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Crítica
1 de Janeiro de 2010   Ética

Sentido da vida e realidade

Artur Polónio
Viver Para Quê? Ensaios sobre o Sentido da Vida
org. de Desidério Murcho
Tradução e introdução de Desidério Murcho
Lisboa: Dinalivro, 2009, 208 pp.

Poucas pessoas terão chegado à idade adulta sem, numa altura ou noutra, se terem interrogado sobre o sentido da vida. Será que a vida tem sentido? E, se o tem, qual é? Caberá a cada um dar sentido à sua própria vida, ou cabe-nos apenas descobri-lo? E se a vida não tem sentido? O que se segue daí?

No entanto, o problema do sentido da vida, escreve Desidério Murcho (“Introdução”, pp. 17, 18), nem sempre é uma interrogação filosófica genuína. Perguntarmos se a vida tem sentido quando a vida parece correr-nos mal não é necessariamente levantar uma questão filosófica: pode ser uma maneira de exprimir a nossa frustração temporária. Mal as coisas recomecem a correr-nos melhor, a interrogação eventualmente desaparecerá. Mas Tolstoi, por exemplo, interroga-se sobre o sentido da vida precisamente no momento em que parece ter todas as razões para se sentir feliz. Essa é verdadeiramente a interrogação filosófica sobre o sentido da vida.

A antologia agora organizada por Desidério Murcho põe o leitor em contacto com alguns dos mais importantes ensaios contemporâneos sobre o sentido da vida. A discussão contemporânea do tema começa, no início da década de 70 do século XX, com dois textos fundamentais: o artigo “O Absurdo”, de Thomas Nagel (originalmente publicado em The Journal of Philosophy, em 1971), e o último capítulo da obra de Richard Taylor, Good and Evil (Prometheus Books, Nova Iorque, 1970, 1994.). A estes haveria de juntar-se o registo escrito da conferência proferida por Kurt Baier, em 1957, cuja difusão aconteceu em data todavia muito posterior (The Meaning of Life: A Reader, org. por E. D. Klemke, Oxford, Oxford University Press, 2000). Em Viver para quê? Ensaios Sobre o Sentido da Vida o leitor pode encontrar, além de uma “Introdução”, da autoria do organizador, seis ensaios sobre o sentido da vida. Os autores são Richard Taylor (“O Sentido da Vida”, pp. 33–46), Kurt Baier (“O Sentido da Vida”, pp. 47–101), Thaddeus Metz (“Poderá o Propósito de Deus ser a Fonte do Sentido da Vida?”, pp. 103–138), Thomas Nagel (“O Absurdo”, pp. 139–155), Susan Wolf (“Felicidade e Sentido: Dois Aspectos da Vida Boa”, pp. 157–186) e Neil Levy (“Despromoção e Sentido na Vida”, pp. 187-205). A antologia oferece ainda uma curta, mas selectiva, lista de obras e artigos para uma leitura complementar.

Os leitores mais familiarizados com a investigação filosófica podem estranhar não encontrar em Viver Para Quê? textos de autores existencialistas, sobretudo de existencialistas ateus como Sartre ou Camus, cujas ideias sobre o sentido da vida foram amplamente popularizadas ao longo da segunda metade do século XX. Desidério Murcho justifica essa ausência, na secção “Existencialismo”, da “Introdução” (pp. 29-31), com dois argumentos independentes. Por um lado, o pensamento existencialista ateu parece aceitar involuntariamente a visão medieval do mundo, segundo a qual nenhum sentido da vida é possível sem um deus que garanta uma vida eterna. Esta perspectiva é detalhadamente analisada no ensaio de Baier incluído na antologia. Por outro lado, o aspecto mais relevante do pensamento existencialista ateu para a questão do sentido da vida é apresentado e discutido por Nagel, na parte final do seu ensaio, também incluído na antologia.

Há uma aproximação religiosa e uma aproximação filosófica ao problema do sentido da vida. Diferentes religiões fornecem respostas diferentes. Por outro lado, não é invulgar encontrarmos a crença religiosa no centro da aproximação filosófica ao problema. Mas a filosofia não é religião. Por isso, não podemos esperar encontrar na filosofia o tipo de resposta que a religião fornece. E, por isso, o leitor que procurar em Viver Para Quê? a solução definitiva do problema do sentido da vida regressará, decerto, muito decepcionado da viagem. Quem esperar da filosofia um conjunto de instruções para dar sentido à sua vida, então não compreendeu o que é a filosofia. A filosofia não fornece tal coisa. Isto porque a filosofia, como lembra Desidério Murcho,

“não é um corpo de conhecimentos que nos baste assimilar acriticamente, mas antes a actividade crítica de estudar ideias e argumentos minuciosamente, para ver se são plausíveis ou não”. (pp. 9–10)

As instruções, essas, são para assimilar de preferência acriticamente.

Além desta, outra ilusão pode ameaçar o leitor comum, não familiarizado com a discussão filosófica: a ideia de que procurar o sentido da vida é a tarefa central dos filósofos. Esta ideia, como assinala Desidério Murcho, é falsa: a maior parte dos filósofos não abordou o problema do sentido da vida; e, os que o fizeram, raramente fizeram dele o problema principal das suas investigações (“Introdução”, p. 9).

A secção “Mapa de posições”, da “Introdução”, permite-nos ganhar inteligibilidade sobre as respostas ao problema do sentido da vida. Nesse mapa conceptual, Desidério Murcho apresenta um roteiro de sete posições possíveis, a partir de algumas distinções fundamentais: a primeira é entre os que consideram o problema do sentido da vida um falso problema e os que o consideram um verdadeiro problema; uma segunda distinção separa, entre estes últimos, as respostas pessimistas das optimistas; há, porém, duas maneiras de se ser pessimista e outras tantas de se ser optimista; destas últimas, pode ser-se optimista de duas maneiras distintas: adoptando um ponto de vista religioso ou um ponto de vista naturalista.

Uma primeira posição consiste em defender que o problema do sentido da vida não é um verdadeiro problema, mas antes um pseudoproblema, uma confusão linguística ou um “erro categorial” — algo como inquirir, escreve o autor, “se as ideias tristes serão mais ou menos azuis do que as alegres” (p. 14). Assim, perguntar se a vida tem sentido é fazer uma pergunta disparatada, porque a vida não é o tipo de coisa acerca da qual se possa fazer esse tipo de pergunta.1 Esta posição, em tempos popular no círculo de influência do positivismo lógico, hoje dificilmente encontra quem a defenda: é mais difícil, escreve Desidério Murcho, defender que o problema do sentido da vida é um falso problema do que defender que temos dele uma concepção razoável e resposta para lhe dar (p. 14).

O pessimismo relativamente ao sentido da vida manifesta-se de duas maneiras possíveis: a que defende que a vida não tem objectivamente sentido, mas pode tê-lo subjectivamente (como pretendem Richard Taylor e Thomas Nagel); e a que defende que a vida não tem, nem objectiva nem subjectivamente, sentido (como pretendem Schopenhauer2 e, eventualmente, alguns existencialistas ateus).

O optimismo relativamente ao sentido da vida responde ao problema afirmando que a vida tem objectivamente sentido. Esta posição pode ser defendida quer de um ponto de vista religioso, quer de um ponto de vista naturalista. Quem se situa de um ponto de vista religioso pode argumentar (como Tolstoi3 ou Swinburne4) que a vida tem sentido porque Deus existe. Quem se situa de um ponto de vista naturalista pode argumentar que o facto de a vida ter sentido não resulta de existirem ou não deuses, mas sim de estarmos activamente envolvidos em projectos que têm, em si mesmos, sentido (como Susan Wolf ou Neil Levy); ou que mesmo a mais plausível das teorias religiosas acerca do sentido da vida, como uma versão alternativa da teoria do propósito, enfrenta dificuldades eventualmente insuperáveis (como faz Metz); ou, ainda, que a vida pode ter sentido precisamente porque Deus não existe (como defende Baier).

A compreensão do problema do sentido da vida começa com a clarificação da ideia de “sentido”. Na secção “Meios e fins”, da “Introdução”, Desidério Murcho propõe, numa estratégia tipicamente filosófica, que comecemos por pensar no que queremos dizer com “sentido” quando pensamos em actividades com sentido. Numa primeira acepção, a ideia de sentido significa adequação de meios a fins: uma actividade faz sentido se é um meio adequado para atingir um fim; isto é, se é inteligível ou racionalmente defensável, dado os fins que nos propomos atingir. Esta acepção é, porém, insuficiente; isto porque podemos afirmar, sem contradição, que uma certa actividade é um meio adequado para alcançar um dada finalidade e, simultaneamente, que a finalidade alcançada ou a alcançar não tem, em si mesma, sentido. Assim, podemos reconhecer sentido em inúmeras actividades cuja finalidade é permitir-nos viver — sem que tenhamos de reconhecer sentido na vida em si mesma. Nesta última acepção, perguntar pelo sentido de algo é inquirir acerca da sua finalidade; e, nesta acepção, perguntar pelo sentido da vida é inquirir acerca da sua finalidade.

Esta acepção de “sentido” tem sido tratada na filosofia, escreve Desidério Murcho, como “finalidade última”. Uma finalidade é dita “última” (ou “em si”) se não é ela mesma um meio para uma finalidade de ordem superior; caso contrário, será uma finalidade instrumental. Claro que uma finalidade instrumental não tem de ser meramente instrumental: podemos fazer algo instrumentalmente e, ainda assim, encontrar uma finalidade nisso mesmo que fazemos. Saber se há uma finalidade última — e, se a há, qual é; ou, no caso em que há mais do que uma, quais são e como se articulam entre si — tem sido um problema tradicional da filosofia.

Não precisamos, porém, de uma teoria acerca da finalidade última para dar inteligibilidade ao problema do sentido da vida. Na secção “Realidade e racionalidade”, afirma Desidério Murcho que podemos, intuitivamente, aceitar que uma finalidade é última (e não meramente instrumental) se é a sua própria razão de ser. Isto remete-nos, refere o autor, para uma teoria acerca da racionalidade. A racionalidade pode permitir-nos determinar os meios adequados à prossecução das nossas finalidades últimas sem que estas sejam, em si mesmas, racionais ou irracionais. Esta é a concepção de racionalidade que Hume defende. Para Hume, toda a racionalidade é meramente instrumental; isto porque usamos a razão para a determinação dos meios adequados à prossecução das nossas finalidades últimas, mas não para a determinação dessas mesmas finalidades; isto porque, do ponto de vista de Hume, a razão não tem poder motivador. Kant, ao contrário, defende que compete à razão estabelecer as finalidades últimas; isto porque, argumenta, é contraditório — e, portanto, irracional — negar os princípios morais. De um ponto de vista kantiano, uma teoria do sentido não é independente de uma teoria da racionalidade; de um ponto de vista humiano, uma teoria da racionalidade não é relevante para uma teoria do sentido. Contemporaneamente, refere Desidério Murcho, este debate prossegue com o confronto entre as posições de Thomas Nagel, que defende um ponto de vista kantiano, e de Bernard Williams, que defende um ponto de vista humiano.

Ainda na secção “Realidade e racionalidade”, Desidério Murcho examina a ligação entre o sentido da vida e a realidade. Se aceitarmos a ideia intuitiva de que uma finalidade é última se é a razão de si mesma, escreve, então podemos ser conduzidos a acreditar que a nossa felicidade é a finalidade última; isto porque se algo tem finalidade, essa finalidade parece esgotar-se na nossa felicidade, ao passo que esta não parece ser um meio para finalidade alguma. Um ponto de vista subjectivista acerca da finalidade última não estende a análise mais além. Se, porém, procurarmos alargar a reflexão à natureza da felicidade, podemos descobrir que somos agentes racionais, agindo numa realidade que não é necessariamente ou apenas nossa. E daí ser defensável o ponto de vista segundo o qual felicidade, racionalidade e realidade mantêm uma conexão forte entre si. Esta é, refere Desidério Murcho, a perspectiva partilhada por muitos clássicos, de Aristóteles a Mill, e por muitos contemporâneos, como Singer ou Susan Wolf. Mas esta é, também, uma perspectiva estranha à mentalidade individualista e subjectivista característica da nossa época.

Na secção “Valor subjectivo e valor objectivo”, da “Introdução”, Desidério Murcho oferece uma clara análise do modo como a noção de valor influencia a teorização acerca do sentido da vida. Em última análise, trata-se de saber se a nossa felicidade tem ou não valor objectivo. Aí, o autor apresenta uma concepção alternativa à concepção factualista de objectividade.

“[A] concepção factualista de objectividade (…) não só não é a única possível, como é defensavelmente um mito. Uma concepção alternativa concebe a objectividade, na ciência ou na ética, como algo que depende crucialmente da justificação e não dos factos, sejam estes o que forem”. (p. 25)

Do ponto de vista do valor, esta concepção não factualista de objectividade permite-nos compreender que a objectividade está no tipo de justificação disponível, e não na observação de factos: “um valor é objectivo quando podemos justificá-lo adequadamente e não o é quando não podemos fazê-lo” (p. 26).

Argumentar, como Tolstoi, por exemplo, que a nossa felicidade não tem valor objectivo porque o universo é indiferente quer à nossa felicidade quer à nossa infelicidade é revelar uma incompreensão crucial quanto à natureza do valor. O valor não é, esclarece Desidério Murcho, uma propriedade intrínseca das coisas, como, por exemplo, a sua composição química. O valor é uma propriedade relacional: só os agentes cognitivos são capazes de valorar. E o universo não é um agente cognitivo. Assim, argumentar que a nossa felicidade tem valor objectivo é defender que qualquer agente capaz de reconhecer valor é capaz de reconhecer o valor da nossa felicidade — tal como nós somos capazes de reconhecer o valor da felicidade de qualquer agente capaz de ser feliz. Que o universo seja incapaz de confirmar ou desmentir o valor da nossa felicidade não significa que a nossa felicidade lhe é indiferente: o universo não é um agente cognitivo; logo, não é o tipo de entidade que possa ter atitudes; logo, não pode ser indiferente nem deixar de sê-lo (pp. 26-28).

Há outra maneira de argumentar contra a ideia de que a nossa felicidade é a finalidade última da nossa vida: é defender que a nossa vida não tem valor objectivo, por ser meramente instrumental. Deste ponto de vista, a felicidade não é a finalidade última da nossa vida, uma vez que a nossa vida tem outra finalidade última: um propósito ou desígnio divino. Esta linha de argumentação é, na opinião de Desidério Murcho, uma maneira “defensavelmente deficiente de compreender o valor objectivo da nossa vida” (p. 28). “Se”, argumenta,

“a nossa vida for um mero instrumento para uma certa finalidade, tal finalidade só pode dar valor à nossa vida se tiver valor em si. Mas que outra finalidade poderá ter um valor que a nossa felicidade não possa ter?” (p. 28).

Ainda que possamos discordar acerca de quais são os valores objectivos, há duas ideias com que todos podemos concordar: uma é que não é necessariamente o cultivo de valores esotéricos que pode dar sentido às nossas vidas; a outra é que não podemos razoavelmente esperar da filosofia que nos forneça a solução do problema: o que podemos esperar da filosofia é que nos permita discutir criticamente qualquer solução possível do problema.

No seu ensaio sobre o sentido da vida, Richard Taylor defende uma resposta subjectivista ao problema do sentido da vida: a vida não tem, objectivamente, sentido; mas, se somos felizes e estamos imersos na própria vida, então a nossa vida tem sentido para nós. O ponto de vista de Taylor é comum entre as pessoas que não têm fortes convicções religiosas e desconhecem a discussão contemporânea sobre o sentido da vida. Além disso, é um ponto de vista que pode ser partilhado por todos os que acreditam que os valores são relativos ou subjectivos.

No seu extenso e detalhado ensaio “O Sentido da Vida”, Kurt Baier defende a proposição de que se a vida tem sentido, então Deus não existe. O autor apresenta um excelente estudo sobre a natureza das explicações, procurando clarificar a célebre pergunta de Leibniz: “Por que existe algo e não o nada?” Baier começa por defender que a nossa concepção do problema do sentido da vida é fortemente influenciada pela mundividência medieval judaico-cristã, de acordo com a qual a nossa vida terrena é meramente instrumental para a nossa vida eterna. Se juntarmos a descrença na existência de Deus a essa mundividência, então chegaremos à crença de que se Deus não existe, a vida não faz sentido. (Muitos autores existencialistas ateus parecem aceitar esta crença.) Se, porém, abandonarmos a concepção medieval de sentido, então a inexistência de Deus é irrelevante para o sentido da vida. Baier conclui com a defesa da ideia que só se Deus não existir é que a vida pode ter sentido:

“A avaliação cristã das vidas terrenas é insensata, escreve, porque adopta um padrão injustificadamente alto. (…) Mesmo que fosse verdade que temos à nossa disposição uma vida depois da morte, imaculada e perfeita, não seria legítimo ajuizar as vidas terrenas por este padrão”. (pp. 96-97)

Metz parte da consideração do que chama “a teoria do propósito”. De acordo com a teoria do propósito, uma relação adequada a ter com Deus é cumprir o Seu propósito. O autor empreende a discussão dos argumentos principais contra a teoria do propósito, nomeadamente os de Baier, com a finalidade de apresentar um caso mais sólido contra ela. Em seguida, propõe uma teoria alternativa do sentido da vida centrada em Deus, concebida de modo a evitar as dificuldades da teoria do propósito. Conclui, porém, que mesmo uma teoria alternativa à teoria do propósito enfrenta grandes dificuldades, não obstante ser, do seu ponto de vista, a mais plausível.

O texto de Nagel é, do meu ponto de vista, o que mais contribuiu para relançar a discussão contemporânea sobre o sentido da vida. Na primeira parte do seu ensaio, Nagel refuta incisivamente dois argumentos muito popularizados a favor da ideia de que a vida não tem sentido: chamemos-lhes “o argumento da insignificância” e “o argumento da efemeridade”. O primeiro procura estabelecer que a vida não tem sentido porque somos seres minúsculos, habitando um planeta minúsculo, perdido num vastíssimo universo. Se a nossa vida não tem sentido por sermos minúsculos, argumenta Nagel, não se percebe que diferença faria, para o sentido da vida, que fôssemos muitíssimos maiores — ou o universo muitíssimo mais pequeno. O segundo procura estabelecer que a vida não tem sentido porque somos efémeros, e nada do que façamos hoje terá importância daqui a um milhão de anos. Nagel responde que se nada do que fazemos hoje terá importância daqui a um milhão de anos, então também não tem importância hoje que nada do que fazemos hoje não tenha importância daqui a um milhão de anos. Na segunda parte do seu ensaio, Nagel defende que o sentimento de que a vida é absurda — correcto, do seu ponto de vista — surge porque temos a capacidade de observar a nossa vida de um ponto de vista exterior. Quando observamos a nossa vida do exterior, damos conta de que as coisas a que nos entregamos seriamente (aquilo a que chamamos “viver a nossa vida”), e não podemos deixar de valorizar subjectivamente, são objectivamente arbitrárias e sem valor.

“As coisas que fazemos ou queremos sem razões, e sem que exijam razões, escreve, (…) são os pontos de partida do nosso cepticismo. Vemo-nos a partir do exterior; e toda a contingência e especificidade dos nossos objectivos e ocupações tornam-se claras. Contudo, quando adoptamos essa perspectiva e reconhecemos a arbitrariedade do que fazemos, isso não nos descompromete com a vida, e nisso repousa o nosso absurdo: não no facto de se poder ter essa perspectiva externa de nós mesmos, mas no facto de nós próprios a podermos ter, sem deixarmos de ser as pessoas cujos cuidados últimos são tão friamente encarados” (p. 145).

Na segunda parte do seu ensaio, Nagel refuta a posição de Camus, segundo a qual a solução para o absurdo da vida seria um orgulhoso desdém. Isso, diz Nagel, revela uma “incapacidade para ver a irrelevância cósmica” da situação:

“Se sub specie aeternitate não há razão para acreditar que alguma coisa importa, então isso também não importa, e podemos abordar as nossas vidas absurdas com ironia em vez de heroísmo ou desespero” (p. 155).

Wolf defende uma concepção objectivista e naturalista do sentido da vida que depende de uma concepção objectivista do valor. Do seu ponto de vista, há uma ligação entre a felicidade e o sentido da vida, objectivamente concebido: se não existissem valores objectivos, a vida não poderia ter sentido. Se nos entregamos activamente a projectos de valor, defende, então a nossa vida tem sentido.

O ensaio de Neil Levy é o mais recente dos incluídos nesta antologia. O autor procura resolver um problema que fica, aparentemente, em aberto no ensaio de Wolf: se a nossa vida tem sentido quando nos entregamos activamente a projectos de valor, o que acontece à nossa vida quando atingimos os objectivos de tais projectos? Levy argumenta que a nossa vida tem sentido, uma vez que há projectos “constitutivamente abertos”, que dão à nossa vida um sentido que não cessa. O autor usa o conceito de “sentido superlativo” para referir o sentido que a nossa vida ganha com a entrega a esse tipo de projectos. Levy, citando Gregg Easterbrook, observa que o facto de sermos ricos e estarmos a ficar mais ricos não aumentou a nossa felicidade. Por essa razão, muitas pessoas estão a trocar a satisfação obtida com os confortos materiais pela satisfação obtida com o envolvimento em actividades com sentido. É a esta troca de proventos por tempo (para se dedicarem a bens que consideram intrinsecamente valiosos) que o autor chama “despromoção”. Esta estratégia pode, porém, ser defensavelmente uma má ideia. Como escreve Levy,

“O sentido encontra-se, como reconhece quem se despromove, em muitos aspectos da vida humana. A sua estratégia (…) é muitas vezes bem-sucedida em assegurar o que poderíamos chamar sentido comum. Mas o sentido superlativo não se encontra no abandono do mundo do trabalho, concebido como uma entrega que requer grande esforço a práticas difíceis. Pelo contrário, só no trabalho, de tipo adequado e com a estrutura adequada, é que se encontra o sentido superlativo” (p. 205).

Se o leitor pretende usar esta pequena mas excelente antologia na leccionação do programa de Filosofia do 10.º ou do 11.º anos de escolaridade, terá de fazer prova de alguma versatilidade. Não por defeito do livro, decerto, onde a filosofia surge no seu melhor — mas antes porque, no programa de Filosofia, não há muita filosofia que leccionar.

Ainda assim, e dada a ligação que parece haver entre os problemas do sentido da vida, do valor e da crença religiosa, é possível encontrar lugar para ao menos alguns dos ensaios agora publicados nas rubricas “A religião e o sentido da existência5 — a experiência da finitude e a abertura à transcendência”, opção do 10.º ano de escolaridade; e, talvez, na “Unidade final — Desafios e horizontes da Filosofia: 3.1. Finitude e temporalidade — a tarefa de se ser no mundo”, opção do 11.º ano de escolaridade.6 Afirmo isto tendo em mente, para a opção do 10.º ano, além da “Introdução”, da autoria do organizador, o ensaio de Richard Taylor, “O Sentido da Vida”, onde muitos estudantes decerto encontrarão eco dos seus próprios pontos de vista, e que vale a pena confrontar com as posições de Kurt Baier e Thaddeus Metz e, ainda, com o incontornável artigo de Thomas Nagel, “O Absurdo”. Para a opção do 11.º ano, Kurt Baier e Thaddeus Metz poderão dar o lugar a Susan Wolf e a Neil Levy, respectivamente.

Artur Polónio

Notas

  1. Ver Bertrand Russell, 1961, Religion and Science, “Science and Ethics”, Oxford, Oxford University Press.
  2. Ver Schopenauer, 1818, O Mundo como Vontade e Representação, Livro IV, São Paulo, UNESP, 2007.
  3. Ver Leon Tolstoy, 1892, Confession, New York and London, W. W. Norton, 1983.
  4. Ver Richard Swinburne, 1996, Is There a God?, Oxford, Oxford University Press, (trad. port. Desidério Murcho, Ana Cristina Domingues e Miguel Fonseca, Será que Deus existe?, Lisboa, Gradiva, 1998).
  5. O problema do sentido da existência não é, em rigor, o problema do sentido da vida. Podia existir o Universo, e nele um número imenso de coisas, ainda que nele não existisse vida ou vida inteligente — e, a acreditar na melhor ciência disponível, durante muito tempo assim foi. Quem entender que o problema da existência é correctamente formulado na pergunta de Leibniz, “Por que há algo e não o nada?”, tem no extenso mas detalhado ensaio de Kurt Baier, publicado na presente antologia sob o título “O Sentido da Vida”, pp. 47–101, um texto de referência.
  6. Ver Programa de Filosofia, 10.º e 11.º anos, Ministério da Educação, Departamento do Ensino Secundário, Fevereiro de 2001, pp. 11–13, 30 e 35. Para o 11.º Ano, ver especialmente “A — Percurso de aprendizagens: 3. (…) Deve incidir-se sobre a dimensão pessoal do dar sentido à sua vida e sobre a contextualização colectiva, histórica e ontológica dessa decisão”, (sic) p. 35, itálico meu.
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