Para a maior parte das pessoas, a pergunta “por que ser bom?”, distinta do ato de simplesmente obedecer à lei, é simples: Deus ordena que sejamos bons, porque a Bíblia assim exige, porque as pessoas boas vão para o céu e as más vão para o inferno. A grande maioria deriva sua moralidade da religião, o que não significa dizer que todas as pessoas religiosas sejam morais, ou de bom caráter; longe disso. Mas é fácil entender por que uma pessoa que acredita em um Deus que recompensa e pune deseja ajustar sua conduta aos mandamentos divinos. Uma análise de custo-benefício deveria ser suficiente para persuadir qualquer pessoa crédula de que o custo eterno do inferno pesa mais que qualquer benefício terreno derivado de incorrer na ira de um Deus onipotente e onisciente.
Mesmo os céticos poderiam estar inclinados a eliminar a dúvida em favor da obediência às ordens religiosas. Pascal asseverou, há mais de trezentos anos: “Você tem de apostar. Não é opcional. Você já está envolvido. Vamos pesar o ganho e a perda de apostar na existência de Deus. Façamos uma estimativa destas duas alternativas. Se ganhar, você ganha tudo. Se perder, não perde nada. Aposte, então, sem hesitação, que Ele existe”.
Eu sempre considerei a “Aposta de Pascal” questionável. Se há lucro advindo da crença em Deus, então é preferível um agnóstico honesto a um hipócrita calculista. Professar a fé numa análise custo-benefício significa banalizar a religião. Considere, por exemplo, a decisão de Thomas More de preferir a execução terrena à condenação eterna. Quando o rei dá uma ordem e Deus outra, um crente não tem escolha. More teria, supostamente, se manifestado do seguinte modo: “Este ato do Parlamento é como uma espada com dois gumes, porque se um homem responder de determinado modo, ele comprometerá sua alma; e se responder de outro modo, comprometerá seu corpo”.
More seguiu a ordem de Deus e desistiu de sua vida na terra pela promessa de salvação eterna. Por seu martírio — sua bondade —, ele conquistou um lugar de honra entre os santos. Eu realmente nunca entendi porque as pessoas que acreditam firmemente estarem fazendo a vontade de Deus são respeitadas como “boas”, até mesmo “heróicas”. Para eles, a escolha é uma tática que serve a seus melhores interesses, uma simples conseqüência de uma análise custo-benefício. Thomas More parece ter entendido isso muito melhor que aqueles que o têm reverenciado ao longo dos séculos.
Para uma pessoa que acredita que a alma vive para sempre e o corpo é simplesmente temporário, é uma questão simples escolher o fio da espada que cortará a vida terrena, mas perservará a alma. O Paraíso e o Inferno são para sempre, enquanto a vida na terra, especialmente para um homem da idade de More, dura apenas uns poucos anos. Conseqüentemente, se More realmente acreditava em recompensa e punição após a vida, ele não era um herói. Por escolher a morte em lugar da condenação eterna, ele nada mais fez que demonstrar ter uma crença obstinada. Desistir de uns poucos anos na terra por uma eternidade no céu foi uma troca inteligente, que deveria conceder-lhe um lugar de honra no panteão dos verdadeiros crentes, mas não no panteão dos heróis.
A pergunta básica permanece. Por que é mais nobre a um crente obstinado seguir a ordem de Deus do que a ordem do rei, se para esta pessoa Deus é mais poderoso que qualquer rei? Em geral, a submissão à vontade de uma pessoa poderosa não tem sido entendida como especialmente digna de elogios, exceto, claro, pela pessoa poderosa. Thomas More teria se juntado às cruzadas genocidas do século XI apenas porque Deus e o Papa assim ordenaram? Se tivesse, seria correcto considerá-lo uma boa pessoa?
O problema não se aplica somente aos cristãos. Eu me pergunto por que os Judeus elogiam Abraão por ter aceitado matar seu filho, quando Deus assim o ordenou. Um verdadeiro herói, que acreditasse em um Deus que recompensa e pune, teria resistido a esta ordem injusta e se arriscado à ira divina, da mesma forma que um verdadeiro herói teria recusado a ordem de Deus para assassinar mulheres e crianças “pagãs” durante a barbárie das cruzadas. O verdadeiro herói — a pessoa realmente boa — é o crente que arrisca a eternidade no inferno por se recusar a uma exigência injusta de Deus. O grande rabino do século XVIII, Levi Isaac de Berdichev, foi um herói desses. Levantou um processo religioso contra Deus, e disse a Deus que se recusaria a obedecer a qualquer ordem divina que colocasse em risco o bem-estar do povo Judeu. Ao fazê-lo, Levi Isaac pode ter-se arriscado a sofrer punição divina, mas agiu heroicamente. Enfrentou um Deus que acreditava ter o poder de puni-lo, mas que ele também acreditava estar agindo injustamente. Ao desafiar a Deus, seguia a tradição do heróico Abraão, que argumentou contra a disposição de Deus de sacrificar inocentes devido a Sodoma. Este exemplo é preferível ao de um Abraão complacente, que de bom grado obedeceu à injusta ordem de Deus para que sacrificasse o inocente Isaac; ou ainda o do submisso Jó, que no fim das contas suplica a Deus que o perdoe por ter duvidado de Sua justiça, depois de Deus ter de fato agido injustamente, matando seus filhos apenas para provar algo ao diabo.
Esta é, pois, uma questão de se julgar a bondade de uma pessoa religiosa que acredita na punição e na recompensa divinas. Os líderes religiosos que escolhem mártires e santos não podem fazê-lo em ambos os casos. Eles não podem declarar que alguém seja um herói e um crente, porque as duas honrarias são logicamente inconsistentes. O crente obstinado é menos um herói por escolher a morte, em detrimento da condenação eterna. O verdadeiro herói é necessariamente um crente menos obstinado. Os verdadeiros heróis são aqueles que encaram a morte por um princípio — digamos, salvar as vidas de outras pessoas — sem qualquer promessa de recompensa.
Somente no caso de More ter sido na verdade um hipócrita, fingindo crer em uma vida após a morte, quando abrigasse secretamente a descrença, ele seria merecedor da condição de herói; mas neste caso, claro, lhe seria negada a honra de ter sido um verdadeiro crente e de ter sido honesto.
Há, com certeza, uma posição intermédia. More poderia ter sido alguém que tentou realmente acreditar, mas não podia suprimir a dúvida. Desconfio que muitas pessoas que pensam, hoje, estejam nesta condição. Se este fosse o caso de More, a sua decisão de escolher a morte exigia algum grau de risco. Talvez ele estivesse desistindo de um pássaro em sua mão terrena, a saber, o tempo de vida que ainda teria, por dois pássaros em uma árvore celestial, a saber, uma chance em um paraíso possível. Mas isto também seria um cálculo, ainda que mais complexo e probabilístico. (Não estou sugerindo que os mártires religiosos sempre pensem desta maneira, conscientemente, mas certamente eles experimentam este misto de crença, cálculo e ação em algum nível.)
Isto não significa dizer que as pessoas crédulas não possam ser realmente morais. É claro que podem. Talvez agissem moralmente sem a promessa de recompensa ou a ameaça de punição. Isto sugere, todavia, que quando a conduta é determinada por promessas e recompensas, é difícil estabelecer a sua qualidade moral inerente, distinta de uma componente tática. Mas o que dizer de ateus, agnósticos, ou outros indivíduos que tomam decisões morais sem relação a um Deus, ou a uma promessa, ou ameaça referentes à vida depois da morte? Por que estas pessoas deveriam ser morais? Por que deveriam desenvolver um bom caráter? Por que não deveriam simplesmente fazer o que é melhor para elas?
Até mesmo a Bíblia fornece um modelo para estas pessoas. O autor do Eclesiastes explicitamente nos diz que ele (ou ela, uma vez que a palavra hebraica original para Eclesiastes é Koheleth, que significa “reunião de mulheres”) não acredita em uma vida após a morte:
De tudo tenho visto ao longo de minha vã existência; um homem justo sendo destruído por sua honradez, e um pecador vivendo uma longa vida em razão de sua maldade. O que sucede aos filhos dos homens sucede aos filhos dos animais. Como morre um, assim morre o outro; todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais, porque tudo é vão. Todos acabam no mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão. Quem pode saber se o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a terra?
Não é surpresa que o Eclesiastes conclua que “não pode haver coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua recompensa; quem o fará voltar para ver o que será depois dele?” E o Eclesiastes prossegue recomendando o egoísmo hedonista como uma resposta à ausência de vida após a morte:
Eu sei que não há outro bem na vida além de ser feliz enquanto se vive. De fato, é presente de Deus que cada homem coma, beba e se alegre com o fruto de seu trabalho.
Mas o Eclesiastes está errado. Mesmo que não haja céu ou inferno, há boas razões para que os seres humanos ajam de modo melhor do que procurar tão-somente a felicidade. A verdadeira pessoa moral é aquela que faz a coisa correta sem promessa de recompensa ou ameaça de punição — sem uma análise de custo-benefício. Fazer algo porque Deus assim o disse não torna uma pessoa moral; simplesmente nos diz que se trata de um crente prudente, semelhante àquele que obedece à ordem de um rei secular todo-poderoso. A concordância de Abraão em sacrificar o seu filho Isaque porque Deus assim o ordenou não o torna moral; simplesmente mostra que era obediente.
Há demasiadas pessoas que abrem mão da responsabilidade moral em função de Deus, como Abraão. Com o propósito de discutir o caráter e a moralidade, pressuporei que não existe um Deus que dà ordens, recompensa, pune ou intervém. Se isto é verdadeiro ou não, qualquer que seja o significado de verdade no contexto da fé, ainda assim trata-se de um mecanismo heurístico útil, através do qual se pode avaliar o caráter e a moralidade. Assim como Pascal argumentou que a aposta mais prudente é a de depositar o seu dinheiro eterno em Deus, é igualmente um constructo útil assumir a não-existência de Deus quando julgamos se uma ação humana deveria ser considerada boa. Há uma história religiosa maravilhosa, sobre um rabino a quem perguntaram se é mais apropriado agir como se Deus não existisse. Ele respondeu: “Sim, pois quando pedirem a você que seja caridoso, você deve sê-lo como se não houvesse Deus a ajudar o objeto da caridade”.
Penso que o mesmo se pode dizer da moralidade e do caráter: ao decidir que curso de ação é moral, você deve agir como se não houvesse Deus. Você também deveria agir como se não houvesse ameaça de punição ou recompensa terrena. Você deveria ser uma pessoa de bom caráter porque é correto ser assim.
Lembro-me de uma cartoon que descrevia um homem mais velho e casado, abandonado em uma ilha deserta com uma mulher jovem. Ele lhe pede que façam sexo, argumentando que “ninguém saberá”. A mulher responde: “eu saberei”. O teste de bom caráter do “eu saberei” é útil. Qual seria então o conteúdo do bom caráter em um mundo sem a ameaça de punição divina ou terrena e sem a promessa de recompensa divina ou terrena? Em um mundo como este toda boa ação seria praticada simplesmente porque o agente a considerou boa. O bom caráter, num mundo como este, envolveria encontrar um equilíbrio adequado entre os interesses que estão frequentemente em conflito, tais como os próprios interesses e os dos demais, do presente e do futuro, da família (tribo, raça, gênero, religião, nação, etc.) e de estrangeiros. Desde o começo dos tempos, os homens civilizados lutam para alcançar este meio-termo dourado. O grande Rabino Hillel disse bem ao afirmar: “Se eu não for por mim mesmo, quem será?, mas se eu for só por mim mesmo, quem serei?”
Bom caráter consiste em reconhecer o egoísmo que é inerente a cada um de nós e tentar equilibrá-lo com o altruísmo a que todos nós deveríamos aspirar. É difícil equilibrar a luta, mas nenhuma definição de bondade pode ser completa sem isto. Os advogados, talvez mais que a maioria, precisam de grande força moral, porque seu terreno profissional é eticamente ambíguo e porque a tentação de tomar atalhos morais é bastante grande. Para alguns, esta força moral deriva de crença religiosa; para outros, de um comprometimento filosófico; e para outros ainda, do juramento que fazemos ao sermos admitidos na profissão. Qualquer que seja a origem, a força moral deveria servir como uma constante, a partir da qual os juízos profissionais são avaliados.