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22 de Março de 2009   Ética

Os sentidos das vidas

Susan Wolf
Tradução de Desidério Murcho

Esta pergunta, “Qual é o sentido da vida?”, foi já tida como um paradigma da investigação filosófica. Fora da academia talvez o seja ainda. Nas aulas de filosofia e nas revistas académicas, contudo, a pergunta quase desapareceu, e quando é feita por um estudante ingénuo, por exemplo, ou por um mecenas potencial da causa do ensino das artes liberais, é quase certo que será recebida com um desconfortável embaraço.

O que há de tão errado com a pergunta? Uma resposta é que é extremamente obscura, se não completamente ininteligível. Não é claro o que se está exactamente a perguntar. Falar de sentido noutros contextos não oferece analogias imediatas para compreender a expressão “o sentido da vida”. Quando perguntamos pelo sentido ou significado de uma palavra, por exemplo, queremos saber o que a palavra quer dizer, o que representa. Mas a vida não é parte de uma linguagem, ou de qualquer outro género de sistema simbólico. Não é claro como poderia “querer dizer” algo, nem a quem. Por vezes usamos “significado” em contextos ilinguísticos: “Esses sinais significam que tens sarampo”. “Essas pegadas significam que alguém esteve aqui desde que choveu”. Nestes casos, falar de significado parece equivalente a falar de indícios, mas os contextos em que se fazem tais afirmações tendem a especificar as hipóteses que estão em questão dentro de limites relativamente fixos. Perguntar o que a vida significa sem um contexto analogamente especificado deixa-nos completamente perdidos.

Contudo, quando as pessoas se perguntam pelo sentido da vida, estão evidentemente a exprimir uma qualquer preocupação, e seria desavisado insistir que não fazemos a mínima ideia do que seja. A pergunta aponta pelo menos para um certo conjunto de preocupações com as quais a maior parte de nós tem pelo menos alguma familiaridade. Em vez de afastar como puro e simples absurdo uma pergunta com a qual muitas pessoas se ocuparam apaixonadamente, parece mais apropriado tentar interpretá-la e reformulá-la de um modo que nos permita compreendê-la mais claramente e com menos ambiguidades. Apesar de poder perfeitamente haver muitas coisas em jogo quando as pessoas perguntam “Qual é o sentido da vida?”, a mais central delas é aparentemente uma tentativa de encontrar um propósito ou objectivo para a existência humana. É um pedido para descobrir por que estamos aqui (ou seja, por que existimos de todo em todo), com a esperança de que uma resposta a esta pergunta nos dirá também algo sobre o que devemos fazer com as nossas vidas.

Se compreender a pergunta deste modo, contudo, a torna inteligível, pode não dar qualquer razão para a reabrir como um problema filosófico vivo. Na verdade, se algum do desconforto da filosofia profissional com a discussão do sentido da vida resulta de um desejo de banir a ambiguidade e a obscuridade da área, outro tanto resulta, penso, da ideia de que a questão, quando se torna clara, já foi respondida, sendo a resposta deprimente. Especificamente, se a questão do Sentido da Vida for identificada com a questão do propósito da vida, então a perspectiva comum, pelo menos entre os filósofos profissionais, seria, ao que parece, que tudo depende da existência de Deus. Por outras palavras, a opinião corrente seria, ao que parece, que se Deus existe, então há pelo menos uma hipótese de que exista um propósito, e portanto um sentido para a vida. Deus poderá ter-nos criado por uma razão, com um plano em mente. Mas ir mais além neste estilo de pensamento não está no horizonte dos filósofos seculares.1 Se, por outro lado, Deus não existe, não pode haver sentido, na acepção de um objectivo ou propósito para a nossa existência. Somos simplesmente o produto de processos físicos — não há razões para a nossa existência, só há causas.

Ao mesmo tempo que a conversa sobre a Vida ter Sentido é banida da filosofia, contudo, a conversa de vidas que são mais ou menos significativas parece estar a intensificar-se. Jornais, magazines, manuais de auto-ajuda2 estão repletos de ensaios sobre como encontrar sentido na nossa vida; os sermões e terapias baseiam-se no truísmo de que a felicidade não é apenas uma questão de conforto material, ou prazer sensual, mas também de um tipo mais profundo de realização. Apesar de os filósofos até hoje terem tido relativamente pouco a dizer sobre o que dá sentido às vidas individuais, encontram-se referências de passagem na bibliografia; e reconhece-se geralmente que é inteligível e apropriado querer isso nas nossas vidas. Na verdade, seria tolo pensar o contrário.

Mas como podem as vidas individuais ter sentido se a vida no seu todo não o tem? Estaremos a iludir-nos ao continuar a falar sobre a possibilidade de encontrar sentido na vida se suspeitarmos que não há sentido para a vida? (Estaremos a ser de vistas curtas, não vendo as implicações que uma parte do nosso pensamento tem noutra?) Alternativamente, serão estas expressões meramente homónimos, sem quaisquer conexões conceptuais ou lógicas entre si? Haverá aqui apenas dois tópicos completamente desconectados?

Muitos leitores ficarão aliviados ao saber que não desejo reavivar a pergunta pelo sentido da vida. Inclino-me a aceitar a perspectiva tradicional de que não há interpretação plausível dessa pergunta que ofereça uma resposta positiva na ausência de uma metafísica religiosa razoavelmente específica. Uma compreensão do que é significativo na vida, contudo, parece-me merecer mais atenção filosófica do que tem até agora recebido, e terei algumas coisas a dizer aqui sobre isso. Também neste caso me inclino para aceitar a perspectiva comum — ou uma parte da perspectiva comum — viz., que o significativo é uma característica inteligível a procurar alcançar numa vida, e que é pelo menos por vezes alcançável, não estando no entanto sempre assegurado. Mas o que vem característica a ser — o que procuramos — é controverso e obscuro, de modo que a tarefa de a analisar e interpretar ocupará uma larga fatia dos meus comentários. Depois de proposta uma análise, regressarei à questão de como uma perspectiva positiva sobre a possibilidade de sentido nas vidas pode ajustar-se à perspectiva negativa ou agnóstica sobre o sentido da vida. Os tópicos não estão, penso, tão desconectados quanto poderia à primeira vista parecer necessário para que as suas respostas respectivamente optimistas e pessimistas possam coexistir. Logo, apesar de a minha discussão nada oferecer de novo em termos de uma resposta à pergunta pelo sentido da vida, pode oferecer uma perspectiva algo diferente quanto à importância dessa pergunta.

Comecemos, contudo, com a outra pergunta, relativa à compreensão do que é procurar sentido na vida. O que queremos quando queremos uma vida significativa? O que faz umas vidas serem significativas, e outras nem tanto?

Se nos centrarmos na perspectiva do agente, ou do sujeito — numa pessoa que quer sentido na sua vida, que sente a necessidade de ter mais sentido — poderemos inclinar-nos a favor de uma interpretação subjectiva da característica que se procura. Quando uma pessoa procura embaraçosamente algo que dê sentido à sua vida, é sinal de um tipo de infelicidade. Imagina-se, por exemplo, a dona de casa alienada, cuja vida lhe parece consistir numa série de labores sem fim. O que ela quer, ao que poderá parecer, é algo que possa considerar subjectivamente mais compensador.

Esta impressão é reforçada se considerarmos referências a “experiências significativas”. (A expressão poderia aplicar-se, por exemplo, a um certo tipo de casamento ou funeral.) A característica mais saliente de um acontecimento descrito como significativo é, ao que parece, “ser muito significativo” para os participantes. Dizer que uma dada cerimónia ou, inclusivamente, um emprego é significativo parece pelo menos incluir a ideia de que é emocionalmente satisfatório. Uma ausência de sentido é habitualmente assinalada por um sentimento de vazio e insatisfação; em contraste, uma vida significativa, ou uma parte significativa de uma vida, é necessariamente pelo menos algo compensadora ou gratificante. É notável, contudo, que as experiências significativas não são de necessidade particularmente felizes. Uma viagem ao local onde nascemos pode muito bem ser significativa; uma visita a um parque de diversões é improvável que o seja.

Se dermos um passo atrás, contudo, e nos perguntarmos, como observadores, que vidas nos parecem especialmente significativas, se perguntarmos que géneros de vidas exemplificam o significativo, os critérios subjectivos não parecem tomar a dianteira. Quem nos vem à mente? Talvez Gandhi, ou Albert Schweitzer, ou a Madre Teresa; talvez Einstein ou Jonas Salk. Cézanne, ou Manet, Beethoven, Charlie Parker. Tolstoi é um caso interessante a que voltarei. Alternativamente, podemos olhar para os nossos vizinhos, colegas, familiares — alguns dos quais, me parece, têm vidas mais significativas do que outros. Alguns dos meus conhecidos, efectivamente, parecem-me ter vidas que são paradigmas de sentido — precisamente a par dos nomes famosos das listas anteriores; ao passo que outros (talvez apesar da quantidade módica de fama) teriam uma classificação muito baixa na escala do significativo. Se quem está nesta última categoria sente uma falta de sentido na sua vida — bem, têm razão em senti-lo, e é um passo na direcção correcta darem-se conta de haver algo quanto à sua vida que deviam tentar mudar.

O que é, então, ter uma vida significativa? O que vem a ser o significativo numa vida? Poderá ser mais fácil ganhar algum terreno concentrando a atenção no que queremos evitar. Com esse objectivo em mente, seja-me permitido oferecer alguns paradigmas — não de vidas significativas, mas de vidas que não são significativas.

Para mim, a ideia de uma vida que não é significativa revela-se, do modo mais claro e eficaz, na imagem de uma pessoa que passa dia após dia, ou noite após noite, frente à televisão, bebendo cerveja e vendo séries americanas. Não se trata de ter alguma coisa contra a televisão ou a cerveja. Mas a imagem, entendida como a imagem de uma pessoa cuja vida é passada numa passividade vaga, uma vida que não é vivida num nível desagradável da consciência, mas que não tem conexões seja com quem for ou com o que for, uma vida que não vai a lado algum, e que nada alcança — esta imagem é, proponho, a mais forte imagem que pode haver de uma vida que não é significativa. Chamemos a este caso o Paspalho.

Se há uma vida humana que não seja significativa, é a do Paspalho. Mas isto não significa que qualquer vida que não seja significativa tenha de ser, em todos os aspectos importantes, como a do Paspalho. Há outros paradigmas que sublinham pelas suas ausências outros elementos do que é significativo.

Em contraste com a passividade do Paspalho, por exemplo, podemos imaginar uma vida cheia de actividade, mas actividade tola ou decadente ou estéril. (E, uma vez mais, nada tenho contra a actividade tola, mas apenas contra uma vida que lhe seja totalmente dedicada.) Podemos imaginar, por exemplo, uma pessoa rica ociosa que esvoaça de um entretenimento para outro, lutando contra o tédio. Faz compras, viaja, come em restaurantes caros, e faz exercício físico com o seu treinador pessoal.

Curiosamente, poder-se-ia também tomar uma pessoa rica muito desociosa como epítome ligeiramente diferente de uma vida que não é significativa. Considere-se, por exemplo, o executivo de uma grande companhia que trabalha doze horas por dia, sete dias por semana, submetendo-se a grande pressão, com o único propósito de acumular riqueza pessoal. Isto relaciona-se talvez com o exemplo de David Wiggins do criador de porcos que compra mais terra para cultivar mais milho para criar mais porcos para comprar mais terra para cultivar mais milho para criar mais porcos.3

Estes três últimos casos — o rico ocioso, o executivo de uma grande companhia e o criador de porcos — são de algum modo bastante diferentes, mas todos partilham pelo menos esta característica: todos se podem caracterizar como vidas cujas actividades dominantes parecem vãs, estéreis ou vazias. Classifique-se estes casos sob a denominação Estéril.

Um género de caso algo diferente e penso que mais controverso a considerar envolve alguém que se entrega, até com dedicação, a um projecto que acaba em última análise por se revelar uma bancarrota, não porque os valores da pessoa sejam superficiais ou insensatos, mas porque o projecto fracassa. A pessoa pode literalmente ficar na bancarrota: por exemplo, um homem pode dedicar a sua vida a criar e construir uma companhia para passar aos seus filhos, mas pouco antes da sua planeada reforma a tecnologia torna obsoleto o produto que a sua companhia manufactura. Ou considere-se um cientista cujo trabalho de uma vida se torna inútil porque se anunciou uma descoberta crucial semanas antes de a sua própria investigação ter dado os mesmos resultados. Ou, o que é talvez mais tocante, imagine-se uma mulher cuja vida se centrava numa relação que se revela afinal uma fraude. Podemos dar aos casos que se encaixam neste molde a denominação de Bancarrota.

A classificação deste terceiro género de caso como uma exemplificação do que não é significativo pode enfrentar mais resistências do que a classificação dos outros dois. Talvez não se deva afinal considerar que estas vidas não são significativas. Contudo, estes são casos em que não é surpreendente que seja necessário um argumento de um género qualquer — não é incomum ou tolo que os sujeitos dessas vidas considerem a hipótese de que as suas vidas não foram significativas. Mesmo que não tenham razão, o facto de essa hipótese não ser, digamos, disparatada, é um dado relevante. Como também o seria, é claro, o género de coisa que diríamos para as convencer, ou para nos convencermos a nós mesmos, de que essa hipótese está em última análise equivocada.

Se os casos que esbocei captam mais ou menos bem as nossas imagens do que não é significativo, fornecem pistas quanto ao que um caso positivo de uma vida significativa tem de compreender. Contrastando com a passividade do Paspalho, uma pessoa que tem uma vida significativa tem de se entregar activamente a algo. Mas, como os casos Estéril mostram, não basta entregar-se a seja o que for, por qualquer razão ou com qualquer objectivo — é preciso uma entrega a um projecto ou projectos que tenham algum valor positivo, e de algum modo isso relaciona-se inacidentalmente ao que lhes dá valor. Por fim, para evitar a Bancarrota, parece necessário ser pelo menos num certo grau bem-sucedido (apesar de poder não ser fácil determinar o que conta como o tipo ou grau adequado de sucesso). Juntando estes critérios, obtemos uma proposta quanto ao que é ter uma vida significativa: viz., uma vida significativa é a que se entrega activamente, e pelo menos em parte com êxito, a um projecto (ou projectos) de valor positivo.

São necessários vários comentários para restringir e esmiuçar esta proposta. Primeiro, o uso da palavra “projecto” não é ideal: sugere demasiado uma tarefa finita, determinada, algo a que nos dedicamos e, se tudo correr bem, completamos. Entre as coisas que vêm à mente como projectos estão certos tipos de passatempos ou carreiras, ou antes, tarefas específicas que se subsumem na esfera de tais passatempos ou carreiras: coisas que podem ser encaradas como realizações (fazer uma demonstração ou escrever um poema ou fazer uma empada, organizar um sindicato ou uma banda de escola secundária). Apesar de tais actividades se contarem entre as coisas que parecem intuitivamente contribuir para que as vidas das pessoas sejam significativas, o que é significativo tem outras formas menos direccionadas, e menos determinadas pela realização ostensiva, pelo que não devemos deixar que o uso da palavra “projecto” distorça ou negue o potencial que estas coisas têm para tornar a vida significativa. Em particular, parece estranho, na melhor das hipóteses, descrever as relações humanas como projectos. Raramente nos envolvemos deliberadamente nas relações pessoais e, em alguns casos, nem sequer temos de as trabalhar — podemos tê-las apenas e viver, digamos, no seu seio. Além disso, muitas das actividades que é natural descrever como projectos — treinar uma equipa escolar de futebol, planear uma festa-surpresa, arbitrar um artigo para uma revista — só têm o significado que têm para nós por causa do lugar que ocupam nas relações humanas em que estamos envolvidos e com as quais nos identificamos, relações essas que não são como projectos. Assim, ao propor que uma vida significativa é uma vida activamente entregue a projectos, pretendo usar “projectos” numa acepção inabitualmente lata, abrangendo não apenas tarefas que se orientam por objectivos, mas também outros géneros de actividades e envolvimentos que estão já em decurso.

Segundo, deve-se entender a sugestão de que uma vida significativa deve “entregar-se activamente” a projectos de maneira que reconheça e abrace as conotações de “entrega”. Apesar de a ideia de que uma vida significativa exige actividade ter sido introduzida por contraste com a vida do ultra-passivo Paspalho, devemos notar que o sentido envolve mais do que a mera actividade literal. A dona de casa alienada, presumivelmente, está sempre activa — faz as compras e prepara refeições, limpa a casa, lava a roupa, conduz as crianças da escola ao futebol e ao ballet, marca consultas médicas e combina horários com babysitters. O que torna a sua vida insuficientemente significativa é que estas actividades nada lhe dizem, digamos. Não se identifica com que está a fazer — não abraça os seus papéis como cônjuge, mãe e dona de casa como expressão do que ela é e quer ser. Podemos captar a sua condição de alienada dizendo que apesar de estar activa, não se entrega activamente. (Limita-se, poder-se-ia dizer, a dar a aparência de.) Ao caracterizar uma vida significativa vale pois a pena sublinhar que viver tal vida não é apenas uma questão de ter projectos (numa interpretação lata) e passar por eles activamente e com algum êxito. Os projectos têm de fazer a pessoa em causa entregar-se-lhes. Idealmente, ela abraçá-los-ia com orgulho e felicidade, como parte integrante de pelo menos uma porção do que caracteriza a sua vida.4

Finalmente, temos de dizer algo mais sobre a condição mais problemática da proposta — viz., que os projectos a que nos entregamos que contribuem para uma vida significativa têm de ser projectos de “valor positivo”. A afirmação é que as vidas significativas têm de se entregar a projectos de valor positivo — mas quem decide que projectos têm valor positivo, ou mesmo quem garante que há tal coisa?

Insisto que devemos, tanto quanto possível, deixar por especificar a expressão, excepto num aspecto. Não queremos incluir uma teoria do valor positivo na nossa concepção do que é significativo. Como proposta que visa captar o que a maior parte das pessoas têm em mente com uma vida significativa, o que queremos é uma concepção que se “alinhe” seja com o que for que pensamos ter valor positivo. Isto permite-nos explicar pelo menos algumas intuições ou crenças divergentes sobre o que é significativo em termos de intuições ou crenças divergentes sobre o que tem valor positivo, seguindo-se que quem estiver enganado quanto ao que tem valor positivo, estará também enganado quanto ao que contribui para uma vida significativa. (Assim, uma pessoa que nada encontra digno de admiração no desporto — que considera ridícula, por exemplo, a imagem de um homem crescido a tentar enfiar uma bola pequenina num buraco com um taco, considerará haver pouco potencial de sentido na vida do praticante entusiástico de golfe; uma pessoa que dá pouco valor a trabalhos intelectuais esotéricos ficará surpreendida com quem se esforça por escrever, quando mais ler, vários livros sobre sobreveniência.)

A excepção que eu faria a esta interpretação maximamente tolerante da ideia de valor positivo é que não se considere que o valor meramente subjectivo é uma interpretação adequada da expressão.

Não adianta permitir que uma vida significativa seja uma vida envolvida em projectos que parecem ter valor positivo da perspectiva de quem a vive. Permiti-lo teria o efeito de apagar o que há de distintivo no nosso interesse no que é significativo; confundiria ou eliminaria a diferença entre um interesse em ter uma vida significativa e um interesse em ter uma vida que sentimos que é significativa ou que parece sê-lo. Que estes interesses são distintos, e que o primeiro não é meramente um meio para o segundo, é algo que podemos ver reflectindo num certo modo como se pode fazer sentir o desejo ou necessidade de ter uma vida significativa. O que tenho em mente é a possibilidade de um tipo de epifania, na qual acordamos — literal ou figurativamente — e reconhecemos que a nossa vida até então não foi significativa. Esta experiência seria praticamente ininteligível se a falta de sentido fosse entendida como uma falta de um certo tipo de impressão subjectiva. Dificilmente se pode compreender a ideia de acordar e pensar que a nossa vida até então não nos parecia significativa. Pelo contrário, pode ser precisamente por não nos termos dado conta do vazio dos nossos projectos ou da superficialidade dos nossos valores até esse momento que a experiência que estou a imaginar é tão pungente. É o tipo de experiência que podemos descrever em termos de abrir os olhos. E o anseio pelo que é significativo, o impulso para tentar resolver o problema, não será satisfeito (apesar de poder ser eliminado) voltando a fechar os olhos, digamos. Se suspeitamos que a vida que temos vindo a viver não é significativa, não lhe daremos sentido fazendo sessões de terapia psicológica ou tomando um comprimido que, sem mudar a nossa vida de qualquer outro modo, nos faz acreditar que a nossa vida tem sentido.

Assim, preocuparmo-nos em ter uma vida significativa é, segundo a minha proposta, preocuparmo-nos em ter uma vida de entrega activa, e pelo menos em parte bem-sucedida, a projectos (entendendo este termo numa acepção lata) que não parecem apenas ter valor positivo, mas que realmente o têm. Preocuparmo-nos em ter uma vida significativa, por outras palavras, é em parte preocuparmo-nos em fazer algo com a nossa vida que seja, perdoe-se a expressão, pelo menos de algum modo objectivamente bom. Devemos ter cuidado, contudo, para não identificar o bem objectivo com o bem moral, pelo menos se entendermos o valor moral como algo que envolve essencialmente beneficiar ou honrar a humanidade. A preocupação com o sentido na nossa vida não parece o mesmo que a preocupação com o valor moral, nem os nossos juízos sobre que géneros de vidas são significativas parecem alinhar-se com juízos de carácter ou realização moral.

Certamente que alguns dos paradigmas de vidas significativas são vidas de grande virtude ou realização moral — mencionei Gandhi e a Madre Teresa, por exemplo. Outras, contudo, não o são. Considere-se Gauguin, Wittgenstein, Tchaikovsky — todos eles figuras moralmente desagradáveis, cujas vidas contudo parecem repletas de sentido. Se pensarmos que mesmo eles merecem crédito moral porque as suas realizações tornaram o mundo melhor, considere-se em alternativa atletas olímpicos e campeões mundiais de xadrez, cujas realizações nada deixam na sua esteira excepto recordes mundiais. Mais importante ainda: considere-se os artistas, estudiosos, músicos e atletas do género mais comum, como nós. Também para nós as actividades da criação artística e da investigação, o desenvolvimento das nossas aptidões e da nossa compreensão do mundo dão sentido às nossas vidas — mas não lhes dão valor moral.

Parece então que o sentido na vida pode não ser especialmente moral, e que efectivamente as vidas podem ser fortemente significativas ainda que sejam, no seu todo, tidas como imorais. Conversamente, que uma vida seja pelo menos moderadamente moral, que esteja, por assim dizer, acima da reprovação, não é garantia que será moderadamente significativa. A dona de casa alienada, por exemplo, pode não ser de modo algum objecto de reprovação moral. (E é discutível que mesmo o Paspalho mereça uma censura especificamente moral.)

Que as pessoas querem sentido nas suas vidas é, suponho, um facto empírico observável. Chamámos já a atenção para dois indícios: os manuais de auto-ajuda, e os grupos de terapia. O que ofereci até agora é uma análise do que vem a ser esse desejo ou preocupação. Quero agora voltar-me para a questão de saber se é bom que as pessoas tenham esse desejo, ou seja, se há alguma razão positiva para que devam querer tal coisa.

No mínimo, podemos reconhecer que pelo menos não é mau querer sentido na nossa vida. Não há mal nisso, afinal. Dado que as pessoas o querem, e dado não haver objecções morais, devemos reconhecer que é legítimo preocuparmo-nos com o sentido, pelo menos no sentido fraco de que nos devem deixar fazer isso. Na verdade, na medida em que o significativo nas nossas vidas é um factor importante no bem-estar geral de uma vida, devemos fazer mais do que limitar-nos a permitir a sua procura: devemos positivamente tentar aumentar as oportunidades para as pessoas viverem vidas de sentido.

A maior parte de nós, ao que parece, temos uma atitude positiva mais forte com respeito ao valor do significativo do que esta concepção mínima admite. Não pensamos que é apenas aceitável que as pessoas queiram sentido nas suas vidas — como é aceitável que gostem de música country, ou que se interessem por esqui. Pensamos que as pessoas devem positivamente preocupar-se em ter vidas significativas. É inquietante, ou pelo menos lamentável, encontrar alguém que não se preocupe com isso. Contudo, este juízo positivo deveria apresentar-se-nos, pelo menos inicialmente, como um pouco misterioso. Qual é o bem, afinal de contas, de viver uma vida significativa, e para quem?

Dado que uma vida significativa não é necessariamente uma vida moralmente melhor do que uma vida que não é significativa (o atleta olímpico pode não fazer mais bem nem mal do que o rico ocioso da alta sociedade), não é necessariamente melhor para o mundo que as pessoas tentem ter vidas significativas, ou até que o consigam. Nem há a garantia de que uma vida significativa será especialmente feliz, contudo. Muitas das coisas que dão sentido às nossas vidas (relações íntimas, aspirações) tornam-nos vulneráveis à dor, desapontamento e tensão. Do seu ponto de vista, a passividade preguiçosa do Paspalho pode ser preferível à experiência do artista torturado ou do activista político. Por padrões convencionais, consequentemente, não é claro que dar importância à vida significativa ou até conseguir tê-la seja melhor para a própria pessoa.

Contudo, como já mencionei, quem dá importância à vida significativa tende a pensar que tê-la é uma coisa positivamente boa. Não queremos apenas viver vidas significativas, queremos querê-lo — aprovamos este desejo, e pensamos que é melhor que os outros também o tenham. Por exemplo, se o leitor vê uma pessoa que preza conduzindo a sua vida de um modo que lhe parece destituído de valor — é viciada em drogas, talvez, ou apenas na televisão, ou dá demasiada importância à sua carreira de advogada de uma grande companhia — é natural que a encoraje a mudar, ou pelo menos que tenha a esperança de que ela encontre por si uma nova direcção. A sua preocupação mais proeminente pode muito bem ser que a vida dela esteja prestes a desabar. Teme que a dado ponto ela abrirá os olhos e verá que tem estado a desperdiçar ou a conduzir mal a sua vida, ponto que poderá chegar demasiado tarde para que algo se possa fazer para remediar os estragos, envolvendo então, em qualquer caso, muita dor e autocrítica. Mas o medo de que ela abra os olhos e veja que tem estado a desperdiçar a vida (e que tenha dificuldade em mudá-la) pode não ser tão terrível quanto o medo de que acabará por nunca abrir os olhos. Se vier a ter a certeza de que nenhum momento doloroso de abrir os olhos ocorrerá porque a sua amiga (ou irmã ou filha) pura e simplesmente não se importa em saber se a sua vida é significativa ou não, poderá muito bem pensar que esta situação não é melhor: é pior. Ao que parece, pensamos que há algo de lamentável numa pessoa que tem uma vida que não é significativa, mesmo que ela própria não se importe. Ao que parece, pensamos que ela devia querer sentido na sua vida, ainda que não se dê conta disso.

Qual é, contudo, o estatuto deste “devia”, qual é a natureza ou fonte dessa lamentação? O mistério que sugeri devermos sentir sobre a nossa valorização do que é significativo reflecte-se na embaraçosa localização deste juízo. Se for típica a minha própria reacção à mulher que não se importa que a sua vida seja ou não significativa, o pensamento de que seria bom ou que devia importar-se está mais próximo de um juízo de prudência do que de um juízo moral. (Se há uma objecção moral a uma pessoa que tem uma vida que não é significativa e se satisfaz com isso, não é, em minha opinião, uma objecção muito forte. O Paspalho, afinal de contas, não prejudica seja quem for, nem o rico ocioso do jet-set. Este pode, por exemplo, dar dinheiro para ajudar causas ambientais para equilibrar os danos que resultam do seu jipe de luxo, e pode passar regularmente cheques generosos à Oxfam e à UNICEF.) O pensamento de que é demasiado mau que uma pessoa não viva uma vida significativa (ainda que não se preocupe com isso) parece que é, ao invés, o pensamento de que é demasiado mau para ela.

Na história da ética, tanto quanto sei, o análogo mais próximo deste pensamento é a concepção de Aristóteles de eudemonia. A sua concepção da vida virtuosa como a vida mais feliz é oferecida como uma conclusão de um interesse próprio iluminado. De acordo com as concepções habituais do interesse próprio, contudo (sejam hedonistas ou baseadas em preferências), não é óbvio por que haveria isto de ser assim e, infelizmente, o próprio Aristóteles não enfrenta explicitamente a questão. Ao invés, parece pensar que se não virmos simplesmente que a vida virtuosa, na qual visamos e atingimos o “excelente”, é uma vida mais desejável para nós, isso só mostra que não fomos bem educados e, nesse caso, não vale a pena que nos tentem educar.

A nossa questão, a questão de haver ou não alguma razão para uma pessoa se esforçar por ter uma vida significativa e, caso haja, que razão é essa, não é exactamente a mesma do que a questão haver ou não alguma razão para aspirar à virtude, e que razão é essa — apesar de estar mais próxima do que poderia parecer, se tivermos o cuidado de interpretar “virtude” no sentido lato e não especificamente no sentido moral de Aristóteles. Mesmo assim, como afirmei, Aristóteles não enfrenta verdadeiramente a questão e assim, apesar de eu encarar a minha maneira de pensar como aristotélica, em espírito, não é provável que um estudo académico dos seus textos seja uma maneira eficiente de descobrirmos por nós uma resposta para a questão.

Que razão há, pois, se é que há alguma, para uma pessoa querer ter uma vida significativa? Afirmei que parecemos pensar que seria melhor para essa pessoa — que é, pelo menos aproximadamente, do seu interesse próprio. Ao mesmo tempo, o pensamento de que ela deve importar-se com o sentido parece depender de afirmações exteriores a si. Mesmo que não existam desejos latentes na sua psicologia que uma vida significativa poderia satisfazer, pensamos, ao que parece, que há uma razão pela qual a pessoa os deveria ter. Parece estar a fazer um tipo qualquer de erro, caso não os tenha.

Se estiver correcta a minha análise do que envolve viver uma vida significativa, então a questão da razão pela qual devemos dar importância à vida significativa é equivalente à questão da razão pela qual devemos dar importância à entrega activa e algo bem-sucedida a projectos de valor positivo. A fonte da perplexidade parece, em particular, dizer respeito à razão para dar importância ao valor positivo dos nossos projectos. Desde que nos entreguemos às nossas actividades, e que estas nos façam felizes, por que devemos importar-nos se essas actividades valem ou não objectivamente a pena?

A resposta, penso, é que dedicar a nossa vida inteiramente a actividades cujo valor é meramente subjectivo, dedicarmo-nos a actividades cuja única justificação é serem boas para nós, é, numa certa acepção que tentarei explicar, praticamente solipsista. É incongruente com o nosso estatuto de, se quisermos, minúsculas partículas num vasto universo, um universo com inúmeras perspectivas cujo estatuto é igual ao nosso, e a partir das quais a nossa vida pode ser avaliada. Viver uma vida entregue a projectos cujo valor tem uma fonte insubjectiva, e portanto pelo menos parcialmente centrada nesses projectos, é um modo de reconhecer a nossa posição imprivilegiada. Harmoniza-se, ao contrário de uma vida puramente egocêntrica, com o facto de não sermos o centro do universo.

A ideia básica é a seguinte: reconhecer o nosso lugar no universo, a nossa pequenez, poder-se-ia dizer, ou a nossa insignificância, e reconhecer a existência independente do universo do qual somos uma parte, envolve, entre outras coisas, reconhecer o carácter “meramente” do nosso ponto de vista subjectivo. Pensar no nosso lugar no universo é reconhecer a possibilidade de uma perspectiva, ou na verdade de um número infinito de perspectivas, a partir da qual a nossa vida é meramente gratuita; é reconhecer a possibilidade de uma perspectiva, ou antes de um número infinito de perspectivas, indiferente à nossa existência ou inexistência, e portanto à nossa felicidade ou tristeza, satisfação ou insatisfação, realização ou falta dela.

Face a este reconhecimento, uma vida que procure apenas a sua própria realização subjectiva ou a sua mera sobrevivência ou que se dedique apenas a objectivos que em nada mais se fundamentam senão a própria psicologia da pessoa em causa, parece solipsista ou tola.

Uma pessoa que viva uma vida em grande parte egocêntrica — que dedique, por outras palavras, muita energia e atenção e cuidado a si mesma, que se ocupe mais especificamente da sua satisfação e gratificação, expressa e revela a crença de que a sua felicidade é importante. Ainda que não expresse a perspectiva de que a sua felicidade tem objectivamente importância, expressa pelo menos a ideia de que é importante para si. Dedicar-se somente à sua própria gratificação, consequentemente, expressaria e revelaria o facto de a sua felicidade ser tudo o que importa, ou pelo menos tudo o que importa para si. Contudo, se aceitarmos um enquadramento que reconhece distinções de valor insubjectivo (e se acreditarmos, como parece razoável, que o que tem valor insubjectivo não se concentra em especial em nós nem tem connosco uma conexão especial), esta atitude parece difícil de justificar.

Aceitar esse enquadramento é, afinal, aceitar a perspectiva de que algumas coisas são melhores do que outras. Para mim, faz sentido entender isto parcialmente em termos literais: algumas coisas, parece-me, são melhores do que outras: as pessoas, são melhores do que as pedras ou mosquitos, e uma pintura de Vermeer é melhor do que pedaços do meu monte de húmus.5 O essencial, contudo, é que aceitar um enquadramento que reconheça distinções de valor insubjectivo envolve ver o mundo como algo repleto de valor, contendo no seu seio distinções de melhor e pior, do que vale mais ou menos a pena — se não objectos melhores e piores em si, pelo menos melhores e piores características do mundo, ou actividades, ou oportunidades de nos realizarmos. Contra este pano de fundo, uma vida dedicada exclusivamente à nossa própria gratificação ou à satisfação dos nossos caprichos parece gratuita e difícil de defender. Pois, como afirmei, viver tal vida exprime a perspectiva de que tudo o que conta é a nossa felicidade, pelo menos para nós mesmos. Mas por que razão haveria isto de ser a única coisa que conta, quando há tanto mais a que vale dar importância?

Quem conhece o livro The Possibilty of Altruism, de Thomas Nagel, poderá ter reconhecido que lhe aludi ao sugerir que uma vida indiferente ao significado é praticamente solipsista. A alusão é significativa, pois o argumento que estou a apresentar, apesar de ter em vista uma conclusão diferente, tem uma forte semelhança com o argumento desse livro. O argumento de Nagel convida-nos a ver alguém que, apesar de tentar evidentemente evitar ou minimizar a sua dor, mostra total indiferença à dor alheia — um solipsista prático, no sentido em que, na sua concepção prática, não reconhece nem tem em consideração que é uma pessoa entre outras, igualmente reais. Grosso modo, a sugestão é, ao que parece, que se tivermos em consideração a realidade dos outros, então damo-nos conta de que as suas dores são tão dolorosas quanto as nossas. Se o carácter doloroso da nossa dor é uma razão para tomar medidas para a evitar, então o carácter doloroso da dor dos outros deveria também fornecer razões para fazer o mesmo. Ser totalmente indiferente à dor alheia denuncia, pois, uma incapacidade para reconhecer a dor alheia (isto é, para a reconhecer como realmente dolorosa, do mesmo modo que a nossa dor o é para nós).

Esta não é a ocasião para discutir a plausibilidade de interpretar o egoísta puro como um solipsista prático, como o faz Nagel, nem sequer para discutir a sua posição complexa e subtil em suficiente detalhe para poder avaliá-la com equidade. O que quero sublinhar não se relaciona com a substância do argumento mas com o tipo de argumento em causa: especificamente, o argumento de Nagel sugere que ter em consideração um certo facto — neste caso, o facto de que somos apenas uma pessoa entre outras, igualmente reais — é uma fonte de razão prática — neste caso, dá-nos razão para encarar as dores alheias como razões para agir. Se Nagel tiver razão, temos razão para nos importarmos com a dor alheia — razão que não se funda nas nossas psicologias (e, mais especificamente, não se funda em qualquer um dos nossos próprios desejos), mas num facto sobre o mundo. A sua sugestão é que uma pessoa que não veja a dor alheia como uma fonte de razão age “como se” a dor alheia não fosse real ou dolorosa. Mas é claro que a dor dos outros é real e é dolorosa. Tal pessoa exibe pois não apenas um defeito moral ou falta de simpatia, mas também uma razão prática deficiente, na acepção em que a sua postura prática não está de acordo com um facto muito significativo sobre o mundo.

A minha sugestão de que temos razão para dar importância às vidas significativas, mas não às que o não são, e para as procurarmos, tem uma forma semelhante à de Nagel. Como ele, estou a sugerir que podemos ter uma razão para fazer algo ou para nos importarmos com algo que não se baseia nas nossas próprias psicologias, nem especificamente nos nossos próprios desejos, mas num facto sobre o mundo. O facto em questão neste caso é que somos, cada um de nós, minúsculas partículas num universo vasto e repleto de valor, e que como tal não temos posição privilegiada como fonte ou possuidores de valor objectivo. A dedicação total à nossa própria satisfação parece-me incongruente com esta verdade — é agir “como se” fôssemos a única coisa que importa ou, talvez, mais ainda, “como se” a nossa própria psicologia fosse a única fonte do que importa (e que o determina). Ao centrar a nossa atenção e as nossas energias pelo menos em parte em coisas, actividades, aspectos do mundo que têm valor independentemente de nós, reconhecemos implicitamente o nosso lugar e estatuto no mundo. O nosso comportamento, e a nossa postura prática, está assim mais de acordo com os factos.

Admito que isto não é o género de razão que temos de aceitar sob pena de inconsistência ou de qualquer outro erro de lógica. Tal como uma pessoa pode simplesmente não se importar se tem ou não uma vida significativa, também pode pura e simplesmente não se importar se a sua vida está de acordo com os factos, ou se harmoniza com eles. (Uma coisa é dizer que devemos viver de acordo com os factos da física, geografia e das outras ciências. Viver de acordo com estes factos tem um valor instrumental evidente — ajuda-nos a andar no mundo. Mas viver de um modo que praticamente reconhece ou se harmoniza com o facto de sermos minúsculas partículas num mundo repleto de valor não torna as nossas vidas melhores desse modo.) Tal pessoa não pode ser acusada em qualquer sentido estrito de irracionalidade. Como as razões ininstrumentais para ser moral, a razão para cuidar de viver uma vida que valha a pena não é algo que a racionalidade estrita nos exija que aceitemos. Ao mesmo tempo, parece-me apropriado caracterizar a minha sugestão (e a de Nagel) dizendo que nela se apela a razões num sentido lato. Pois a minha sugestão é que ter interesse em ter uma vida significativa é uma resposta apropriada a uma verdade fundamental, e que não o ter constitui uma incapacidade para reconhecer essa verdade.

Como vimos, a verdade à qual proponho que uma vida significativa forneça uma resposta é a de que somos, cada um de nós, minúsculas partículas num universo vasto e repleto de valor. Como a verdade de que somos, cada um de nós, uma pessoa entre outras, igualmente reais, tal verdade opõe-se ao que as crianças e muitos adultos têm tendência para pressupor — nomeadamente, que são o centro do universo, possuidores ou fontes de todo o valor. (É porque tanto a verdade de Nagel como a minha se opõem a tal pressuposto que ambas podem plausivelmente ser entendidas como alternativas ao solipsismo prático.) Ao contrário da verdade de Nagel, a minha não diz respeito especificamente à nossa relação com as outras pessoas. Uma pessoa pode, portanto, dar valor e expressar praticamente uma destas verdades mas não a outra. Ao passo que uma resposta apropriada à igual realidade das outras pessoas pode ser, se Nagel tiver razão, uma entrega à moralidade ou a algo relacionado com a moralidade, a minha proposta é que uma resposta apropriada ao nosso estatuto como partículas num universo vasto é dar importância e aspirar a uma vida preenchida com projectos de valor positivo.

Contudo, talvez não tenha deixado claro por que razão isto é uma resposta apropriada. A questão pode parecer particularmente premente porque o pensamento de que somos minúsculas partículas num universo vasto, e a impressão de que isso torna necessário ou exige uma resposta teve a tendência, no passado, de empurrar os filósofos numa direcção diferente. Especificamente, o pensamento de que somos partículas minúsculas num universo vasto esteve no passado intimamente associado à pergunta lamacenta e ponderosa a que me referi no início — a pergunta pelo Sentido da Vida. O pensamento de que somos partículas minúsculas num universo vasto tem realmente muitas vezes invocado essa pergunta e, para quem não acredita na existência de um Deus benevolente ou não quer fazer depender disso as suas respostas, parece também ter indicado mais ou menos imediatamente uma resposta. Considerar a resposta dessas pessoas à pergunta pelo Sentido da Vida, contrastando-a com a minha resposta ao facto da nossa pequenez, pode clarificar a substância da minha proposta.

A linha de pensamento que tenho em mente tem sido expressa, com algumas variações, por muitos filósofos distintos, incluindo Camus, Tolstoi, Richard Taylor e, curiosamente, pelo próprio Nagel. Para eles, o reconhecimento do nosso lugar no universo — da nossa pequenez, ou do nosso carácter de partícula, se se quiser — parece comprovar a conclusão não apenas de que não há sentido para a vida, mas também de que cada vida individual é necessariamente absurda.

Na perspectiva destes filósofos, uma vida pode ser significativa apenas se pode ter significado para alguém, e não apenas para alguém, mas para alguém além de nós mesmos e, na verdade, alguém que tenha mais valor intrínseco ou último do que nós. Claro que qualquer pessoa pode viver de um modo que faça a sua vida ser significativa para alguém além de si. Pode manter relações com familiares e irmãos, estabelecer amizades com vizinhos e colegas. Pode apaixonar-se. Se tudo o resto falhar, pode ter um filho que a irá amar, ou dois filhos, ou seis. Pode até abrir toda uma clínica, por amor de Deus. Mas se uma vida somente dedicada a nós mesmos, uma vida que não é boa para mais ninguém além de nós, for destituída de sentido, pensam estes filósofos não sem plausibilidade, também uma vida dedicada a qualquer outra pobre criatura o será, pois a criatura em causa não terá mais importância objectiva do que nós, e por isso não será mais adequada como ponto último no qual possamos fundamentar o sentido da nossa vida do que nós mesmos. Nem servirá de ajuda, segundo esta linha de pensamento, expandir o nosso círculo, ser proveitoso ou provocar efeitos num segmento mais vasto da humanidade. Se cada uma das vidas é individualmente destituída de sentido, então também o colectivo o é. Se cada vida tem apenas uma quantidade infinitesimal de valor, então, apesar de o sentido da nossa vida aumentar em proporção com os efeitos da nossa vida, a quantidade total de sentido relativamente ao cosmos permanecerá tão pequeno que torna o esforço patético.

Da perspectiva destes filósofos, se Deus não existe, então a vida humana, cada vida humana, tem de ser objectivamente destituída de significado, porque se Deus não existe, não há qualquer ser apropriado para quem poderíamos ter significado.

Desta perspectiva, a minha sugestão de que viver uma vida significativa constitui uma resposta ao reconhecimento do nosso lugar no universo poderá parecer ridiculamente míope — como se, tendo admitido o carácter “meramente” da minha própria subjectividade, não reconhecesse depois a igual mera subjectividade dos outros. Mas eu penso que isto é compreender mal o sentido na minha proposta de viver uma vida que realiza valor insubjectivo, um erro de compreensão que resulta de uma perspectiva demasiado limitada acerca do que tem de ser uma resposta apropriada e satisfatória ao facto de termos o lugar no universo que temos.

Os filósofos de quem falei — a quem podemos chamar “pessimistas” — entendem que a lição fundamental a retirar da contemplação do nosso lugar no universo é que em termos cósmicos somos insignificantes, um facto que colide com o nosso desejo de ser efectivamente muito significativos. Se Deus existisse, poderiam tais filósofos fazer notar, teríamos alguma hipótese de ser significativos. Pois o próprio Deus é presumivelmente muitíssimo significativo e assim poderíamos ser significativos sendo ou tornando-nos significativos para Ele. Na ausência de Deus, contudo, parece que só podemos ser significativos entre nós, ou seja, para seres tão pateticamente pequenos como nós. Queremos ser importantes, mas não podemos ser importantes, e por isso as nossas vidas são absurdas.

Os pessimistas têm razão quanto à futilidade de tentar fazermo-nos importantes. Na medida em que a contemplação do cosmos nos faz ficar cientes da nossa pequenez, quer como indivíduos quer como espécie, temos pura e simplesmente de o aceitar e de nos ajustarmos à ideia. Algumas pessoas ficam sem dúvida muito perturbadas, e até abatidas, quando começam a pensar sobre a sua insignificância cósmica. Querem ser importantes, ter um impacto no mundo, deixar uma marca que fique para sempre. Quando se dão conta de que não podem fazê-lo, ficam muito desapontadas. O único conselho que se pode dar a tais pessoas é este: Deixa-te Disso.

Em vez de lutar contra o facto da nossa insignificância, contudo, e contra o “meramente” da nossa subjectividade, a minha proposta é que vivamos de um modo que reconheça o facto ou que, em qualquer caso, se harmonize com ele. Viver de um modo que se centra e entrega significativamente ao cuidado de promover ou realizar valor cuja fonte vem do exterior de nós parece harmonizar-se com isto, ao passo que viver de um modo puramente egocêntrico não parece fazê-lo. Viver vidas que atingem ou realizam valor insubjectivo pode não nos tornar significativos, e muito menos importantes, para alguém além de nós mesmos, mas dá-nos algo para dizer e pensar em resposta ao reconhecimento de perspectivas que nós mesmos imaginativamente adoptamos e que são indiferentes à nossa existência e ao nosso bem-estar.

Comecei por levantar a pergunta de como o sentido da vida — ou a sua ausência — se relacionava com o que há de significativo em vidas particulares. Como o poderia ter dito, faz realmente sentido pensar que pode haver vidas significativas num mundo que não é significativo? À luz desta discussão, podemos ver como a resposta a essa pergunta pode ser “sim” apesar de se manter a ideia de que a semelhança de vocabulário das duas expressões não é uma mera coincidência.

Se eu tiver razão quanto ao que está envolvido em ter uma vida significativa — isto é, se ter uma vida significativa é uma questão de uma entrega pelo menos parcialmente bem-sucedida a projectos de valor positivo — então pode-se ver que a possibilidade de ter vidas significativas apesar da ausência de um sentido abrangente para a vida depende do facto de as distinções de valor (isto é, de valor objectivo) não dependerem da existência de Deus ou de qualquer propósito abrangente para o género humano como um todo. Quer Deus exista quer não, o facto permanece: alguns objectos, actividades e ideias são melhores do que outras. Quer Deus exista quer não, algumas maneiras de viver valem mais a pena do que outras. Algumas actividades são uma perda de tempo.

As pessoas são por vezes tentadas a pensar que se Deus não existe, então nada tem importância. São tentadas a pensar que se todos vamos morrer, acabando todos os traços da nossa existência por desaparecer de toda a consciência, não vale a pena fazer seja o que for; nada faz qualquer diferença. É evidente que Tolstoi pensava por vezes isto, emprestando uma voz eloquente a tal perspectiva. Mas o raciocínio é ridículo. Se uma actividade vale a pena e outra é um desperdício, então temos razão para preferir a primeira, mesmo que não exista qualquer deus para nos olhar de cima aprovadoramente. Mais genericamente, parece que temos razão para nos entregarmos a projectos de valor, quer Deus exista e atribua propósito à vida quer não.

Ao pôr as coisas assim, contudo, não se consegue explicar por que razão usamos a linguagem do sentido para descrever vidas que se entregam a actividades de valor. Ao pôr as coisas assim, não parece haver qualquer conexão entre a questão de haver um sentido para a vida e a questão de as vidas individuais poderem ser significativas. Penso haver, contudo, uma conexão que se dá a ver ou que talvez consista no facto de que o desejo de ambos os tipos de sentido é invocado pelo mesmo pensamento e que, talvez, qualquer um deles seria uma resposta apropriada e satisfatória a esse pensamento. O pensamento (verdadeiro) em questão é o de que somos minúsculas partículas num universo vasto. É um pensamento que tende a perturbar-nos quando o temos pela primeira vez — pelo menos em parte porque, ao olhar para nós mesmos a partir dessa posição, pode parecer que até então vivemos “como se” algo oposto a isso fosse verdade. Talvez tenhamos vivido até então como se fôssemos o centro do universo, o único possuidor ou fonte de todo o valor. Tínhamos presumido desde sempre que tínhamos um lugar especial e muito importante no mundo, e agora esse pressuposto foi arruinado. É fácil ver como, neste contexto, se poderá desejar que a vida tenha um sentido. Pois se houvesse um sentido — quer dizer, um propósito para a existência humana que se pode presumir ser de grande importância — então, ao desempenhar um papel, ao contribuir para esse propósito, podemos recuperar alguma da importância que pensávamos que a vida tinha. Como os filósofos pessimistas de que falei, duvido que esse caminho seja possível para nós. Mas parece haver outra maneira de responder ao pensamento ou ao reconhecimento do nosso lugar relativamente insignificante no universo, uma maneira que parece mais promissora e que pode fornecer um tipo diferente de conforto, fazendo-o efectivamente por vezes. Se vivemos a nossa vida, antes de reconhecermos a nossa pequenez, como se fôssemos o centro do universo, a resposta apropriada a esse reconhecimento é simplesmente deixar de viver desse modo. Se dermos atenção a outras partes do universo — mesmo a outras partículas como nós — de um modo que faça jus e que envolva uma entrega aos valores ou objectos valiosos que nos são exteriores, então corrigimos a nossa postura prática. Se, além disso, formos parcialmente bem-sucedidos produzindo, preservando e promovendo o valor — se fizermos algum bem, ou se realizarmos valor — então temos algo a dizer ou a pensar em resposta à preocupação de que a nossa vida não tem razão de ser.

Só se alguma sugestão como a minha estiver correcta é que podemos dar sentido às intuições sobre o que é significativo para as quais chamei já a atenção. Segundo essas intuições, a diferença entre uma vida significativa e uma vida que não o é não é uma diferença entre uma vida que faz muito bem, e uma vida que faz pouco bem. (Nem é uma diferença entre uma vida que deixa marcas profundas e uma que, digamos, deixa apenas umas linhas.) Trata-se antes de uma diferença entre uma vida que faz o bem ou é boa ou realiza valor e uma vida que é essencialmente um desperdício. Segundo estas intuições, há um contraste tão nítido entre o Paspalho e uma vida dedicada ao cuidado de um só indivíduo necessitado, como há entre o Paspalho e alguém que consegue mudar o mundo para melhor em grande escala. Na verdade, pode haver um contraste igualmente nítido entre o Paspalho e o monge de uma ordem contemplativa cuja existência não confere qualquer benefício ou mudança na vida de qualquer outra pessoa. Ironicamente, desta perspectiva, Tolstoi sai-se excepcionalmente bem.

Parece-me assim que ainda que não haja sentido para a vida, ou seja, mesmo que a vida como um todo não tenha propósito, direcção, razão de ser, isso não é uma razão para duvidar da possibilidade de encontrar e fazer sentido na vida — não é uma razão, por outras palavras, para duvidar da possibilidade de que as pessoas tenham vidas significativas. Ao aceitar o nosso lugar e estatuto no universo, é natural e apropriado que as pessoas queiram explorar a possibilidade dos dois tipos de sentido. Mesmo que os filósofos nada de novo nem de encorajador tenham para dizer sobre a possibilidade de sentido do primeiro género, pode ser apropriado elaborar os diferentes significados da ideia de encontrar sentido na vida, e fazer notar as diferentes formas que pode assumir aprender a aceitar a condição humana.

Susan Wolf
Retirado, com a autorização da autora, de Introduction to Philosophy: Classical and Contemporary Readings, 4.ª ed., org. John Perry, Michael Bratman e John Martin Fischer (Nova Iorque e Oxford: Oxford University Press, 2007)

Notas

  1. Thomas Nagel tem o que se pode considerar uma perspectiva ainda mais pessimista — viz., que mesmo que exista um Deus, não há razão para o propósito de Deus ser o nosso propósito, nenhuma razão, consequentemente, para pensar que a existência de Deus poderia dar sentido, na acepção adequada, às nossas vidas.
  2. E.g., no dia em que me sentei para tirar notas para este artigo, publicou-se no jornal (Baltimore Sun, 16 de Janeiro de 2002) uma recensão de um livro de Monique Greenwood, Having What Matters: The Black Woman’s Guide to Creating the Life you Really Want. O livro é apresentado como um guia para substituir o manifesto de 1980 de Helen Gurley Brown sobre ter tudo. Em vez de “a mulher que tiver mais brinquedos ganha”, Greenwood diz que “a mulher que tiver mais alegria ganha”. Centra-se assim em como “alcançar uma vida com valor e significado”.
  3. David Wiggins, “Truth, Invention, and the Meaning of Life”, in Proceedings of the British Academy, LXII, 1976.
  4. Parece-me haver uma condição ou restrição complementar quanto ao que constitui uma vida significativa, apesar de não se encaixar graciosamente na definição que proponho, sendo além disso algo lateral com respeito ao que há de central neste ensaio: nomeadamente, que os projectos que contribuem para uma vida significativa têm de ter uma duração apreciável, e têm de contribuir para a unidade da vida ou de uma fase apreciável dela. Uma pessoa que se entrega permanentemente a um ou outro projecto de valor, mas cujos projectos não exprimem qualquer núcleo subjacente de interesse ou valor não é, pelo menos, um paradigma de alguém cuja vida é significativa. Aqui é talvez algo iluminante fazer analogias com outros usos de “sentido”, pois o que está em causa tem a ver o haver ou não bases para que a vida “faça sentido”, tem a ver com ser capaz de vê-la como uma narrativa.
  5. Pace a inquietante cena do filme American Beauty em que um saco de lixo é empurrado pelo vento.
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