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Crítica
11 de Janeiro de 2017   Filosofia política

As ceroulas do Mangas

Artur Polónio
Liberdade de Expressão: Uma Breve Introdução
De Nigel Warburton
Tradução de Vítor Guerreiro
Lisboa, Gradiva, 2015, 129 pp.

O Mangas considerava-se um homem de bem. Naquela manhã, porém, ao sair de casa, sentiu o chão fugir-lhe por baixo dos pés: ao correr da parede, até aí imaculada, um graffiti anunciava: “O Mangas usa ceroulas”. Por baixo: “Almeida Trigueiros”.

Indignado, chamou a Polícia.

Inspeccionado o local, o Inspector Mill, trocando um sinal discreto com a Detective McElroy, passou reflectidamente a mão pelo queixo.

— Lamento — disse, por fim —, mas nada posso fazer.

— Como assim? — retorquiu o Mangas, estupefacto. — Não vê que a minha propriedade foi danificada?

— Isso não é certo — respondeu McElroy. — Até pode ter sido melhorada! O graffiti é uma forma de arte, e devemos proteger a liberdade de expressão artística. A arte deve gozar de protecção especial. E pode ter relevância cognitiva!

— Qual arte, qual protecção especial, qual relevância cognitiva, senhora!… É um dano, é o que é! Para já não falar do abalo psicológico que sofri…

Correcto, o Inspector Mill abanou a cabeça, num meio-sorriso:

— Calma, meu caro amigo! O dano psicológico não conta. Teríamos lá mãos a medir se toda a gente que alega ter sofrido danos psicológicos pudesse reclamar a intervenção da lei!…

— Sem contar — prosseguiu o Mangas, já imparável, o dedo indignado em riste, — que é uma falsidade: eu não uso ceroulas, nem nunca usei!

Pacientemente, o Inspector encolheu os ombros:

— Quanto a isso, o mais que posso fazer é sugerir-lhe que convide o autor da pintura a discutir publicamente o assunto. Se vier a provar-se que o homem está errado, sempre teremos ganhado alguma coisa: teremos uma justificação mais forte para acreditar na verdade.

Este diálogo imaginário levanta algumas questões básicas acerca da liberdade de expressão. Estaremos moralmente obrigados a proteger a liberdade de expressão? A do pornógrafo, a do banal delinquente, a do traficante de ideias falsas? Se sim, até onde? Teremos boas razões para a limitar? Se é o caso, quais serão? Se não, porquê? (Ver, a propósito, o artigo “Liberdade de Expressão”, de Pedro Madeira.)

Ao menos à primeira vista, todos temos interesse em que nos seja permitido exprimir-nos livremente, bem como em ter livremente acesso às opiniões alheias. Por isso, dizer “Sou a favor da liberdade de expressão”, refere Warburton, não é particularmente informativo; mas certamente não significa “Sou a favor da liberdade de expressão em todas e quaisquer circunstâncias”. Se a liberdade de expressão não tiver limites, pode ter custos superiores aos benefícios e produzir mais infelicidade do que felicidade. De um ponto de vista utilitarista, esta é a linha vermelha moral.

“A livre expressão”, escreve o autor, “é particularmente valiosa numa sociedade democrática. Numa democracia, os eleitores têm interesse em escutar e contestar uma grande diversidade de opiniões e ter acesso a factos e interpretações, bem como a perspectivas contrastantes, mesmo quando acreditam que as perspectivas expressas são política, moral ou pessoalmente ofensivas” (p. 11). Porém, e por muito forte que seja o nosso compromisso com a liberdade, poucos de nós estarão na disposição de subscrever os pontos de vista dos agentes da autoridade que figuram na fábula.

Em Liberdade de Expressão: Uma Breve Introdução, Nigel Warburton ocupa-se do problema da justificação moral das leis que regulam a liberdade expressão: “o meu objectivo”, escreve, “é oferecer uma perspectiva crítica dos argumentos acerca da liberdade de expressão, do seu valor e limites” (p. 10).

No capítulo 1, o autor esclarece a ideia de liberdade de expressão, recorrendo a dois textos clássicos: a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América e o artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, das Nações Unidas.

O capítulo 2 apresenta a defesa liberal clássica da liberdade de expressão — fundamentada no Princípio do Dano, de Mill —, discutindo os argumentos já por Mill oferecidos em Sobre a Liberdade (Edições 70, 2006): o argumento da falibilidade, o argumento do dogma morto e o argumento da verdade parcial.

O capítulo 3 centra-se na questão da ofensa, debatendo em particular a ideia de que os crentes devem gozar de protecção especial contra a ofensa. “Mill”, lembra Warburton, “foi explícito quanto ao incitamento à violência ser o ponto para lá do qual se torna apropriado intervir no sentido de restringir a liberdade de expressão. O mero ofender não nos dá razões suficientes para intervir”. Muitas pessoas, porém, podem sentir-se ofendidas com a expressão de certas opiniões ao ponto de responderem à ofensa com violência. Os exemplos disponíveis são inúmeros. Será do interesse da humanidade que quaisquer crenças ou práticas possam ser livremente contestadas, quando não abertamente ridicularizadas? A história parece mostrar que a liberdade de criticar publicamente esta ou aquela crença — política, filosófica, científica ou outra — tem representado um benefício efectivo para a humanidade; mas daí não se segue que estejamos moralmente justificados em permitir que todas as crenças possam ser livremente submetidas à contestação ou à crítica — ou ao ridículo. Neste aspecto, a crença religiosa tem inspirado especialmente o debate: sendo esta crença o núcleo da vida humana, argumentam alguns, não será do interesse da humanidade oferecer-lhe protecção especial contra a ofensa? Não teremos mais a perder do que a ganhar com a livre expressão da blasfémia? Ainda assim, argumentam outros, se temos absolutamente de criticar crenças religiosas, ao menos que sejamos polidos na expressão das críticas! Mas como decidimos se estamos a sê-lo? E não estaria a limitar ilegitimamente a liberdade de expressão o legislador que obrigasse o crítico a ser polido e ter boas maneiras? O riso, pensava Eça de Queirós, é a suprema forma de crítica: crenças que resistem ao martírio podem sucumbir perante a gargalhada. Mas a gargalhada é rude e pode ser cruel…

O capítulo 4 apresenta o problema da censura à pornografia, discutindo os principais argumentos a favor e contra a censura, bem como a questão de decidir se a pornografia deve ou não ser considerada arte — e se, consequentemente, deve ou não gozar de protecção especial. Obras como Lolita, de Vladimir Nabokov, ou O Amante de Lady Chaterley, de D. H. Lawrence, geralmente tidas por obras de arte, não escaparam à censura, e foram frequentemente consideradas obscenas. Devem ser banidas? Devem ter a circulação limitada? Em todo o caso, uma coisa é banir ou limitar a circulação de uma obra impressa em papel, outra é fazê-lo a um qualquer conteúdo disponível na web; uma coisa é controlar livrarias ou tipografias, outra é controlar os Internet Service Providers…

O capítulo 5 considera justamente o problema da liberdade de expressão tendo em conta o surgimento relativamente recente da Internet e o modo como mudou as nossas vidas, levantando a questão do paternalismo com as crianças e a da propriedade intelectual. Devemos impedir as crianças de ter acesso a sítios da web que defendem abertamente a anorexia, que encorajam o causar dano a si próprio ou que divulgam pornografia? E, ainda que devamos fazê-lo, como o faríamos? Um problema idêntico é levantado pelo uso irrestrito da liberdade de interferir com — ou de se apropriar de — palavras e textos disponíveis na web. Se qualquer pessoa, a qualquer momento, puder alterar livremente um texto, quem é o autor do texto? Como impedir que a livre expressão colida com a propriedade intelectual?

Numa breve conclusão, Warburton especula acerca do futuro da liberdade de expressão. Na opinião do autor, este “é incerto. (…) Na Grã-Bretanha, a recente prontidão do governo em sacrificar a liberdade de expressão em prol de outros valores como a segurança e a sensibilidade religiosa à ofensa é um sinal preocupante. É um indício de que os argumentos acerca do valor que uma ampla liberdade de expressão tem para a legitimidade da democracia bem como para a liberdade individual não têm tido grande peso para quem exerce o poder” (p. 113). Facilmente dispostos a censurar, os governantes contemporâneos parecem optar, de maneira informada ou não, por Platão contra Sócrates: do ponto de vista de Platão, o que quer que ameace a compreensão da realidade ou disponha à corrupção deve ser banido; Sócrates, esse, preferiu morrer a viver uma vida em que há assuntos imunes ao livre exame.

Além de um texto claro e de uma exposição inteligente, o livro de Warburton indica bibliografia extensa sobre a liberdade de expressão e os problemas que levanta — os clássicos e os recentes. As pessoas dadas à reflexão encontrarão nele uma interessante introdução ao assunto.

Artur Polónio

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ISSN 1749-8457