias científicas. Smart e Maxwell (e, nesse caso, também Feigl) pretenderam matar dois coelhos com uma cajadada só. O ponto central deles foi que o sucesso das teorias científicas merece crédito por duas teses:

  1. Que as teorias científicas deveriam ser interpretadas realisticamente; e
  2. Que, assim interpretadas, essas teorias são bem confirmadas pois acarretam previsões bem confirmadas.

Assim, o argumento deles opera sobre a suposição de que um argumento a favor da interpretação realista das teorias científicas pode ser, ipso facto, um argumento para se acreditar na existência das entidades que elas postulam. Dado o que já foi dito nos Capítulos 1 e 2 sobre o destino do empirismo redutivo e do instrumentalismo eliminativo, essa é uma suposição razoável. Uma vez aceito que as teorias devam ser interpretadas realisticamente, a única questão remanescente é saber se essas teorias são bem confirmadas. Se o mesmo argumento pode estabelecer ambas as coisas, então tanto melhor para o realismo.

No entanto, a posição empirista defendida por van Fraassen aceita uma interpretação realista da semântica das teorias científicas, mas desafia a racionalidade da crença nas entidades inobserváveis cuja existência é implicada pelas teorias caso sejam verdadeiras. Assim, num certo sentido, a posição de van Fraassen parte precisamente de onde os argumentos de Smart e Maxwell param: que as abordagens eliminativa e redutiva do comprometimento teórico na ciência estão erradas e desacreditadas. Como veremos em detalhe no Capítulo 9, um ponto central contra o realismo científico é que o raciocínio abdutivo-explicativo, por meio do qual as crenças teóricas são formadas, não podem ser vistos como vero-condutores e, portanto, que a crença na verdade aproximada das teorias particulares não é racionalmente obrigatória. Em outras palavras, ele questiona a fiabilidade dos métodos que os cientistas empregam para alcançar as suas crenças teóricas. No ponto de vista de van Fraassen, o colapso do instrumentalismo eliminativo não torna o realismo a única opção racional. Uma variedade agnóstica de empirismo não é, ipso facto, excluída. Pode-se sempre permanecer agnóstico quanto ao valor de verdade das descrições teóricas particulares do mundo oferecidas por uma teoria.

A defesa explicacionista do realismo

A “defesa explicacionista do realismo” de Boyd (doravante DER) é um programa para o desenvolvimento e defesa de uma epistemologia realista da ciência. Boyd sugere que essa epistemologia deveria ser completamente naturalista. Por um lado, deveria repousar na alegação de que é um fato radicalmente contingente sobre o mundo que as teorias científicas sejam capazes de produzir e produzam verdades teóricas. Por outro lado, em sua tentativa de investigar as credenciais epistêmicas da ciência, e em particular responder a questão do porquê a metodologia científica ser instrumentalmente fiável, uma epistemologia realista da ciência não deveria empregar quaisquer métodos além daqueles usados pelos próprios cientistas. A defesa de Boyd do realismo é explicacionista porque é baseada na afirmação de que a tese realista de que as teorias científicas são aproximadamente verdadeiras é a melhor explicação de seu sucesso empírico. O naturalismo de Boyd torna o seu uso do AM distintivamente diferente do de Smart e (um pouco menos) do de Maxwell: não há um método filosófico distinto que seja ou anterior ao método científico ou que possa ser usado para resolver disputas científicas de primeira ordem. Nesta seção foco-me no papel do argumento do “milagre” na DER.

Boyd2 mostrou que a melhor explicação do sucesso instrumental e preditivo das teorias científicas maduras é que essas teorias são aproximadamente verdadeiras, pelo menos nos aspectos relevantes ao seu sucesso instrumental. Irei reconstruir o principal argumento como se segue:

Que os métodos pelos quais os cientistas derivam e testam as previsões teóricas são teoricamente subordinadas é indisputável. Os cientistas usam teorias de fundo aceitas a fim de formar as suas expectativas, para escolher os métodos relevantes para testar as teorias, para planejar os experimentos, para calibrar instrumentos, para acessar os indícios experimentais, escolher entre hipóteses rivais, para acessar novas hipóteses sugeridas, etc. Todos os aspectos da metodologia científica são profundamente teoricamente informados e subordinados. Em essência, a metodologia científica é quase que linearmente dependente das teorias de fundo aceitas: são essas teorias que fazem os cientistas adotarem, avançarem ou modificarem os seus métodos de interação com o mundo e com os procedimentos que usam a fim de medir e testar as teorias. Esses métodos teoricamente subordinados conduzem a previsões corretas e ao sucesso empírico.

Como explicamos isso?

A melhor explicação da fiabilidade instrumental da metodologia científica é que: os enunciados teóricos que declaram que as conexões causais ou mecanismos em virtude dos quais os métodos científicos produzem previsões bem-sucedidas são aproximadamente verdadeiros.

O AM é um argumento que visa defender a fiabilidade da metodologia científica em produzir teorias e hipóteses aproximadamente verdadeiras. Sua força, no entanto, repousa num tipo mais concreto de raciocínio explicativo que ocorre a todo momento na ciência. Pode ser posto como se segue. Suponha que uma teoria de fundo T afirme que o método M é fiável para a geração do efeito X em virtude do fato de que M emprega os processos causais C1, ..., Cn que, de acordo com T, produz X. Suponha também que sigamos T e as outras teorias auxiliares estabelecidas para proteger os resultados experimentais dos fatores que, se presentes, interfeririam com alguns ou todos os processos causais C1, ..., Cn, por meio dos quais impediriam a ocorrência do efeito X. Suponha finalmente que alguém segue M e X é obtido. O que mais pode ser melhor para explicar o fato de que o efeito X esperado (ou previsto) foi produzido, além da teoria T — que afirmou as conexões causais entre C1, ..., Cn e X — ter essas conexões causais corretas, ou aproximadamente corretas? Se esse raciocínio a favor da melhor explicação for cogente, então é razoável aceitar T como aproximadamente verdadeira, pelo menos nos aspectos relevantes à previsão de X. Para ser mais preciso, é necessário algo mais para a aceitação de T como aproximadamente verdadeira num sentido relevante. Por exemplo, T tem de ser contrastada com as hipóteses alternativas disponíveis, e deveria emergir com a melhor explicação. T deveria oferecer uma explicação “boa o bastante” por si própria, e.g. uma explicação que pode adequadamente dar conta de todas as características salientes dos fatos experimentais.3 Mas tais considerações são uma parte dessas aplicações mais concretas do raciocínio explicativo na ciência. E embora não possamos sempre estar em posição de escolher uma hipótese como claramente a melhor explicação, isso não acarreta que nunca estaremos.

A relação entre esse tipo mais concreto de raciocínio explicativo na ciência e o AM deveria ser claro: as instâncias bem-sucedidas de tal raciocínio fornecem as bases (e a justificação inicial) para esse argumento abdutivo mais geral. No entanto, o AM não é apenas uma generalização sobre as inferências abdutivas dos cientistas. Embora seja uma instância do método que os cientistas empregam, o AM tenciona um alvo mais amplo: defender a tese de que a Inferência a favor da Melhor Explicação, ou abdução (isto é, um tipo de método inferencial), é fiável. As instâncias (de primeira ordem) do raciocínio explicativo envolvem a afirmação de que é razoável aceitar que as teorias particulares são aproximadamente verdadeiras num sentido relevante. O AM baseia-se, então, nessas instâncias para defender uma afirmação mais geral de que a ciência pode alcançar a verdade teórica. O AM é um tipo de meta-abdução. O explanandum do AM é uma característica geral da metodologia científica — a sua fiabilidade para gerar previsões corretas. O AM afirma que a melhor explicação do porquê a metodologia científica ter a característica contingente de gerar previsões corretas é que as teorias que são implicadas em sua metodologia são aproximadamente verdadeiras num sentido relevante.

Assim, o que faz do AM um argumento distintivo a favor do realismo é que ele defende o alcance da verdade teórica. Mas como exatamente esse argumento defende a IME e, portanto, como exatamente o AM se torna pivô de uma epistemologia realista da ciência? Como tenho notado, ele sugere que a melhor explicação da fiabilidade instrumental da metodologia científica é que as teorias de fundo são aproximadamente verdadeiras num sentido relevante. Essas teorias científicas de fundo foram tipicamente alcançadas pelo raciocínio abdutivo. Portanto, é razoável acreditar que o raciocínio abdutivo é fiável: ele tende a gerar teorias aproximadamente verdadeiras. Essa conclusão não pretende ser uma verdade a priori. A fiabilidade do raciocínio abdutivo é uma afirmação empírica, e se verdadeira seria contingente.

Tendo dito isso, deixe-me enfatizar que o AM deveria ser qualificado apropriadamente. Há indícios históricos suficientes para persuadir qualquer realista bona fide, primeiro, que as teorias científicas encontraram muitas falhas tanto quanto sucessos e, segundo, que algumas teorias do passado que foram empiricamente bem-sucedidas e aceitas como “melhores explicações” dos dados foram subseqüentemente abandonadas como inadequadas e falsas. À luz disso, o argumento realista deveria ser qualificado em dois aspectos:

  1. O argumento realista deveria reconhecer a existência de falhas. A sua efetividade não prejudica a metodologia científica. E nem rompe a conexão explicativa entre a verdade aproximada e o sucesso empírico, especialmente o sucesso empírico recente. Claramente, o fato de ocasionalmente eu não ter encontrado as minhas chaves não acarreta que uma procura completa nos lugares onde elas poderiam ter sido deixadas não é um método fiável para encontrar as chaves. De qualquer modo, os realistas deveriam se concentrar nos sucessos particulares — e há muito mais desses — e argumentar que são esses sucessos que precisam de explicação. Afinal, é uma característica saliente da metodologia científica que ela conduz ao sucesso empírico. As coisas poderiam ter sido diferentes e as teorias científicas poderiam ter sido um fracasso total. Por isso, perguntar como é de todo possível que as teorias científicas produzam previsões corretas, especialmente novas, e oferecer explicações dessa característica contingente da metodologia científica é essencial para o entendimento da ciência. (A noção de previsões novas, a qual os realistas deveriam recorrer, é analisada no Capítulo 5.)
  2. O argumento realista deveria se tornar mais local em escopo. De acordo com isso, o principal ponto realista deveria ser o seguinte: embora a maioria dos realistas reconhecesse que há uma conexão explicativa entre o sucesso empírico de uma teoria e ela ser, em alguns aspectos, correta sobre o mundo inobservável, seria demasiado otimista — se for de todo defensável — afirmar que tudo o que a teoria diz sobre o mundo é assim justificado.

Portanto, os realistas deveriam refinar a conexão explicativa entre o sucesso empírico e preditivo, por um lado, e a verossimilhança, por outro. Eles deveriam dizer que esses sucessos são mais bem explicados pelo fato de as teorias que desfrutam disso terem constituintes teóricos verossímeis (i.e. descrições verossímeis dos mecanismos causais, entidades e leis). Os constituintes teóricos cuja verossimilhança pode explicar melhor os sucessos empíricos são precisamente aqueles que estão essencialmente e ineliminavelmente envolvidos na geração de previsões e na delineação da metodologia que produz essas previsões. Do fato de que nem todo constituinte teórico de uma teoria bem-sucedida mereça ou devesse merecer crédito pelo sucesso da teoria certamente não se segue que nenhum mereça (ou não devesse merecer) algum crédito. Se, além disso, mostra-se que, longe de serem abandonados, os constituintes teóricos das teorias do passado que contribuíram essencialmente para o sucesso delas fosse mantido nas teorias subseqüentes de mesmo domínio, então o argumento realista seria tão forte quanto possível. No Capítulo 5, esse ponto é explicado em detalhe, uma vez que o argumento agora mencionado capta aproximadamente o meio pelo qual tento bloquear o argumento da “indução pessimista”.

Daqui para frente assumo que as considerações acima constituem a interpretação pretendida do AM. A DER causou uma discussão calorosa entre os filósofos da ciência (cf. Laudan 1984; McMullin 1987 e 1991; Musgrave 1988; Newton-Smith 1987; Lipton 1991). Com já notado, a principal linha de crítica é que a DER é viciosamente circular. Uma vez que ela emprega a IME, os críticos sugerem que pressupõe aquilo que precisa ser estabelecido — que a IME é um método inferencial fiável. Arthur Fine (1986; 1986a; 1991) resumiu e defendeu essa linha de maneira forte. Ele aponta que o realista “não está livre para admitir a validade de um princípio cuja validade está em debate” (1986a: 161). Como ele disse algures, uma defesa do realismo baseada na IME carece de qualquer força argumentativa, uma vez que emprega “o mesmo tipo de argumento cuja cogência é a questão em discussão” (1991: 82). Fine conclui que “não há, em geral, uma defesa racional do realismo” (1986a: 163). Mas Fine também avança mais duas objeções. Suponhamos para fins do argumento, diz ele, que a abdução é fiável. Não seria sábio por parte dos realistas usar um argumento abdutivo na defesa do realismo, uma vez que eles precisam de mais métodos de prova convincentes de suas doutrinas filosóficas (cf. Fine 1986: 114). De qualquer forma, nota ele, há melhores explicações instrumentalistas do sucesso da ciência (Fine 1986a: 154).

No que se segue, exploro algumas vias novas e sistemáticas nas quais os realistas podem tentar bloquear as objeções precedentes.

DER e circularidade

Dizer que um argumento é viciosamente circular é dirigir um ataque epistêmico que indica que o argumento em questão não pode ser, e talvez nunca seja, persuasivo, uma vez que de algum modo presume, ou postula, aquilo que precisa ser estabelecido independentemente. Um argumento tipicamente circular é um argumento em que a conclusão ou é idêntica ou uma mera paráfrase de uma de suas premissas. Note, no entanto, que o mero fato de uma premissa ser idêntica à conclusão não é uma razão suficiente para a acusação de circularidade viciosa. Para mostrar que um argumento é viciosamente circular não se deveria olhar apenas para as frases empregadas no argumento, mas também levar em consideração o que o argumento pretende mostrar com o uso das frases específicas. Assim, por exemplo, se olharmos apenas para a sua estrutura sentencial, o argumento tipo “a & b, logo b & a” é circular. Mas não é viciosamente circular, penso, uma vez que visa mostrar apenas a comutatividade da conjunção lógica. Similarmente, o argumento tipo “p, logo p” não deveria ser considerado viciosamente circular se pretender mostrar que toda frase é uma conseqüência lógica de si mesma. Mas seria viciosamente circular se pretendesse mostrar que p é verdadeira. Pois pretenderia provar que p é verdadeira quando já aceita que p é verdadeira.

O que é necessário para um argumento ser corretamente julgado como viciosamente circular é que ele pretendesse oferecer razões para se aceitar uma dada frase (a conclusão), em que (uma das) razões citadas é a própria conclusão. Seguindo Braithwaite (1953), pode-se chamar os argumentos viciosamente circulares de “circulares em premissa”. Nesse último, pretende-se oferecer um argumento a favor da verdade de α, mas pressupõe-se explicitamente α numa de suas premissas. Tal argumento não tem força probatória para aqueles que já não aceitam que α é verdadeiro.4

Em sua tentativa de defender uma justificação da aprendizagem indutiva a partir da experiência, Braithwaite (1953: 274-278) também notou que há um tipo de argumento circular que não é circular em premissas. Superficialmente, o argumento é tão não-circular quanto se pode ser. Começa com premissas P1,..., Pn e, então, emprega uma regra de inferência R, e tira certa conclusão Q. No entanto, Q tem certa propriedade lógica: vindica ou pressupõe algo sobre a regra de inferência R usada no argumento, em particular que R é fiável. Braithwaite chamou esse argumento tipo de “circular em regra”. Em geral, os argumentos circulares em regra são de tal modo que o próprio argumento é uma instância de, ou envolve essencialmente a aplicação da regra de inferência vindicada pela conclusão.

Braithwaite considera que a circularidade de regra não é viciosa. Penso que isso é correto. Há poucas diferenças relevantes entre a circularidade de premissa e a circularidade de regra. A conclusão de um argumento circular não é uma das premissas. E tampouco é o argumento de tal modo que uma das razões oferecidas a favor da verdade da conclusão é a própria conclusão. Assim, para dizer o mínimo, os argumentos circulares em regra não são obviamente viciosamente circulares. O caso dos argumentos circulares em regra foram defendidos, em conexão com a indução, por Braithwaite (1953), van Cleve (1984) e Papineau (1993). Deixando de lado as primeiras aparências, há uma última suspeita de que os argumentos circulares em regra sejam viciosos. Antes de tentar afastar essa dúvida, quero mostra que o AM, se for, é um argumento circular em regra.

Como vimos na última seção, as premissas do AM comportam a subordinação teórica da metodologia científica e o seu sucesso instrumental e preditivo amplamente aceitos. Desse modo, via meta-IME, o argumento conclui que as teorias de fundo são aproximadamente verdadeiras. Uma vez que essas teorias de fundo foram obtidas tipicamente por IMEs de primeira ordem, essa informação conjuntamente com a conclusão da meta-IME acarreta que a IME é fiável. Assim, a verdade da conclusão do AM é (parte) de uma condição suficiente para se aceitar que a meta-IME é fiável. O AM claramente não é circular em premissa. A conclusão da meta-IME (que as teorias são aproximadamente verdadeiras) não está entre as premissas do argumento. De fato, nenhuma suposição sobre a verdade aproximada das teorias é feita nas premissas, nem explicita nem implicitamente. Além disso, não há garantia a priori, como claramente haveria caso o argumento fosse circular em premissa, de que necessariamente a conclusão do AM será a de que as teorias são (aproximadamente) verdadeiras. A conclusão, caso seja verdadeira, o é com base no fato de ser a melhor explicação das premissas, embora pudesse não ter sido a melhor explicação. Como veremos, esse ponto é implicitamente concedido pelos críticos do AM, uma vez que eles se esforçam para argumentar que há melhores explicações do sucesso da ciência. Ao argumentar que a conclusão do AM não precisa ser a conclusão realista, eles reconhecem implicitamente que o AM não é circular em premissa.

Examinemos em alguns detalhes se a circularidade de regra é, contudo, viciosa. Como poderia ser? A idéia aqui poderia ser a de que num argumento circular em regra a fiabilidade da regra invocada no argumento é presumida. Mas se essa suposição for baseada na aceitação inicial da conclusão do argumento circular em regra, então os proponentes de um argumento circular em regra aparentemente incorrem num círculo vicioso. Pois eles teriam de provar a conclusão antes de aceitarem a regra usada para derivá-la. Mas não poderiam provar a conclusão a menos que aceitassem primeiro a fiabilidade da regra.

Pretendo responder a essa objeção negando que quaisquer suposições sobre a fiabilidade de uma regra estejam presentes, explicita ou implicitamente, quando uma instância dessa regra é usada. E nem a fiabilidade da regra deveria ser estabelecida antes que se possa usá-la de maneira justificável. Isso é controverso. Mas estou em boa companhia aqui. Os externistas em epistemologia têm argumentado extensamente a favor disso (Goldman, 1986). O ponto é o seguinte. Quando uma instância de uma regra é oferecida como uma conexão entre um conjunto de premissas (verdadeiras) e uma conclusão, aquilo que importa para a força da conclusão é se a regra é ou não fiável, isto é, se as suposições contingentes exigidas para a fiabilidade da regra são ou não de fato adequadas. Se a regra de inferência é fiável (sendo isso uma propriedade objetiva da regra), então, dadas premissas verdadeiras, a conclusão será também verdadeira (ou melhor, provavelmente verdadeira — caso a regra seja ampliativa).5 Quaisquer suposições que precisem ser feitas sobre a fiabilidade da regra de inferência, sejam elas implícitas ou explícitas, não importam para a força da conclusão. Portanto a defesa delas não é necessária para a força da conclusão.

Para realçar o ponto em questão, pensemos na seguinte situação. Suponha que, analogamente ao teste de Turing, deparamo-nos com uma “máquina de inferência” e começamos a jogar com ela. Alimentamo-la com vários conjuntos de premissas verdadeiras e esperamos tirar conclusões delas. Suponha também que em todos (ou em grande parte) dos casos a “máquina de inferência” é (ou provavelmente é) fiável. Para dizer o mínimo, concluiríamos que a “máquina de inferência” tem de operar de acordo com algumas regras de inferência de tal modo que, quando as premissas forem oferecidas, ela ative uma regra e tire uma conclusão. Mas qua máquina, a “máquina de inferência” não faz suposições sobre as regras que ativa. Ela apenas as ativa. E, dado o sucesso da “máquina de inferência” em tirar conclusões, podemos protestar que deveríamos primeiro identificar as regras que ela ativa, provar que são fiáveis, e apenas depois aceitar que a “máquina de inferência” é fiável? Penso que isso seria irrazoável e, em todo caso, contraproducente. Se a “máquina de inferência” começasse produzindo conclusões consistentemente falsas, teríamos razões para começar a nos preocupar. Mas na falta delas, preocupar-se seria desnecessário.6

Seguindo o exemplo anterior, poder-se-ia objetar que a questão é mais complicada se pensarmos, como deveríamos, nas pessoas que raciocinam como “máquinas conscientes de inferência”. Pois, poderia notar o objetor, a defesa da fiabilidade da regra de inferência importa para a justificação de que um agente poderia ter para tomara conclusão como verdadeira (ou provavelmente verdadeira). É sobre esse ponto que de fato a alegada natureza viciosa da circularidade se volta. Pois saber se a prova da fiabilidade é exigida ou não para a justificação dependerá muito provavelmente da perspectiva epistemológica que se adota. Como é bem sabido, as abordagens externistas rompem a conexão entre estar justificado em usar uma regra fiável de inferência e saber, ou ter razões para acreditar, que essa regra é fiável. Nessas abordagens, se a regra é fiável, então confere justificação a uma conclusão tirada através dessa regra na medida em que as premissas são verdadeiras. Assim, dado o externismo, tudo o que é exigido de um argumento circular em regra é que a regra de inferência empregada seja fiável; nada mais, nada menos, do que qualquer argumento comum (de primeira ordem). Um argumento circular em regra não seria mais vicioso do que qualquer outra aplicação de primeira ordem da regra nele envolvida. Uma vez que as aplicações de primeira ordem não são viciosas, as aplicações de segunda ordem envolvidas no argumento circular em regra também não são. O que é especial nos argumentos circulares em regra é aquilo que diz a conclusão. Ela assume que a regra de inferência é fiável. Mas a verdade dessa conclusão depende da regra ser fiável, e não de se ter quaisquer razões para se pensar que a regra seja fiável. Nada além da conclusão de um argumento ampliativo de primeira ordem, a conclusão de que um argumento circular em regra produzirá uma crença, interessa à regra de inferência em si mesma. Mas, se mantemos o externismo, o que importa é a verdade dessa crença e a fiabilidade (objetiva) da regra que a gerou. A justificação não requer mais do que a fiabilidade e a verdade.

As abordagens internistas da justificação sugerem que a justificação requer algo mais além do fato, se for um fato, da regra ser fiável, viz. saber (ou acreditar justificadamente) que a regra de inferência envolvida é fiável. Desse modo, se se aceita uma abordagem internista, então uma justificação separada da fiabilidade da regra seria requerida para a justificação completa que o agente teria de ter para considerar uma crença produzida pela regra como verdadeira. Entendendo-se assim a justificação, os argumentos circulares em regra poderiam parecer circulares. Pois parece que é necessário acreditar na conclusão de um argumento circular em regra para usar justificadamente a regra nele envolvida em primeiro lugar. Assim, os internistas estariam provavelmente exigindo uma justificação independente da regra — isto é, uma justificação do tipo que um argumento circular em regra talvez não possa oferecer.

Portanto, a questão de saber se os argumentos circulares em regra são viciosos repousa na teoria da justificação que se adota. Os realistas teriam de ser externistas se aceitam o AM seriamente. E os seus críticos teriam de argumentar a favor do internismo caso mantenham o ataque de circularidade viciosa. Duma perspectiva externista, o AM não tem de presumir coisa alguma sobre a fiabilidade da IME. Consequentemente, não tem de presumir qualquer coisa sobre a fiabilidade da IME que os outros neguem (em particular, os críticos do realismo). Na verdade, os proponentes do AM têm de aceitar uma teoria externista da justificação que alguns críticos do realismo poderiam negar. Mas essa é uma questão diferente. Essa batalha pode ser travada sobre bases epistemológicas gerais que nada têm a ver com a questão da circularidade.

O ponto mencionado pode suscitar objeções adicionais. Uma delas poderia ser a de que, ainda que garantíssemos o externismo, o AM não repousa na suposição de que a IME é fiável. Pois, se o AM não pressupor ou presumir tal coisa, por que dever-se-ia empregar uma IME na defesa do realismo? Por que não repousar em algum outro tipo de inferência? E se o AM repousa nessa suposição, não precisariam os realistas de defendê-la de uma maneira diferente? Outra objeção poderia ser a de que, caso o externismo seja aceito, por que os realistas se preocupam em oferecer o AM em primeiro lugar? Ao oferecer esse argumento, eles não estariam a presumir que precisamos de razões para acreditar na fiabilidade da IME? Isto é, eles não estariam a garantir aquilo que os internistas estiveram a defender o tempo todo? Consideremos essas objeções no que se segue. Oferecer uma resposta à primeira é tarefa simples, mas a segunda não será oferecida sem algum esforço.

Por que o AM deveria repousar numa IME em sua defesa do realismo? Isso não implica que ele já presume que a IME se fiável? Penso que não. Se alguém soubesse que uma regra de inferência não fosse fiável, seria tolo usá-la. Isso não implica que se deva ser capaz de provar que essa regra é fiável antes de usá-la. Tudo o que se requer é que não haja razões para se duvidar da fiabilidade da regra — que não haja qualquer coisa atualmente disponível que possa fazer com que se suspeite da regra. Os defensores do AM estão “cientes” de algo: não usaríamos a IME se tivéssemos razões para considerá-la infiável. Mas não temos tais razões. Não há qualquer vício em se admitir tudo isso. Se alguém negasse que a abddução é fiável, teria de oferecer algumas razões do porquê isso é assim. Esse debate pode prosseguir independentemente do problema da circularidade. Ele dependerá dos argumentos que visam mostrar que não se deveria confiar na IME. (Tais argumentos serão tratados no Capítulo 9). Mas uma analogia, que se deve a Frank Ramsey (1926 [1987: 100]), tornará claro o ponto. É apenas via memória que podemos examinar a fiabilidade da memória. Mesmo que estivéssemos fazendo experimentos para examinar isso, ainda assim dependeríamos da memória: teríamos de nos lembrar dos resultados dos experimentos. Mas não há qualquer coisa de vicioso em usar a memória para determinar e aumentar o grau de exatidão da memória. Pois não há razão para se duvidar de sua fiabilidade em geral.

Foquemo-nos agora na segunda objeção: ao oferecer o AM, não estão os realistas implicitamente a oferecer razões para se acreditar na fiabilidade da IME? E, se assim for, não deveriam ser razões independentes? Tenho dois argumentos contra essa objeção.

  1. A objeção compreende mal aquilo que o AM pretende fazer. O AM não torna a IME fiável. Nem adiciona qualquer coisa à sua fiabilidade, caso seja fiável. Apenas gera uma nova crença sobre a fiabilidade da IME que está justificada apenas no caso da IME ser fiável.
  2. Mas suponha que aceitamos que o AM visa defender a fiabilidade da IME. Isso certamente não é excluído pelo externismo. É apenas opcional. O mero fato de a defesa depender de um argumento circular em regra a tornaria viciosa — e, portanto, carente de força racional? Penso que não. Se a circularidade de regra de uma defesa for tomada como um vício completo, então teríamos simplesmente de abandonar qualquer tentativa de explicar ou defender quaisquer de nossas práticas inferenciais básicas. Isso implica que mesmo as defesas internistas terão, em última instância, de repousar em argumentos circulares em regra. Quando defendemos os nossos modos básicos de raciocínio, tanto ampliativos quanto dedutivos, parece que, ou não temos defesa razoável para oferecer ou que a defesa pretendida será circular em regra.

Esse dilema já aparece no caso da inferência dedutiva. Remonta a Lewis Carroll e o seu What the Tortoise Said to Achilles em que não se pode provar a validade do modus ponens a menos que se empregue, em última instância, o modus ponens. Precisamos do modus ponens (e de outras regras dedutivas) porque precisamos de regras de inferência que preservem a verdade — regras tais que, quando as premissas de um argumento são verdadeiras, a conclusão também o é. Mas podemos provar que o modus pones preserva a verdade? O melhor que podemos fazer é provar um meta-teorema em que o modus ponens preserve a verdade na linguagem objeto. Essa meta-prova, no entanto, requer que a meta-linguagem já contenha o modus ponens (ou outras regras dedutivas) como uma regra. Intuitivamente, a idéia é que qualquer tipo de prova (mesmo a prova de que o modus ponens preserva a verdade) requer alguma regra de inferência para funcionar. No caso do modus ponens, a regra requerida tem também de preservar a verdade. Mas não precisamos de uma prova que essa regra preserva a verdade? E assim por diante. Uma resposta típica, apresentada vividamente por Salmon (1965: 54), é que deveríamos confiar no modus ponens porque não temos qualquer razão para duvidar de que ele preserve a verdade: podemos “refletir” sobre as instâncias do modus ponens e constatar a inconcebibilidade da situação em que todas as suas premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. É discutível se isso é exatamente correto. Van McGee (1985) e Willian Lycan (1994), por exemplo, sugeriram que há contra-exemplos ao modus ponens. Isto é, há instâncias de argumentos que instanciam o modus ponens, e têm, contudo, premissas verdadeiras e uma conclusão falsa.7 Não pretendo aqui entrar nesse interessante debate, mas a resposta típica a esses contra-exemplos mostra que a defesa da validade do modus ponens está longe de ser um exercício trivial (livre de pressupostos). A resposta típica a esses contra-exemplos, discutida por Kornblith (1994), é que se já definimos o modus ponens usando o significado padrão do conectivo lógico para as afirmações condicionais da forma “p q”, (em que a condicional é verdadeira ou quando a antecedente é falsa ou a conseqüente verdadeira), então não há espaço para contra-exemplos: qualquer contra-exemplo pretendido é rejeitado pela razão de que não seria formalizado como uma instância pretendida do esquema {p; pq; logo q}. A questão aqui não é saber se essa rejeição está correta (Lycan 1994a, por exemplo, duvida que esteja). Antes, a questão é que nenhuma justificação do modus ponens é possível sem que assente em algumas pressuposições. Tudo o que podemos fazer é nos dedicarmos a um processo de explicação e defesa. Ao refletir sobre o modus ponens (e outras regras dedutivas que usamos), visamos sistematizá-lo, explicar a nós mesmos as maneiras que deveríamos usá-lo, e mostrar quem dado o significado dos conectivos lógicos e das tabelas de verdade, ele cumpre a sua tarefa — preserva a verdade.8

Uma situação similar, e até mais complicada, surge no que diz respeito ao raciocínio indutivo. As regras indutivas não preservam a verdade. No entanto, é errado aplicar padrões dedutivos ao raciocínio indutivo. Enquanto que a dedução diz respeito à preservação da verdade, a indução diz respeito à aprendizagem a partir da experiência. O fato de a indução não ser dedução nada mostra além de que cada um deveria ser tratado como modos distintos de raciocínio. Mas como a própria possibilidade de se aprender a partir da experiência pode ser defendida, a não ser por um argumento circular em regra? O trabalho de Carnap pode nos ajudar a tratar desse problema de modo sistemático. O maior problema de Carnap era estabelecer que tipos de argumento indutivo em seu sistema de lógica indutiva são válidos, no sentido de que permitem conclusões com alto grau de probabilidade indutiva (ou grau de confirmação). Em particular, ele queria descobrir quais dentre várias regras ampliativas (a regra direta, a regra de Laplace, c*, c, etc.) podem melhor representar a aprendizagem indutiva a partir da experiência. Mas sabemos que não se pode defender a validade dos argumentos indutivos sem usar alguma forma de raciocínio indutivo. Refletindo sobre essa questão, Carnap (1968: 265-267) sugeriu que a circularidade envolvida numa tentativa de defender a raciocínio indutivo e indispensável e inofensivo. Eis a reconstrução de seu argumento.

Ou os agentes são indutivamente cegos — em que “indutivamente cego” se refere àqueles que não fazem inferências indutivas e que não estão dispostos a fazê-las — ou não são. Se os agentes são indutivamente cegos, então talvez não possamos mostrá-los quando um argumento é indutivamente válido e quando não é. Pois, aprender a discriminar entre esses dois casos e, portanto, aprender a reconhecer argumentos indutivamente válidos e descartar os inválidos, requer uma “intuição indutiva”. Essa intuição não deveria ser confundida com a idéia cartesiana de uma fonte infalível de conhecimento. Antes, deveria ser vista como algum tipo de disposição para usar o raciocínio indutivo e reconhecer de maneira falível que um argumento é indutivamente válido. Se houvesse tais pessoas (azaradas) indutivamente cegas, elas seriam indutivamente cegas precisamente porque careceriam dessa disposição para aprender a partir da experiência. Quando tentamos persuadi-las de por que aprender com a experiência é razoável, podemos apenas nos valer de algum argumento indutivo — temos de nos valer do sucesso passado do raciocínio indutivo. O que estamos fazendo é indispensável, pois nenhum outro argumento poderia mostrá-los que a aprendizagem a partir da experiência é razoável. Estar comprometido com um raciocínio circular em regra, contudo, é também inofensivo, pois, sendo cegos indutivamente, nada poderia persuadir os nossos interlocutores a raciocinar indutivamente. Se, por outro lado, os agentes não são indutivamente cegos — se já operarem num contexto de disposições para aprender a partir da experiência — é tanto indispensável como inofensivo usar o raciocínio circular em regra na tentativa de explicar-lhes as circunstâncias sob as quais um argumento indutivo é ou não válido. É indispensável porque nenhum argumento não-indutivo está disponível, e é inofensivo porque, nesse caso, é uma instância de um procedimento auto-esclarecedor.

Portanto, em qualquer caso, em nossa tentativa de defender a aprendizagem a partir da experiência, estar comprometido com um raciocínio circular em regra é tanto indispensável como inofensivo. A situação é totalmente análoga à defesa do raciocínio dedutivo. Não há modo em que se possa persuadir uma pessoa dedutivamente cega da validade ou racionalidade dos argumentos dedutivos. No entanto, todos aqueles que operam numa rede de intuições dedutivas — e.g. aqueles que incorporam o significado dos conectivos lógicos, etc. — podem discriminar entre argumentos válidos e inválidos.

O argumento de Carnap sugere uma perspectiva completamente nova sobre a questão do que exatamente fazemos quando oferecemos argumentos em defesa das nossas práticas inferenciais básicas. Num sentido, nenhuma regra inferencial traz consigo uma compulsão racional a menos que repouse num contexto de intuições e disposições que tomem por garantido as pressuposições dessa regra (a preservação da verdade no caso do raciocínio dedutivo, o aprendizado a partir da experiência no caso do raciocínio indutivo, e a procura por explicações no caso do raciocínio abdutivo). Quando tentamos justificar ou defender certas regras de inferência (e.g. certas regras dedutivas, indutivas ou abdutivas), não é porque queremos ou justificá-las sem quaisquer suposições, ou provar que não são racionalmente obrigatórias para qualquer ser senciente. É porque queremos avaliar as nossas práticas inferenciais existentes: refletir sobre as regras que usamos ou nos predispomos a usar acriticamente, e examinar o alcance no qual e em virtude do qual essas regras são fiáveis. Tais avaliações não podem ser feitas de um ponto de partida epistemologicamente neutro. Têm também de empregar alguns métodos. Em última análise, temos apenas de confiar em alguns métodos básicos de investigação. O fato de recorrermos a argumentos circulares em regra para defendê-los, se for necessário uma defesa, é tanto inescapável quanto inofensivo.9

Por igualdade de raciocínio, caso se esteja disposto a raciocinar abdutivamente, não haveria qualquer problema especial com o uso do AM na defesa da fiabilidade da IME. O AM não é pior do que as tentativas de defesa do modus ponens e das regras indutivas. Na verdade, a classe dos agentes que usam o raciocínio abdutivo é mais ampla do que a classe dor epistemólogos realistas que refletem sobre a fiabilidade da IME e a defendem oferecendo o AM. Essa classe certamente incluirá em sua maioria não-realistas — aqueles que não tomam parte no debate sobre o realismo. Mas também incluirá os críticos do realismo que empregam a abdução, embora discordem da conclusão do AM, a tese de que as teorias científicas são aproximadamente verdadeiras. Como notado anteriormente, que essa classe não seja vazia se segue do fato de que pelo menos alguns críticos do AM realista tentam mostrar que há melhores explicações potenciais do sucesso da ciência do que a explicação realista. Se sólido, o AM pode ter força racional para todas elas.

Portanto, não se mostrou que o AM é viciosamente circular. Sendo assim, não sei qual o problema com o AM. Em qualquer caso, Fine (1986: 115) está errado em manter sustentar que o AM “não tem qualquer significância”.

No entanto, Fine fez outras críticas contra a DER que ele chamou de “um profundo e [...] insuperável problema com toda a estratégia de defesa do realismo” (1986: 114). Ele aceita para fins do argumento que a DER pode ser bem-sucedida em convencer alguém que já emprega o raciocínio abdutivo sobre a verdade do realismo. Ele pergunta então: “não seria isso algum tipo de consolo, pelo menos para o realista?” (ibid.: 117).

Fine pensa que a DER não deveria fornecer conforto aos realistas. Pois tem-se de exigir que as provas das meta-teorias sejam mais estritas do que as provas nas teorias. Para esse fim Fine recorre ao programa de Hilbert para mostrar a consistência das teorias matemáticas usando-se apenas os meios mais estritos e seguros — em particular, meios que ocorram fora das ferramentas de prova da teoria sob consideração. Fine argumenta:

Muito embora a idéia de Hilbert estivesse correta, penso que seja impraticável. Os argumentos meta-teóricos têm de satisfazer exigências mais estritas do que aquelas usadas nos argumentos pela teoria em questão, pois do contrário, a significância do raciocínio sobre a teoria é simplesmente discutível. Penso que essa máxima se aplica com particular força à discussão sobre o realismo. (1986: 114)

De um ponto de vista naturalista, é de grande importância para o debate saber se uma exigência provou ser utópica. Desde a segunda prova de Godel da incompletude de um teorema é claro que não pode haver uma prova estrita, no sentido de Hilbert, da consistência da aritmética de Peano. Em particular, qualquer prova de consistência para uma teoria axiomática formal é — pelos menos num sentido — menos elementar do que os métodos formais cuja teoria axiomática formaliza. A exigência de Hilbert poderia estar correta em princípio. Contudo, é irrazoável exigir que uma teórica filosófica tenha de satisfazer uma exigência que nem a matemática, com uma noção precisa de prova e uma estrutura dedutiva estrita e rigorosa, satisfaz. A exigência de Fine (1986: 115) de que uma teoria realista empregue “métodos mais estritos do que os da prática científica comum” é artificialmente forte e não naturalista.

Há melhores explicações do sucesso da ciência?

O que também precisa ser mostrado é que a conclusão do AM é de fato a melhor explicação do sucesso da ciência. Isso é crucial porque do contrário, o AM não pode defender adequadamente a fiabilidade da abdução; além do mais, Fine argumentou que há uma melhor explicação não-realista do sucesso da ciência. Fine (1986a: 154) defende uma tese bastante audaz de que qualquer coisa que os realistas possam fazer, os instrumentalistas também podem, e de um jeito melhor.

A alegação de Fine é que alguma noção de fiabilidade instrumental das teorias científicas explica melhor o sucesso da ciência, onde a “fiabilidade instrumental” é uma característica das teorias científicas em virtude da qual elas são “úteis em fazer as coisas funcionarem para propósitos práticos e teóricos, e para os quais nos disporíamos a usá-las” (1991: 86). A estratégia de Fine, no entanto, enfrenta um problema geral. Suponha que ele use a IME para inferir a verdade do instrumentalismo. Ele então parece admitir que a abdução seja fiável, muito embora seja o caso de, contrário ao que os realistas esperam, o realismo não ser a melhor do explicação do sucesso da ciência: sendo ao invés, o instrumentalismo. Mas então Fine teria de conceder que a abdução é fiável.

O uso que Fine faz da abdução, portanto, teria de ser diferente. Não deveria ser visto como uma inferência a favor da verdade da melhor explicação — sendo esta última, de acordo com ele, a de que a ciência é instrumentalmente fiável. Fine de fato falou sobre “uma versão instrumentalista da inferência a favor da ‘melhor’ explicação” (1991: 83). Essa versão ainda favoreceria a melhor explicação, mas reivindicaria que a melhor explicação é empiricamente adequada ao invés de verdadeira. O instrumentalismo seria aceito como empiricamente adequado à la van Fraassen. Contudo, penso que ainda haveria um problema. Pois ainda que o instrumentalismo se mostrasse a melhor explicação do sucesso instrumental da ciência, poderia não ser mais empiricamente adequado do que o realismo. O realismo e o instrumentalismo são igualmente empiricamente adequados. Ambos acarretam o sucesso empírico da ciência. E note que para a maioria dos instrumentalistas a adequação empírica é apenas uma virtude epistêmica de uma explicação potencial — a única característica que contribui para o seu mérito de crença qua explicação. Se Fine aceitasse esse princípio instrumentalista comum, então ainda que o instrumentalismo fosse uma melhor explicação do sucesso da ciência, ele não teria mais mérito de ser crível do que o realismo, uma vez que seriam igualmente empiricamente adequados. Se, no entanto, Fine pensasse que certas virtudes explicativas pudessem, ao lado da adequação empírica, tornar uma explicação mais crível do que outra, então ele se afastaria de uma versão instrumentalista da IME e defenderia o instrumentalismo apenas à custa de conceder o principal ponto ao realismo, viz. que as virtudes explicativas são em última instância virtudes epistêmicas.

Porei de lado essas preocupações, no entanto, e focar-me-ei na questão central: é a explicação instrumentalista do sucesso da ciência melhor do que a explicação realista? Fine (1986a: 153–154; 1991: 82–83) contrasta duas formas de explicações abdutivas (simplificadas) do sucesso da ciência:

(a)

A ciência é empiricamente bem-sucedida.
Logo, (provavelmente) as teorias são instrumentalmente fiáveis.

(b)

A ciência é empiricamente bem-sucedida.
Logo, (provavelmente) as teorias são aproximadamente verdadeiras.

Fine sugere que o padrão (a) é sempre preferível ao padrão (b) pelas razões de que se o explanandum é o sucesso empírico da metodologia científica, então não precisamos inflar a explicação potencial com “características além das que são úteis para explicar o output” (1991: 183). Assim, Fine pensa que “o instrumentalista, sentindo-se em solo firme, pode sugerir que para explicar o sucesso instrumental precisamos apenas supor que as nossas hipóteses e teorias são instrumentalmente fiáveis” (1991: 82–83).

Penso que o argumento de Fine assenta-se na suposição escondida de que um apelo à verdade (aproximada) das teorias científicas de fundo vão além das características que são úteis para se explicar o sucesso instrumental da ciência. Em seu Unnatural Attitudes (1896a: 153), ele de fato sugeriu que admitir mais do que a fiabilidade instrumental “não seria fazer qualquer trabalho explicativo”. O seu argumento corre como segue. Quando os realistas tentam explicar o sucesso de uma teoria particular, eles apelam para a verdade aproximada de um relato teórico como a melhor explicação do sucesso da teoria em executar certas tarefas empíricas. Mas se essa explicação é de todo vantajosa, eles têm de “estabelecer alguma conexão intermediária entre a verdade da teoria e o sucesso em sua prática. O intermédio aqui é precisamente a fiabilidade dos pragmatistas” (1986a: 154). Por isso, sugere Fine, o papel que a verdade alegadamente desempenha na explicação do sucesso de uma teoria é na verdade desempenhado por essa fiabilidade pragmática intermediária. A verdade parece explicativamente redundante. Além do mais, se a fiabilidade pragmática substituir a verdade na abordagem realista do sucesso, ganha-se uma abordagem alternativa em termos de fiabilidade instrumental (ibid.: 154). Fine conclui: “uma vez que nenhum trabalho ulterior é feito ao passar desse ponto intermediário à ‘verdade’ do realista, a explicação instrumental tem de ser considerada como melhor do que a explicação realista. Desse modo, o argumento realista conduz ao instrumentalismo” (ibid.). Com base nesse argumento, Fine prova um meta-teorema: “Se os fenômenos a serem explicados não estiverem realisticamente subordinados, então para toda boa explicação realista corresponde uma explicação instrumentalista melhor” (ibid.).

Há dois aspectos estranhos no argumento de Fine:

  1. Não é de todo óbvio que haja algo como uma noção pragmática de fiabilidade a qual os realistas tenham de levar em conta em sua explicação do sucesso da ciência. Entre as previsões empíricas bem-sucedidas e as teorias há métodos, suposições auxiliares, aproximações, idealizações, modelos e provavelmente outras coisas. Suponhamos que essas coisas são o que Fine chama de “intermédio pragmático”. Suponhamos também que essas coisas sozinhas poderiam dar conta do sucesso empírico de uma teoria. Isso tornaria as afirmações acerca da verdade da teórica explicativamente supérfluas? Certamente que não. Pois também se quer saber por que alguns modelos particulares representam com sucesso os sistemas físicos pretendidos enquanto outros não, ou por que os métodos seguidos geram previsões bem-sucedidas, ou por que algumas idealizações são melhores que outras, e assim por diante. Quando os realistas argumentam a favor da verdade aproximada das teorias científicas de fundo, eles querem, com efeito, explicar o sucesso (ou fiabilidade instrumental) dessa coisa intermediária. A verdade aproximada seria invocada para explicar as restrições bem-sucedidas que as teorias impõem na construção do modelo tanto quanto nas características dos métodos científicos em virtude dos quais são produzidos resultados bem-sucedidos. Portanto, se é isso que Fine pretende quando falamos de um intermédio pragmático entre a verdade (aproximada) de uma teoria e o seu sucesso na prática, a existência desse intermédio pragmático não tornaria a verdade aproximada explicativamente supérflua.
  2. Mesmo que assumíssemos alguma outra noção pragmática de fiabilidade a ser interpolada entre a verdade aproximada e o sucesso empírico, e mesmo que igualássemos essa noção à fiabilidade instrumental de Fine, estaria aberto à duvida se tal coisa tem qualquer importância explicativa real. A fiabilidade instrumental não é nada além de uma afirmação sumária do fato da teoria executar tarefas práticas com sucesso. Se tentamos explicar o sucesso empírico da teoria dizendo que as teorias de fundo são instrumentalmente fiáveis, estamos simplesmente a parafrasear aquilo que precisa ser explicado. Não importa se formulamos o explanandum como “As teorias são bem-sucedidas” ou “As teorias são instrumentalmente fiáveis”. Nenhuma explicação é oferecida apenas por meio de uma paráfrase do sucesso das teorias em termos de fiabilidade instrumental das teorias. A situação aqui é totalmente análoga à tentativa de “explicar” o fato de os martelos serem bem-sucedidos em pregar pregos numa parede dizendo que os martelos são instrumentalmente fiáveis para pregar. Lembre-se que o que está em jogo é saber se uma explicação instrumentalista é melhor do que a explicação realista. Isso mostra que, a despeito de todas as manobras, não é afinal uma explicação.

Fine reconheceu implicitamente que a fiabilidade instrumental é uma explicação bastante pobre. Pois ele sugeriu recentemente (1991) um modo de tornar as afirmações de fiabilidade instrumental potencialmente explicativas. Ele delineou uma interpretação disposicional da fiabilidade instrumental da ciência. Dessa perspectiva, a fiabilidade instrumental envolve uma disposição para produzir resultados empíricos corretos. Fine afirma que essa explicação disposicional do sucesso da ciência é “uma explicação dos resultados por referência a inputs que têm a capacidade (ou ‘poder’) de produzir tais resultados [i.e. instrumentalmente fiáveis]” (1991: 83).

Essa nova interpretação da fiabilidade instrumental é potencialmente explicativa: dá conta do sucesso empírico apelando à capacidade, ou disposição, que as teorias têm em virtude da qual são empiricamente bem-sucedidas. Embora esteja na direção correta, essa abordagem é incompleta. Não porque não haja disposições ou poderes na natureza, mas antes, porque esperar-se-ia também uma explicação do porquê e como as teorias têm tais disposição para ser instrumentalmente fiável; em particular uma explicação que evita os problemas da “explicação” de Moliére do proquê o ópio faz alguém dormir em termos dos seus “poderes dormitivos”. É um fato bruto da natureza que as teorias — sendo construções humanas paradigmáticas — tenham a disposição para serem instrumentalmente fiáveis? Dificilmente se acreditaria nisso. Se as disposições desse tipo precisam de justificação, então há um candidato óbvio: a propriedade de ser aproximadamente verdadeiro justificaria o poder das teorias científicas de serem instrumentalmente fiáveis. Uma vez que Fine certamente negaria essa abordagem, ele nos deve um relato alternativo de como essa disposição é justificada. Se essa disposição não precisasse de justificação, ele precisa mostrar como isso pode ser.

Concluo, portanto, que Fine falhou em provar o seu meta-teorema em favor do instrumentalismo. A abordagem realista é a melhor explicação completa do sucesso empírico da ciência.

Não poderíamos apenas diminuir a nossa procura por explicações?

Há um aspecto da força epistêmica intuitiva da crítica de Fine do realismo da qual ainda não tratei: de algum modo “ir além dos dados” para postular “entidades teóricas” é mais problemático do que abandonar algumas formas de raciocínio abdutivo intuitivamente atrativas. Um defensor da crítica de Fine do realismo poderia, em particular, sugerir que uma abordagem deflacionária da explicação que permitisse a retrovisão e a previsão poderia funcionar bem sem trazer riscos extras com compromissos teóricos. Eis como. Suponha que alguém aceitasse a distinção precedente entre circularidade de premissa e circularidade de regra tanto quanto a existência de intuições abdutivas e explicativas. Ele poderia, portanto, reconhecer a força prima facie da exigência por uma explicação da fiabilidade da metodologia científica. Mas ao invés de aceitar a explicação do realista, ele identifica a explicação com a retrovisão e a previsão e oferece a seguinte indução de segunda ordem (quiniana) sobre a abdução como uma justificação epistêmica das práticas abdutivas na ciência: as inferências abdutivas do passado geraram teorias empiricamente bem-sucedidas; assim, com base na indução de segunda ordem, é razoável esperar que as inferências abdutivas continuarão a fornecer teorias empiricamente bem-sucedidas. Portanto, ele conclui que alguém pode estar equipado com generalizações indutivas sobre a fiabilidade instrumental da metodologia científica com base nas quais se pode prever ou retrover a fiabilidade instrumental da metodologia científica em casos particulares. Mas, enfatiza, essas generalizações indutivas não se comprometem com a existência de entidades inobserváveis e nem acarretam que o raciocínio abdutivo é um guia fiável para a verdade teórica. Tudo o que acarreta é que se pode confiar no raciocínio abdutivo para alcançar teorias instrumentalmente fiáveis, e nada mais. Chamarei isso de manobra da “indução sobre a abdução”.

Penso que essa manobra segue no espírito da abordagem disposicional de Fine da fiabilidade instrumental discutida no final da seção anterior. Na verdade, a sugestão das generalizações indutivas sobre o sucesso instrumental da metodologia científica poderia ser oferecida como um meio de justificar as afirmações sobre a disposição dessa metodologia como instrumentalmente fiável. Duas respostas, que trabalham conjuntamente, estão disponíveis. Primeiro, que essas generalizações não explicam realmente por que a metodologia científica é fiável; e, segundo, que essas generalizações não estão livres de comprometimentos teóricos.

Considere a generalização (de segunda ordem) de que o raciocínio abdutivo gera teorias instrumentalmente fiáveis. Chamemo-la A. A pode ser parafraseada como a conjunção das seguintes duas afirmações:

A1: o raciocino abdutivo gerou teorias instrumentalmente fiáveis no passado e no presente; e

A2: o raciocínio abdutivo gerará teorias instrumentalmente fiáveis no futuro.

Lembre-se agora daquilo que precisa ser explicado: a fiabilidade instrumental — passada, presente e futura — das teorias científicas. A1 & A2 é apenas uma paráfrase daquilo que precisa ser explicado. Mais especificamente, podemos perguntar se essa generalização, do modo com se encontra, é adequada para a previsão e retrovisão. Se usarmos A (=A1 & A2) para prever uma instância futura da fiabilidade instrumental, precisaremos presumir que A (=A1 & A2) já é bem confirmada, o que significa que precisamos presumir o que na verdade está em questão: que A fornece, por si própria, indícios a favor de A2. O que exatamente faz com que A apóie A2? Poderia ser o caso de que até agora as teorias instrumentalmente fiáveis terem falhado quando estendidas a novos domínios; a menos, é claro, que assumamos que elas são verossímeis. Esse apelo à verossimilhança explicaria por que as teorias são (ou tendem a ser) instrumentalmente fiáveis, e também justificaria a projeção da fiabilidade instrumental futura. Por outro lado, se usarmos A (=A1 &A2) para retrover a fiabilidade instrumental do passado das teorias científicas (A1), teremos de recorrer implicitamente à sua fiabilidade futura (A2), um fato que precisa tanto de explicação e justificação quanto A1. De qualquer modo, postular a verdade aproximada das teorias científicas ofereceria uma maneira mais satisfatória e altamente não-trivial de prever e retrover a sua fiabilidade instrumental: é em virtude das teorias serem aproximadamente verdadeiras que podemos

  1. Retrover o seu sucesso instrumental em certos casos;
  2. Prever os sucessos futuro; e
  3. Confirmar a generalização de que o raciocínio abdutivo gera teorias empiricamente bem-sucedidas.

Essa última afirmação estaria de acordo com a confirmação das generalizações empíricas na prática científica. As generalizações científicas são consideradas bem confirmadas principalmente quando estão imbuídas em amplas estruturas teóricas que explicam como as propriedades envolvidas na generalização co-variam e como a generalização se mantêm conectada com outras generalizações bem apoiadas. Um enquadramento que ligado à verdade (aproximada) desempenha precisamente essa papel quando explica a fiabilidade instrumental da metodologia científica e o sucesso instrumental das teorias científicas.

De qualquer forma, é altamente duvidoso que a manobra da “indução sobre a abdução” possa de um modo geral evitar compromissos teóricos. Boyd considerou de fato uma objeção similar a essa tentativa de defender a fiabilidade do raciocínio abdutivo (cf. 1984: 68-70; 1985: 236-241). O ponto é simples. Antes de fazer a indução sobre as teorias empiricamente bem-sucedidas do passado, temos de aceitar naturalmente que o sucesso instrumental constitui indício a favor da verdade das generalizações indutivas sobre os observáveis feitas por essas teorias. Mas esse juízo não é independente de todo compromisso teórico. De incontáveis generalizações que envolvem observáveis, os cientistas selecionam apenas algumas que são genuinamente empiricamente apoiadas e confirmadas. A escolha deles é teoricamente dependente: as teorias sugerem conexões entre fenômenos observáveis ainda não relacionados; determinam que predicados são projetáveis, e que coleção de indivíduos formam categorias naturais. Mas se os juízos comuns acerca das generalizações indutivas sobre observáveis envolvem compromissos teóricos, qualquer tentativa de ter uma indução sobre a abdução que seja livre de compromissos teóricos será seriamente prejudicada.10

Darwin pode ajudar?

Van Fraassen ofereceu uma explicação diferente do sucesso da ciência. Ei-la:

O sucesso da ciência não é um milagre. Não é sequer surpreendente à mentalidade científica (darwinista). Pois qualquer teoria científica nasce em meio a competição feroz, numa briga de unhas e dentes. Apenas as teorias bem-sucedidas sobrevivem — as únicas que de fato captaram as regularidades na natureza. (1980: 40)

Dessa abordagem não há surpresa pelo fato das teorias atuais serem empiricamente bem-sucedidas. Pois o princípio darwinista da sobrevivência do mais apto funcionou. As teorias atuais sobreviveram porque foram as mais aptas dentre as suas competidoras — mais aptas no sentido de captarem as regularidades universais. Essa é claramente uma explicação simples e elegante do fato de as teorias atuais serem bem-sucedidas. Mas mina a explicação realista?

Se destrincharmos o relato de van Fraassen, descobriremos que ele é fenotípico: fornece um mecanismo de seleção implícito de acordo com o qual as entidades com o mesmo fenótipo, i.e. sucesso empírico, foram selecionadas. Mas uma explicação fenotípica não exclui uma abordagem genotípica: uma explicação em termos de alguma característica subjacente que todas as teorias bem-sucedidas têm em comum; uma característica que as tornou bem-sucedidas em primeiro lugar. A explicação realista em termos da verdade fornece esse tipo de abordagem genotípica: cada teoria que possui um fenótipo específico, i.e. É empiricamente bem-sucedida, também possui uma genótipo específico, i.e. a verdade aproximada, que é responsável por esse fenótipo. A fim de tornar o ponto mais claro, compare o relato de van Fraassen com este (devido a Peter Lipton): Cada pessoa num grupo tem cabelo vermelho. Isso não surpreende; mas é explicado pelo fato desse grupo ser composto de membros do clube de pessoas de cabelo vermelho. (O clube é, num sentido, um mecanismo que seleciona apenas as pessoas com cabelo vermelho.) Mas essa observação não explica por que George (ou, para esse fim, cada um deles tomados individualmente) tem cabelo vermelho. Um relato diferente, provavelmente mais genético, deveria ser dado sobre a cor do cabelo de George.

Note que a explicação realista é compatível com a abordagem darwinista de van Fraassen. Contudo, a abordagem do realista é defensavelmente preferível, pois é mais profunda. Ela não permanece na superfície — isto é, não apenas postula um mecanismo de seleção que passa pelas teorias empiricamente bem-sucedidas. Fornece, antes, um relato sobre os traços comuns mais profundos em virtude dos quais as teorias selecionadas são empiricamente bem-sucedidas.

Como Lipton (1991: 170ff.) sugeriu, há outra razão para preferir a explicação genotípica à darwinista: tudo o que a explicação fenotípica justifica é que as teorias que sobreviveram através do mecanismo de seleção ainda não foram refutadas. Não há justificação de que elas serão bem-sucedidas no futuro. Qualquer justificação tem de ser externa ao relato fenotípico. Por exemplo, essa justificação pode advir de uma combinação de uma explicação fenotípica com o princípio de indução. Por outro lado, a explicação genotípica tem essa pretensão: se uma teoria for empiricamente bem-sucedida porque é verdadeira, então ele continuará sendo empiricamente bem-sucedida.

Resumindo, portanto, não há melhores explicações do sucesso da ciência do que a explicação realista. Não que essa discussão tenha esgotado todos os argumentos contra a IME e seu papel no debate sobre o realismo. Mais estar por vir no Capítulo 9, ao discutirmos a posição de van Fraassen. Além disso, há um argumento aparentemente poderoso contra o AM que precisa ser rebatido. É a chamada “indução pessimista” articulada por Laudan. O seu ataque é que o AM talvez não possa ser levado a sério porque ele não respeita o (suposto) fato de que a história da ciência é um cemitério de supostas “melhores explicações” dos dados.

A Parte II será voltada para a defesa do realismo contra a indução pessimista (Capítulos 5 e 6), e em seguida uma tentativa de rebater o argumento da “subdeterminação das teorias pelos dados”.

Stathis Psillos
Scientific Realism: How Science Tracks Truth, de Stathis Psillos (Routledge, 1999)

Notas

  1. A mesma linha de raciocínio foi emprega por Reichenbach na defesa de entidades inobserváveis (cf. 1938: 114- 124, especialmente a nota 4).
  2. (1981:617–618; 1984:59–60; 1989:8; 1990:181; 1990a: 360).
  3. Um exemplo poderia ilustrar isso. A explicação clássica do fenômeno fotoelétrico está correta na medida que da conta da corrente fotoelétrica em termos da emissão de elétrons a partir de uma superfície metálica. Mas a explicação clássica da emissão de elétrons — baseada na força de Lorentz — não é “boa o bastante” nem mesmo antes de ser contrastada com a explicação de Einstein. Embora ela explique por que a intensidade da corrente aumenta com a intensidade da luz que atinge a superfície metálica, não explica a característica saliente dos fenômenos: por que a velocidade máxima dos elétrons emitidos é independente da intensidade da luz mas dependente da freqüência da radiação eletromagnética. Esse último fato foi explicado pela hipótese de Einstein de que a luz é quantizada; são fótons — cuja energia depende da freqüência da radiação — que deslocam os elétrons de seus átomos.
  4. Vale notar que, dada a análise precedente, os argumentos dedutivos não são viciosamente circulares, muito embora não ampliem seu conteúdo, são tais que a conclusão está, em algum sentido, contida implicitamente nas premissas. Essa idéia de “implicitamente contido” precisa de alguma elucidação. Quer dizer que mostrar que dado algum conjunto de proposições, se se seguir algumas regras válidas de inferência, ser-se-á capaz de derivar as suas conseqüências lógicas. Essas conseqüências lógicas estão “contidas” nas premissas no sentido de que a verdade das premissas garante a verdade delas. Mas essas conseqüências lógicas não são nem idênticas, e nem paráfrases, das premissas. Fora os casos triviais (e.g. p → p), o que essas conseqüências lógicas são não é conhecido antes da aplicação das regras. Portanto, não é o caso que no raciocínio dedutivo se prove a verdade de qualquer coisa que se queira escolhendo-se um conjunto apropriado de premissas. Os argumentos dedutivos têm força probatória porque não presumem o que precisa ser provado.
  5. Esse ponto é levantado e desenvolvido por van Cleve (1984).
  6. A idéia de uma máquina de inferência foi pela primeira vez usada por Braithwaite (veja 1953: 291). Paul Churchland (1979: 6, 137 ff.) recorreu a uma idéia similar quando sugeriu que o processo de formação de crenças tem de ser visto como operações de engrenagens epistêmicas.
  7. O contra-exemplo de McGee (1985) é o seguinte: “Se um republicano vencer, então se Reagan não vencer, Anderson vencerá; um republicano (Reagan) venceu; logo, se Reagan não vencer, Anderson vencerá”. Todas as premissas são verdadeiras, mas a conclusão é falsa, diz McGee, pois se Reagan não tivesse ganhado as eleições presidenciais de 1980 dos EUA, Carter (o candidato democrata) teria ganho. Lycan (1994: 233) produziu o seguinte contra-exemplo: “Se você me insultar, serei educado, mas se você insultar a minha esposa, não serei; [o ouvinte insulta tanto a mim quanto a minha esposa]; Contradição!” O ouvinte me insulta, e não fui educado.
  8. Essas considerações foram exploradas por Friedman (veja 1988: 157), que em grande parte segue Dummett (1974).
  9. Argumentos circulares em regra não provam muito? Uma alegação comum (veja e.g. Salmon 1965) é que os argumentos circulares em regra poderiam ser oferecidos na defesa da “contra-indução” ou na defesa da falácia da afirmação da conseqüente. A contra-indução, por exemplo, vai da premissa de que “A maioria dos As observados são B” para a conclusão de que “O próximo A será um não-B”. Um “contra-indutivista” poderia apoiar esse regra com o seguinte argumento circular em regra: uma vez que a maioria das contra-induções falharam até agora, conclua, por contra-indução, que a próxima contra-indução será bem-sucedida. Similarmente, a falácia da afirmação da conseqüente poderia ser defendida pelo seguinte argumento circular em regra: se a falácia da afirmação da conseqüente preservar a verdade, então 2+2=4; 2+2=4; logo, a falácia da afirmação da conseqüente preserva a verdade. Mas essa objeção é demasiado apressada. Primeiro, há boas razões para se duvidar da fiabilidade da contra-indução. Uma vez a contra-indução é tipicamente malsucedida, o argumento circular em regra é simplesmente inútil. (De fato, como Max Black 1958 mostrou, se formulamos a contra-indução de modo que tenha instâncias bem-sucedidas, então o argumento circular em regra se torna incoerente). Quanto à falácia da afirmação da conseqüente, dado o significado dos conectivos lógicos, talvez não pudesse preservar a verdade (e é isso exatamente o que exigiríamos dela, uma vez que supostamente é uma regra dedutiva). Assim, qualquer argumento circular de regra em sua defesa é também inútil.
  10. A subordinação teórica das inferências indutivas comuns sobre os observáveis foi apontada por Hempel em sua crítica ao teorema de Craig (veja pp. 25-26).
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