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Crítica
4 de Março de 2020   História da filosofia

Filosofia africana

Sou por causa de ti
A. C. Grayling
Tradução de Desidério Murcho

A Europa, a Índia e a China têm tradições, religiões, folclore, poesia, arte e apanhados de máximas que dão corpo à sabedoria que emana da experiência. Desenvolveram também corpos de pensamento que são distintamente filosóficos, na forma de debates detalhados e, em quase todos os casos, escritos, sobre teorias e ideias metafísicas, epistemológicas, éticas e políticas.

A Europa, a Índia e a China são grandes áreas geográficas, e incluem inúmeras vertentes diferentes de folclore e tradição, nas suas diversas regiões internas. Quando as designações “filosofia indiana” e “filosofia chinesa” são usadas, pretende-se incluir não todo o folclore, tradição e religião da área geográfica em causa, mas, ao contrário, as escolas de pensamento desenvolvidas que se encontra na história, por exemplo, a advaita, o confucionismo e o budismo. Para as aprender e talvez nos dedicarmos a elas, podemos recorrer a corpos de escritos, e a autores designados que, em conjunto, constituem uma discussão reconhecível de temas, à qual se pode responder — temas que, sem dúvida, de tempos a tempos, intrigam, fazem coçar a cabeça e perturbam quase qualquer pessoa num ou noutro momento da vida: entre eles, a verdade, o significado, a existência e o valor — que, na filosofia, são objecto de uma exploração alargada, avançada e exaustiva, de maneiras intelectualmente rigorosas.

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Dúvidas?

Funcionará o termo “filosofia africana” da mesma maneira que “filosofia indiana” e “filosofia chinesa”, neste sentido? Haverá escolas desenvolvidas de pensamento em África, que se distingam das tradições, religiões, folclore, mitologia, poesia, arte e colectâneas de máximas que dão corpo à sabedoria que emana da experiência?

Para responder, é preciso começar por fazer uma distinção. Se Agostinho de Hipona, e os neoplatónicos de Alexandria, no Egipto, forem considerados “filosofia africana”, então a resposta é imediatamente “Sim”. Porém, se considerarmos que as regiões geográficas do Egipto e do norte e nordeste de África estão histórica e culturalmente ligadas à Europa e ao Médio Oriente, esta apropriação é enganadora. Para que “filosofia africana” denote sistemas de pensamento sobre questões metafísicas, epistemológicas, éticas e políticas que sejam especificamente africanas e que tenham evoluído por meio do debate, temos de procurá-los na África ocidental e subsariana.

Nestas imensas extensões das terras de África há ricos veios de folclore, histórias orais, sagacidade, tradição, arte e religião. Serão filosofia? O mesmo rico material de outros continentes do mundo não é encarado desse modo. Porém, surgiu uma maneira incisiva de ver as coisas em relação à África pós-colonial, segundo a qual se consegue extrair pensamento distintamente filosófico desses materiais. A ideia é que o folclore, as histórias, as máximas sábias, a tradição, a arte e a religião contêm e exprimem mundividências, e a tese que se avança então é que uma mundividência é, exclusivamente em virtude de o ser, uma filosofia. Será que isto é correcto? O material contém de facto mundividências associadas aos povos e línguas de diferentes partes de África, dos iorubas da Nigéria e Benim, aos zulus de KwaZulu-Natal. Caso associemos um sentido muito alargado e extremamente indefinido à designação “filosofia”, permitindo-nos abranger qualquer mundividência com essa designação, então seria filosofia a mundividência implícita em Homero (por exemplo), baseada na interacção entre as divindades do Olimpo e a humanidade, assim como as tradições indígenas australianas, que são antigas e elaboradas. Será isto satisfatório?

Esta é a questão crucial para determinar se as mundividências identificáveis nas tradições africanas podem ser postas na mesma categoria das obras de Platão e Kant (que são parâmetros de referência indiscutíveis do que é “filosofia”). No mínimo, será preciso dizer que há uma grande diferença aqui em questão e que, num livro como este, exige-se obras mais definidas para se aplicar a palavra “filosofia”. Caso se aceitasse um sentido muito mais indefinido, este livro teria de ser um tratamento enciclopédico de antropologia e etnografia, de folclore, lendas, tradições, aforismos e linguística comparada, assim como de filosofia no sentido associado a Platão e Kant.

É importante não considerar que esta insistência num uso inequívoco de termos sugere a continuação da perspectiva desacreditada, e quase universalmente sustentada pelos colonizadores brancos do passado, de que as culturas africanas são “inferiores”. O trabalho inestimável de Edward Wilmot Blyden, ao dar início à “descolonização do espírito africano”, a actividade política de James Beale Horton, um médico que se tornou empresário, a codificação da lei acã e respectivos princípios constitucionais, levada a cabo pelos advogados John Sarbah e Joseph Hayford (o “rei da África ocidental”), seria suficiente, só por si, para mostrar a mentira dessa perspectiva. Os três últimos formaram-se no Reino Unido mas, como muitos outros cuja inspiração foi beber ao sentido de pertença às suas terras nativas ou de adopção que os animava, e ao sentido que tinham do que Blyden chamava orgulhosamente “negritude”, a prontidão com que a sua sofisticação política e cultural agarrou a oportunidade para se expressar, é prova contra aquela falsidade.

Estes pensadores são apenas quatro exemplos de muitos cujos contributos para a autoconsciência política da África colonizada são significativos.1 Nesse aspecto, são comparáveis a Gandhi, na Índia. Afirmar que o seu pensamento constitui uma “filosofia política africana” específica, ao invés de pensamento político aplicado a um contexto africano, é descrever mal o seu contributo. Poderá parecer mais plausível afirmar que as tradições africanas identificáveis são as fontes dos conceitos de “consciencismo” avançados por Kwame Nkrumah, do Gana, e de ujamaa ou “familiedade”, proposto por Julius Nyerere, da Tanzânia, baseando-se ambos na maneira como as sociedades tribais africanas se organizam. Contudo, na medida em que são primos direitos dos pressupostos subjacentes acerca da interconexão humana social presentes no comunalismo e no socialismo em geral, não são ideias distintamente africanas, mas, de facto, universais.

Um pensamento semelhante aplica-se à “filosofia de raiz africana”, ou seja, trabalho filosófico levado a cabo por africanos ou pessoas de ascendência africana, seja em África seja noutros continentes. Descrever como “filosofia africana” o trabalho do setecentista Anton Amo, nascido no Gana mas levado para os Países Baixos com três anos, seria enganador — apesar de as observações laudatórias quanto a ele e ao seu continente de origem, por parte dos colegas académicos da Universidade de Wittenberg, na Prússia, reflectirem a glória de ambos. Descrever como “filosofia africana” a obra de um filósofo distinto de ascendência africana como Kwame Anthony Appiah, nascido no Reino Unido mas leccionando nos Estados Unidos, seria também enganador. E sê-lo-ia igualmente, caso se descrevesse desse modo o presente autor, que nasceu em África.

Quando se contesta o ponto de vista de que África não tem qualquer filosofia escrita sistemática, menciona-se o exemplo do pensador etíope seiscentista Zera Yacob e o livro de sua autoria, Hatata. Há razões para pôr em causa a autenticidade deste livro; suspeita-se que o padre missionário Giusto d’Urbino, que supostamente descobriu o livro, o forjou.2 Todavia, para os nossos propósitos, suponha-se que é autêntico.

Yacob defende uma abordagem racionalista para descobrir a natureza universal da verdade e da moralidade, afirmando que a observação do mundo e das pessoas irá revelar o propósito de Deus, que foi criar deliberadamente seres humanos imperfeitos para que, de modo a serem “dignos de recompensa”, tenham de dar o seu melhor pela perfeição. Yacob foi educado e formado como cristão copta, e recusou converter-se ao catolicismo quando o rei Sisínios da Etiópia, sob a influência dos jesuítas portugueses, exigiu que o seu povo o fizesse, desenvolvendo, ao invés, a sua própria versão de moralidade teísta, sob a influência dos Salmos de David, que ele muito admirava. Teve um discípulo, Walda Heywat, que complementou o Hatata com os seus próprios escritos.

É de notar que Yacob e Heywat são produtos de uma cultura literária que há muito estava em contacto com as crenças e o pensamento cristão, judaico e muçulmano — no Hatata, Yacob menciona discussões que teve com representantes dessas três denominações religiosas — e, portanto, é apropriado classificá-los a par de Agostinho e dos pensadores de Alexandria e, assim, como herdeiros das tradições teológicas e filosóficas desenvolvidas no Médio Oriente e na Europa. Yacob formou-se em escolas cujo currículo incluía sewasewa, interpretação das Escrituras, o que pode suscitar fortemente o ponto de vista de que diferenças de interpretação — e por extensão, diferenças entre as religiões em geral — obscurecem a verdade que lhes subjaz a todas, seja ela qual for. Que há verdades universais dessas era, em essência, a perspectiva de Yacob. Ele é um filósofo africano, no sentido de ter nascido e de ter vivido em África; mas a sua filosofia emerge do mesmo contexto geral da filosofia de Agostinho.

A ideia de que grande parte do que se afirma ser “filosofia africana” não cai sob o âmbito do primeiro termo desta expressão é controversa, precisamente porque nega um tipo significativo de estatuto às tradições intelectuais e culturais em causa. Quem tiver um temperamento um tanto ácido, caso defenda tal ideia, poderá dizer: “Numa era em que os termos que dão estatuto se tornaram imensamente abrangentes para acomodar as ambições de auto-afirmação de tantas pessoas e coisas quanto possível, corremos o risco de os fazer perder qualquer utilidade real. Se ‘filosofia’ quer dizer seja o que for que alguém pensa ou afirma, ao invés de ser algo que vai além de um certo nível quanto ao que responde e quanto à maneira como o faz, então perdemos um termo útil, e teremos de recorrer a uma descrição diferente da filosofia — talvez com o título desajeitado de ‘estudos metafísicos, epistemológicos, éticos e lógicos’, ou ‘EMEEL’, de maneira a deixarmos que todas as outras opiniões, e quaisquer pontos de vista tradicionais de qualquer tipo, sejam celebradas com a nova designação dignificante mas, em qualquer caso, nada informativa, de ‘filosofia’”.3

Este tipo de ponto de vista leva os proponentes do conceito de “filosofia africana” a afirmar que negar a sua existência representa “uma destituição implícita de África”, e até “a sugestão de um insulto”. Porém, adoptar esse ponto de vista defensivo é perder a oportunidade de responder à questão-chave: “Há alguma coisa a um tempo distintamente africano e fundamentalmente filosófico na cultura ou tradição africana?” A taxinomia de Henry Odera Oruka das práticas culturais e intelectuais africanas que, segundo ele, obedecem a esta exigência, incluem: mundividências tradicionais, provérbios sábios, pontos de vista políticos, filosofia académica profissional, filosofia literária e o estudo “hermenêutico” da gramática das línguas africanas, para explicitar compromissos filosoficamente significativos que aí se encontram. Como as considerações anteriores sugerem, isto não é persuasivo; e uma das razões principais torna-se patente com uma comparação: o que conta como claramente filosófico nas filosofias da Índia e da China, por exemplo, não tem de obedecer a um critério assim tão exigente de ser distintamente indiano ou distintamente chinês. É por isso que “filosofia indiana” quer dizer “filosofia da Índia, ou de filósofos indianos”. O termo “filosofia africana” procura outro significado, e pretende tê-lo por razões que se prendem com a identidade pós-colonial, e não com a verdade ou a compreensão per se. Esta controvérsia não é uma questão de os filósofos de outras partes do mundo rejeitarem a admissão no seu clube, por razões que não são intrínsecas à questão do objecto e método da filosofia; os principais filósofos africanos, como Paulin Hountondji, Kwasi Wiredu e Kwame Anthony Appiah, opõem-se à abordagem etnofilosófica, e os dois últimos têm a mesma postura com respeito à “filosofia de sábios”.

É mais persuasivo observar que se pode dizer que as tradições e perfis que estruturam as sociedades e as relações sociais, e as justificações oferecidas para essas tradições, constituem um ponto de vista ético. Neste sentido, há muito para descobrir em África — por exemplo, o rico e profundamente atraente conceito de ubuntu (veja-se já de seguida). Como esta ideia e as suas implicações têm sido cada vez mais objecto de discussão e de publicações, acabou por constituir um contributo filosófico substancial. É de aceitar sem discussão que os filósofos africanos — filósofos de etnia africana que escrevem, leccionam, ou ambos, seja algures em África, seja noutras partes do mundo — conseguem encontrar nos recursos culturais desta ou daquela tradição especificamente africana de cosmologia, história ou sabedoria tradicional os materiais para articular teorias metafísicas ou epistemológicas, e também contributos para a teoria lógica. Não precisa, contudo, de ser etnografia disfarçada de filosofia.

Como se sugeriu, o conceito de ubuntu é precisamente um desses tópicos; eis um conceito de interesse significativo para o pensamento ético da tradição humanista. É uma definição da existência moral humana, em termos de mutualidade, um reconhecimento da interconexão entre pessoas, que é essencial e, consequentemente, constitutiva, definidora e criadora da própria humanidade. “Humanidade” — expressamente no sentido combinado de “humano” e de “humanitário” — é exactamente o que ubu-nto quer dizer nas línguas angunes como o zulu, o xossa e o ndebele: -ntu é “humano” e o prefixo ubu- faz o trabalho que o sufixo “-idade” desempenha em português, nomeadamente, forma um substantivo abstracto a partir de um concreto. Liga-se às ideias de “consciencismo” e ujama já mencionadas, e tem paralelos directos noutros pontos de vista bantos, por exemplo, a ideia xona de hunhu.

A constelação de ideias captada por ubuntu inclui a gentileza, a bondade, a generosidade, a cordialidade, a compaixão, o cuidado, atitudes e acções humanitárias, e o reconhecimento da interdependência que confere um direito livremente reivindicado de reciprocidade — e, simultaneamente, uma obrigação voluntariamente aceite. O resumo mais breve destes valores humanísticos é a asserção “Sou por causa de ti”. Apesar de ser um conceito antigo, a sua saliência contemporânea deve-se à promoção levada a cabo pelo autor Jordan Kush Ngubane, no quinto decénio do século xx, e a sua adopção por parte do arcebispo Desmond Tutu, quando era presidente da Comissão da Verdade e da Reconciliação, depois do fim do apartheid na África do Sul.4

As virtudes da generosidade e da gentileza não são, é claro, distintivas do ubuntu; estão no coração de todas as moralidades, sejam elas humanísticas ou religiosas. A adjuração do amor e do cuidado fraternos no moismo (uma filosofia secular) e no cristianismo (uma religião) pede mais do que a mera generosidade e gentileza — nem todas as pessoas são adoráveis, de modo que isto é uma injunção exigente — mas as exigências mais realistas, porque mais modestas, são bons lugares-comuns, e emergem, sem dúvida, da natureza essencialmente social dos seres humanos, fazendo da reciprocidade uma atitude evolutivamente vantajosa. Porém, a insistência da ubuntu num significado activo disto é uma alternativa saudável a uma versão negativamente formulada que diz “Não prejudiques” ou até, como uma versão ainda mais pálida do positivo, “maximiza utilidades”. O mérito que se descreve como ubuntu (é como dizer que uma pessoa tem “hombridade”, mas é ainda mais pleno) é ser as características que o termo denota: e isto é exactamente aquilo a que se aspira numa ética — de ethos, carácter. Está entre a ambição excessiva de “Ama o teu vizinho” e a falta de ambição de “Não faças mal”; é um princípio ético realisticamente positivo que encerra a sua própria justificação, nomeadamente, que, como animais sociais que precisam uns dos outros, devemos viver em harmonia com o que esse facto sobre nós nos impõe. Faz abolir o hiato ser-dever ao dizer que o “dever” (o valor) está implícito no “ser” (no facto): o facto de ser humano envolve essencialmente — porque as relações humanas são internas, modificando as relata — as virtudes mutuamente constitutivas do humanitarismo.

Visto a própria humanidade ter toda ela origem em África, é apropriado que uma das melhores ideias sobre como podemos florescer — a ideia de ubuntu — emane também desse continente.

A. C. Grayling
The History of Philosophy (Penguin, 2019), pp. 575–581

Bibliografia

Notas

  1. Mesmo aqui se vê o papel das distinções: uma grande figura, como Nelson Mandela, seria elencado à cabeça de activistas políticos exemplares, e não com Blyden, e ainda menos com Locke e Rousseau.↩︎
  2. Fui alertado para esta possibilidade pelo meu colega, Dr. David Mitchell.↩︎
  3. Na verdade, esta mesma observação aplicar-se-ia aos pensadores incluídos no salon des refusés da Parte IV — os sociólogos, estudiosos de teoria política, antropólogos, historiadores das ideias e expoentes da “teoria crítica”, que são todos, por vezes, designados como “filósofos”.↩︎
  4. C. B. N. Gade, em “The Historical Development of the Written Discourses on Ubuntu”, faz remontar o seu uso pelo menos até 1846. A discussão do conceito por parte de Ngubane ocorreu nos seus romances e na revista African Drum. Atribui-se a S. J. T. Samkange e T. M. Samkange, Hunhuism or Ubuntuism: A Zimbabwe Indigenous Political Philosophy (1980), a discussão expressamente filosófica do conceito.↩︎
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