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25 de Julho de 2017   Filosofia

Acerca do que há de comum nos jogos

Lucas Miotto e Vitor Guerreiro

Via de regra, quando traçamos a história de um problema filosófico, constatamos um enorme desacordo entre os filósofos. A natureza dos jogos, contudo, é um problema filosófico com uma história um tanto peculiar: o desacordo é a exceção. Sem dúvida, um dos principais fatores que contribui para isso é a influência de Wittgenstein e da sua tese sobre a impossibilidade de dar uma definição em termos de condições necessárias e suficientes para os jogos. Wittgenstein pensa que se nos perguntarmos “O que há de comum a todos os jogos?” a resposta apropriada será “Nada!”; há apenas um conjunto de semelhanças cruzadas entre diferentes espécies de jogos:

O que há de comum a todos? Não responda: “Tem de haver algo comum, ou não se chamariam “jogos”” — mas olhe e veja se há algo comum a todos — Pois se os olhar não verá algo comum a todos, mas semelhanças, relações e ainda por cima uma série delas. Reiterando: não pense, mas olhe! — Olhe por exemplo para os jogos de tabuleiro, com as suas diversas relações. Agora passe para os jogos de cartas; aqui encontra muitas correspondências com o primeiro grupo, mas muitas características comuns desaparecem e outras aparecem. Quando passamos em seguida para os jogos de bola, muito do que é comum mantém-se, mas muito se perde. (§66)

Wittgenstein não estava particularmente interessado na ontologia dos jogos (em parte porque não estava particularmente interessado na ontologia de coisa alguma). Os jogos figuram apenas como um exemplo para defender uma concepção mais geral sobre as definições de conceitos, nomeadamente a tese segundo a qual as definições devem ser feitas apontando uma série intricada de semelhanças — a qual Wittgenstein batizou de “semelhanças de família”. No entanto, seria um erro pensar que a tese de Wittgenstein é neutra acerca da ontologia dos jogos. Ao pedir para que olhemos para os jogos, Wittgenstein sugere não haver qualquer indício que nos leve a concluir que os jogos são o tipo de coisa que tem propriedades essenciais individuadoras. É justamente em virtude disso, crê Wittgenstein, que está condenada ao fracasso qualquer tentativa de dar uma definição nos moldes tradicionais — por meio de condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes. Ou seja, a tese de Wittgenstein sobre as definições depende de uma tese acerca da ontologia de fenômenos como os jogos, nomeadamente, a tese de que os jogos são o tipo de coisa que não tem propriedades essenciais individuadoras.

Wittgenstein, porém, é radical ao ponto de estender a sua conclusão acerca da impossibilidade de definir o conceito de jogo a outros conceitos, como o de número. Apesar de alguns filósofos o terem seguido nessa empreitada mais radical, a grande maioria dos filósofos aceitou apenas a sua conclusão acerca dos jogos e as implicações ontológicas que ela acarreta (nesse respeito tomaram a palavra de Wittgenstein como definitiva). No entanto, o grande acordo entre os filósofos que, à primeira vista, pode indicar um sinal de progresso filosófico, é vista por uma minoria como uma atitude apressada e irrefletida, ou pelo menos como suscetível de desafio, não sendo, de modo algum, a última palavra acerca do assunto.

Os artigos de Bernard Suits e Jim Stone partilham essa ideia. Ambos rejeitam o convite de Wittgenstein para não pensarmos sobre o conceito de jogo (e sobre as realidades que o uso de tais conceitos abrange) e tentam mostrar que, se pensarmos cuidadosamente, talvez possamos encontrar algo de significativo que todos os jogos partilham entre si. Afinal, parece estranho que olhar e ver seja um bom meio para investigar a natureza última dos jogos, posto que a sua natureza é um problema metafísico e não um problema empírico.

O primeiro texto, “O que é um Jogo?”, de Bernard Suits, tem como finalidade definir em que consiste jogar um jogo. Obviamente que, ao definir o que seja jogar um jogo, Suits traça considerações sobre as propriedades dos jogos. Talvez o aspecto mais importante da definição de Suits seja a ideia de que os jogos são atividades regidas por regras. Os jogos são regidos por regras em dois sentidos relevantes: as regras restringem os meios possíveis para a realização da atividade proposta, e o estabelecimento dessas regras torna possível a própria atividade de jogar um jogo. Por exemplo, as regras do futebol restringem os meios pelos quais os participantes podem levar a bola à rede (um exemplo do que Suits virá a chamar fim prelusório): eles só podem conduzi-la com certas partes do corpo, por um período determinado e sem o uso excessivo de violência (entre outras restrições). Mas essas regras também tornam possível a atividade de jogar futebol; elas constituem o futebol. Dito de outro modo, não há primeiro uma ação independente de jogar futebol, à qual depois adicionamos as regras do futebol como algo exterior, cujo fim seria introduzir alguma ordem, como ocorre com as regras de trânsito, as quais regulam uma atividade que pode existir na ausência dessas regras. Finalmente, a definição de Suits especifica que a única razão para aceitar a limitação que as regras impõem à atividade é precisamente a de tornar possível a atividade em causa.

Posteriormente, Suits veio a modificar este artigo para o converter no Capítulo 3 da sua obra A Cigarra Filosófica: A Vida é um Jogo?, um livro de 1978, inspirado na fábula de Ésopo sobre a cigarra e a formiga (mas invertendo as coisas, de modo que a Cigarra é a heroína da história), onde se defende que o propósito último da vida consiste em jogar jogos, a única atividade com valor genuinamente intrínseco, sendo a definição de jogar um jogo uma componente essencial dessa tese. Para Suits, a ação de jogar um jogo exibe três características essenciais:

  1. A presença de um fim prelusório, que se procura alcançar seguindo regras, as quais constituem
  2. os meios lusórios, cujo propósito é o de tornar a atividade possível, e
  3. a atitude lusória ou a aceitação das regras, por parte dos jogadores, tendo em vista tornar a atividade possível.

Em tom jocoso, Suits dá-nos uma definição resumida: jogar um jogo consiste “num esforço voluntário para superar obstáculos desnecessários”.

No segundo texto, “Jogos e Semelhanças de Família”, Jim Stone oferece uma definição de jogo que supre alguns aspectos da definição apresentada por Suits. Queremos com isto dizer que ambas as definições são mutuamente compatíveis, cada uma delas explorando mais a fundo um certo aspecto da ação de jogar um jogo, em vez de definições rivais, que procurassem definir o mesmo objeto apontando diferentes características essenciais. Incidentalmente, Stone também defende que os jogos são atividades regidas e constituídas por regras. Além disso, todos os jogos, segundo Stone, contêm um estado de sucesso que é definido por uma regra arbitrária. Um aspecto importante da sua definição é que o estado de sucesso é um estado de sucesso em virtude de ser definido por uma regra arbitrária e não em razão de outra propriedade. Ou seja, um gol é um estado de sucesso no futebol em razão de uma regra arbitrária o caracterizar como tal, e não em virtude de o ato de a bola entrar na baliza ter só por si alguma propriedade que o faz ser considerado um estado de sucesso. Ou seja, nenhum estado de sucesso num jogo é intrinsecamente um estado de sucesso num jogo.

Outro elemento que Stone inclui na definição de jogo é o fato de os jogos serem geralmente destinados à recreação ou ao exercício de capacidades físicas ou mentais dos participantes. Esse elemento é importante, pois torna a definição de Stone ao menos em princípio resistente à objeção de que há instituições ou práticas sociais que não são jogos e no entanto são constituídas por regras e têm um estado de sucesso definido por uma regra arbitrária. Para ver isto podemos imaginar duas tribos, a tribo A e a tribo B, sendo que ambas elegem um líder de acordo com um certo processo. Na A alguém conta como líder se realizar uma tarefa especificada por outra autoridade. Na B alguém conta como líder se for eleito pelos restantes membros da tribo segundo um processo que por sua vez contém diferentes restrições arbitrárias que também estabelecem modos de ser bem-sucedido no processo. Embora nos possamos referir a estas atividades não-lúdicas algo metaforicamente como “jogos” (e.g., o “jogo da política”), há ainda assim uma diferença crucial entre estas atividades e os jogos. Tanto Suits como Stone nos dão razões para esta diferença. O primeiro, salienta que nos jogos a única razão para aceitar as restrições dos meios pelas regras é tornar a atividade possível. O segundo nos diz que os jogos têm tipicamente o exercício recreativo de capacidades físicas ou cognitivas como fim.

Repare-se no contraste entre jogos e outras atividades sociais regidas por regras, com estados de sucesso arbitrário. Estas últimas tipicamente têm como finalidade afetar o mundo exterior de modos que não estão necessariamente presentes no ato de jogar jogos. Como bem sugerido por Stone, pode-se jogar xadrez como um meio de decidir disputas judiciais, mas o xadrez não tem de ter esta função para ser um jogo nem para ser o jogo que é. Contrariamente, o modo como permitem afetar o mundo ou criar poder é algo essencial ao tipo de atividade constitui as categorias sociais e institucionais — como o dinheiro, as fronteiras territoriais, ou a eleição de um líder. Em outras palavras, estas atividades não-lúdicas são essencialmente instrumentais, ao passo que nos jogos o próprio ato de jogar é um fim último (ou, na linguagem mais tarde adoptada por Suits em A Cigarra Filosófica, são atividades para as quais a atitude lusória é essencial). Daqui também se segue o fato curioso de que a presença da atitude lusória pode determinar que para um dado participante, uma atividade social não-lúdica, regida por regras, com um estado de sucesso arbitrário, etc., pode ser um jogo, ainda que não o seja para a maioria dos participantes. No fundo, o que isto significa é que a mesma atividade pode ser ou não um jogo, conforme removamos ou introduzamos a atitude lusória. Mas isto não altera o fato de que a conjunção das três características (fim prelusório, meios lusórios e atitude lusória) constitui a essência de jogar um jogo.

Há uma relação interessante, para a qual devemos chamar a atenção, entre as definições propostas por Suits e Stone e a caracterização proposta por Searle acerca da forma assumida pelas regras constitutivas de fatos institucionais: X (um objecto, pessoa ou ação) conta como Y (uma função estatutiva realizada pelo item anterior) em C (um contexto que torna possível a realização da função pelo item) — onde contar como Y em C confere a X um estatuto, e propriedades em virtude desse estatuto, que X jamais poderia ter ou realizar somente em função das suas propriedades intrínsecas, físicas ou estruturais. Tomando Stone como exemplo, os jogos têm ao menos as seguintes duas características: são práticas regidas por regras e contêm um estado de sucesso definido por uma regra arbitrária. Essa regra arbitrária, por sua vez, assume a forma de uma regra constitutiva. No caso do xadrez, uma determinada configuração das peças conta como um cheque-mate no contexto das regras do xadrez, mas nenhuma propriedade intrínseca dessa configuração de peças a faz ser um estado de sucesso no xadrez. Ao invés, é um estado de sucesso porque a regra assim estipula. As coisas podiam ser diferentes (outra configuração de peças, ou disjunção de configurações, podia contar como estado de sucesso). Além disso, cada uma das regras do xadrez — das regras do movimentos dos peões até as regras que determinam a posição das peças, também têm essa forma. A relevância disso é que essa forma salienta o fato de as regras não só regularem a atividade, mas também (talvez parcialmente) a constituírem.

É importante (ou pelo menos interessante) notar que a forma de uma declaração de função estatutiva (status function declaration), como descrita por Searle, permite fazer uma distinção clara entre dois tipos de definição a que em filosofia da arte se tornou habitual chamar definições funcionalistas e definições procedimentalistas (acerca destes tipos de definição, ver os artigos de Stephen Davies e George Dickie). Resumindo, podemos dizer que a forma de uma definição funcionalista é a seguinte: X é Y se realiza ou foi intencionalmente feito para realizar a função F. Assim, as diversas teorias funcionalistas tradicionais da arte procedem do seguinte modo: identificam uma ou mais funções próprias da arte e definem obra de arte como aquilo que realiza (ou pelo menos deve realizar) a função identificada. Por seu lado, as definições procedimentalistas seguem a forma indicada por Searle para a regra que permite gerar fatos institucionais: um certo urinol (X) conta como arte (Y) no contexto do mundo da arte do século XX (C). O que faz a definição ser procedimentalista é que há um procedimento a que o objeto é sujeito para adquirir o estatuto (nem todos os urinóis são obras de arte). Embora esta taxonomia de definições surja na filosofia da arte, é evidente que a arte não é o único tipo de coisa susceptível deste tipo de definições. Diversos tipos de artefatos que não são obras de arte, por exemplo, terão definições funcionais, ao passo que as definições procedimentalistas se aplicam, evidentemente, a casos claros de fatos ou entidades institucionais. Por exemplo, duas pessoas (X) contam como casadas (Y) no contexto apropriado (C).

Se agora aplicarmos isto aos jogos, vemos que, embora as regras que tornam possível as atividades que são jogos sejam regras deste tipo (constitutivas, i.e., não só regulam como tornam possível a própria atividade), o estatuto de jogo não é como o estatuto de arte numa definição procedimentalista de arte, ou seja, nada é um jogo meramente em virtude de ser considerado um jogo num dado contexto. Por outras palavras, não há algo como um mundo dos jogos, em que uma atividade passa a ser um jogo por lhe ser reconhecido esse estatuto pelos membros daquele mundo, num dado contexto. Assim, temos o resultado curioso de que, embora os jogos sejam artefatos funcional-estatutivos e a sua “estrutura lógica” replique em muitos aspectos o funcionamento da realidade institucional, a definição de jogo não é em si mesma procedimentalista, mas parece mais uma definição funcionalista: para ser um jogo, uma atividade tem de satisfazer os critérios de ser tornada possível em virtude de regras constitutivas, uma dessas regras especificar um estado de sucesso arbitrário (que podia ser diferente), e ser tipicamente realizada para exercitar recreativamente capacidades físicas e cognitivas. A ideia é que temos essa “estrutura” que torna os jogos possíveis, e criamos esse tipo de atividades para suprir uma necessidade ou função. Assim, parece que a fórmula “X é um jogo se e somente se tem a estrutura E e realiza a função F” é a mais adequada. Já a definição de um jogo particular, por exemplo, o xadrez, não terá esta forma, pois as propriedades individuadoras do xadrez são as suas regras constitutivas e as variações reconhecidas de algumas dessas regras. Assim, a definição de ser o jogo de xadrez difere da definição de ser um jogo, na medida em que a primeira se ajusta à definição procedimentalista de que falamos. Por exemplo, o jogo de xadrez podia ser diferente, com algumas variações nas suas regras constitutivas e estado de sucesso. O que conta como regra no xadrez ou como estado de sucesso no xadrez é inteiramente procedimental, pelo que ser o jogo de xadrez é também um conceito procedimental ou institucional. Dito isto, há também condições que o elemento X tem de satisfazer: a variação não pode ser tal que qualquer outro jogo podia ser o jogo de xadrez, tal como outras entidades institucionais têm certos limites — nada que não possa funcionar como meio de troca poderia contar como dinheiro, por exemplo.

Se as definições de Suits e Stone são bem-sucedidas ou não, cabe ao leitor decidir. No entanto, ambos os artigos dão ótimos indícios de que, ao contrário do que pensava Wittgenstein e os seus seguidores, refletir sobre a natureza dos jogos pode ser profícuo, inclusive para áreas não imediata ou obviamente ligadas aos jogos, como é o caso das atividades artísticas e das atividades realizadas por membros das instituições jurídicas (por exemplo, até que ponto poderíamos descrever a atividade de um artista ou a de um advogado como o jogar de um jogo? Saber por que sim ou por que não pode iluminar aspectos dessas atividades a que não tínhamos anteriormente dado muita atenção).

Assim, aos leitores simpáticos à perspectiva de Wittgenstein, convidamo-los a olhar, ver e sobretudo pensar sobre os artigos de Suits e Stone.

Lucas Miotto e Vitor Guerreiro

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ISSN 1749-8457