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Crítica
26 de Agosto de 2024   História da filosofia

Histórias de animais metafísicos

José Costa Júnior
The Women Are Up to Something: How Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley, and Iris Murdoch Revolutionized Ethics
de Benjamin J. B. Lipscomb
Oxford: Oxford University Press, 2021, 360 pp.

Metaphysical Animals: How Four Women Brought Philosophy Back to Life
de Clare Mac Cumhaill e Rachael Wiseman
Nova Iorque: Anchor Books, 2022, 416 pp.

As filósofas britânicas Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley e Iris Murdoch nasceram entre os anos de 1919 e 1920 e chegaram à Universidade de Oxford entre os anos de 1937 e 1939. Lá encontraram um ambiente dominado por homens, com visões discutíveis em relação à natureza da filosofia e seu alcance na vida comum. No entanto, com a partida desses homens para a frente de batalha na Segunda Guerra Mundial, aquelas jovens filósofas acabaram por tomar a frente dos debates e por questionar as concepções da árida filosofia moral da época — considerando principalmente as brutalidades daquele momento. Assim, “trouxeram a filosofia de volta para a vida”, contribuindo para os novos horizontes e debates que surgiram na segunda metade do século XX na filosofia.

Estes dois livros contam essa história e abordam os contextos, o trabalho e o legado dessas filósofas. As duas publicações revelam uma rica e estimulante história, que nos faz pensar nos fatos relevantes para uma vida boa e na fragilidade inerente à experiência, que nos faz buscar valores comuns que nos tragam segurança e estabilidade, e nos efeitos da falibilidade humana nas soluções para o convívio comum.

The Women Are Up to Something descreve principalmente o rico contexto histórico-filosófico em que as quatro filósofas estavam inseridas, juntamente com suas inovações no âmbito da filosofia moral. Lipscomb defende que essas quatro filósofas nadaram contra a corrente, em dois sentidos: além de serem mulheres numa disciplina dominada por homens, defenderam um enfoque ético pouco discutido. No começo de suas carreiras, a perspectiva dominante entre os filósofos morais era que não havia, em termos objetivos, nada bom ou mau, correto ou incorreto, importante ou irrelevante. Pelo contrário: todos esses valores eram projeções, uma fina mão de verniz que aplicamos a um mundo carente de valores. No entanto, essas quatro filósofas diagnosticaram que se tratava de uma moda intelectual. E formularam uma alternativa: que as verdades morais existem e que assentam na natureza característica de nossa vida, naquilo de que os seres humanos necessitam objetivamente para florescer.

Em contraste, McCumhaill e Wiseman, em Metaphysical Animals, se preocupam mais em descrever e acompanhar as trajetórias das filósofas, destacando que, para essas quatro amigas, o que mais importava era fazer a filosofia renascer, colocá-la no contexto da complicada e turva realidade cotidiana na qual se desenvolve a vida humana: queriam retomar “conexão profunda que os filósofos da Antiguidade viam entre a Vida Humana, o Bem e a Forma” e voltar “ao facto de sermos criaturas vivas, animais, cuja natureza dá forma às nossas maneiras de prosseguir” (p. 363). Assim, por meio dos olhares dessas amigas, emerge uma nova imagem: o nosso mundo familiar se transforma em um suntuoso quadro com motivações que se misturam, envolvidas por objetos culturais de poder metafísico e rico em vida vegetal, animal e humana.

A postura reflexiva e as discussões promovidas pelo “Quarteto de Oxford”, como esse grupo de filósofas ficou conhecido, impactou o debate ético, na medida em que impuseram novas questões, considerando principalmente a vida real e as duras circunstâncias nas quais existimos, afastando a prática filosófica da abstração, tão comum ao ambiente acadêmico. No entanto, a principal ponderação que essas leituras trouxeram talvez tenha sido o fato de só nos termos a nós mesmos para trocar razões e construir soluções para os problemas que a vida comum nos impõe. Os dois livros apresentam os perfis e as relações entre as filósofas do Quarteto. As vidas dessas mulheres se tornaram intimamente interligadas, pois eram amigas, compartilhavam a vida, trabalhavam juntas e se apoiavam. Também passavam grande parte do tempo discutindo filosofia, e essas discussões, inspiradas por seus professores e mentores, abordavam filósofos do passado que haviam tratado das grandes questões metafísicas que a geração mais jovem de filósofos de Oxford agora descartava muitas vezes como absurdos e sem grande relevância.

Os dois livros abordam também o contexto da filosofia moral britânica entre as décadas de 1930 e 1950, dominada por teorias não-cognitivistas. Segundo essas teorias, os juízos morais eram inteiramente subjetivos, dado que não poderiam ser verdadeiros nem falsos sem uma realidade que pudesse torná-los objetivos. Essa posição estava ligada ao positivismo lógico, um posicionamento que sustentava que o trabalho da filosofia consistia na análise lógica da linguagem, e que as únicas afirmações com significado seriam as que fossem passíveis de testes empíricos, ou então afirmações cujo valor de verdade pode ser determinado em virtude do significado dos termos. Juízos de valor, como no caso do juízos morais, não podiam ser testáveis, e, portanto, não tinham sentido, nem eram cognitivamente relevantes. Um livro publicado em 1936 pelo filósofo Alfred. J. Ayer Language, Truth and Logic, defendia essa posição e foi muito influente no período. Os defensores desse posicionamento eram identificados como emotivistas, uma vez que defendiam que os juízos morais nada mais eram senão expressão de emoções. Ayer havia sido influenciado pelo positivismo lógico do Círculo de Viena, e promovia com sucesso as concepções dessa filosofia entre no ambiente filosófico de Oxford.

Esse posicionamento também retomava a forte distinção entre fatos e valores — mantendo a dicotomia entre aquilo que é e o que deve ser abordada por David Hume no século XVIII, e a tensão entre o naturalismo e os valores, destacada por G. E. Moore no seu influente Principia Ethica, de 1903. Nesse sentido, conforme a hipótese de Ayer, a moralidade não tratava de questões de fato, mas sim da expressão de emoções subjetivas — e, portanto, como valores livres de restrições racionais. Outros desenvolvimentos teóricos desse posicionamento foram realizados por filósofos como Richard Hare nas décadas seguintes, numa posição a que chamou “prescritivismo”. As filósofas do Quarteto de Oxford ficaram profundamente insatisfeitas com o subjetivismo ético que se originou dessa posição não-cognitivista, segundo a qual nossos juízos morais são uma expressão das nossas atitudes subjetivas e nada mais, sem qualquer realidade que os sustente, nem qualquer possibilidade de investigação cognitivamente relevante.

Elizabeth Anscombe (1919–2021) é a mais conhecida das quatro filósofas. Conhecida por ser uma mulher assertiva e brilhante, sempre disposta a debater problemas filosóficos, converteu-se ao catolicismo na adolescência e permaneceu católica toda a vida. Dona de um senso de moda pouco comum (usava calças em Cambridge, apesar de ser proibido para docentes do sexo feminino), foi casada com o filósofo Peter Geach, com quem teve sete filhos. Foi aluna e amiga de Ludwig Wittgenstein e foi essencial para ajudá-lo a montar as Investigações Filosóficas. Já Iris Murdoch (1919–1999) era a mais extrovertida do grupo — conhecida por todos pela personalidade alegre e festiva. Foi próxima do Partido Comunista e uma profunda conhecedora da cultura francófona, com um amplo conhecimento da filosofia existencialista, que introduziu em Oxford. Foi uma romancista de sucesso e se sentia mais à vontade para escrever ficção, utilizando-a como um meio para expressar suas perspectivas filosóficas.

Philippa Foot (1920–2010) era diferente das outras três, pois vinha de uma proeminente família de classe alta americana. Era neta do presidente dos Estados Unidos Grover Cleveland e foi educada em casa, como era costume fazer na época com as meninas da sua posição social. Contrariou sua família ao escolher ir para a universidade. Ao longo da sua carreira, formulou o primeiro “problema do bonde”, e se estabeleceu como uma das principais críticas do emotivismo. Por fim, Mary Midgley (1919–2018), a mais longeva do grupo, foi uma pensadora atenta e com amplos interesses. Foi leitora ávida, com grande interesse por ciência, biologia e etologia. Mudou-se para Newcastle com seu marido, o também filósofo Geoff Midgley. Saiu da carreira acadêmica para criar três filhos, mas trabalhou posteriormente na Universidade de Newcastle — enquanto as outras três filósofas do quarteto já estavam bem estabelecidas como acadêmicas e autoras. Escreveu dezanove livros depois de se aposentar, com um estilo de escrita acessível e com ênfase na filosofia pública.

Benjamin Lipscomb começa seu o livro revisitando um episódio de 1945, quando Philippa Foot foi ao cinema assistir às imagens dos campos de concentração nazistas que tinham acabado de ser divulgadas ao público. Comentou ao seu mentor de então, o filósofo Donald M. MacKinnon (que também orientava Iris Murdoch e Mary Midgley): “Nada mais será como antes”. Foot acreditava que aquilo que os nazistas tinham feito era moralmente horrível, mas as teorias éticas antirrealistas predominantes da época negavam o caráter objetivo dessa moralidade. Como mostrar que existem ações que são objetivamente erradas ou certas, se as afirmações éticas são apenas projeções das nossas atitudes de aprovação e desaprovação, num mundo sem valor?

Lipscomb destaca como Anscombe Foot, Murdoch e Midgley questionavam essa perspectiva. A incorreção objetiva daquelas atrocidades era algo que estava para lá das teorias éticas predominantes em Oxford, assim como do influente existencialismo francês (segundo o qual não há medida externa de bem nem de valor, mas, em vez disso, o mundo não tem valor e cada um de nós cria valor por meio de nossas escolhas e ações). Desse modo, as quatro mulheres tinham um projeto comum: defender a objetividade das afirmações éticas. Assim, cada uma delas, de maneiras diferentes, contribuiu para o projeto de fundamentar a objetividade das declarações éticas e Lipscomb se concentra no desenvolvimento desse trabalho. Murdoch examinou as imagens por meio das quais entendemos e interpretamos o mundo. Foi ela que apontou a semelhança das perspectivas éticas emotivistas e existencialistas. Também foi ela que identificou a centralidade da dicotomia entre fatos e valores para os pensadores dessas duas correntes. Nesse sentido, foi Murdoch que chegou ao cerne do que precisava ser urgentemente repensado.

Anscombe diagnosticou as teorias éticas da época como incapazes de abordar o que estava errado com as atrocidades da guerra, e investigou o que constitui a vida boa. Por meio da sua leitura de Tomás de Aquino e Aristóteles, retomou o vocabulário dos vícios e virtudes, e do bem e do dano humanos. Foot desenvolveu a crítica de Anscombe de uma forma mais ampla e publicou uma série de artigos críticos, propondo a alternativa de Anscombe — trazendo assim a terminologia da ética das virtudes para o debate. Midgley acreditava firmemente que, para entender a vida humana e a ética, devemos reunir elementos de diferentes disciplinas. Abordou a ética em termos aristotélicos, estudando como e por que os humanos agem como agem, mas também como nossa animalidade nos restringe e desafia. Também tentou fundamentar a ética na natureza humana, considerando o papel que a razão desempenha na vida humana. Enquanto as outras três apontaram para uma versão da ética das virtudes como uma maneira de fundamentar a ética na natureza humana, Midgley tentou explicar como essa ética naturalista poderia ser.

Lipscomb não tenta explicar por que foram essas mulheres especificamente que provocaram essa mudança de paradigma — isto é, o afastamento das teorias éticas predominantes na época, em direção a uma teoria ética inovadora. Essa questão não é abordada, nem se defende que, como mulheres, pensavam de maneira “diferente” e, portanto, promoveram novas ideias. Em vez disso, Lipscomb enfatiza que, por estarem fora daquele universo teórico predominante de então, e orientadas por filósofos como Wittgenstein e Donald McKinnon, que também estavam fora daqueles enquadramentos, as quatro mulheres se envolveram com conceitos e autores que seus colegas contemporâneos eram desencorajados a investigar. Isso as deixou mais receptivas a ideias e mais bem preparadas para conceber possibilidades que seus colegas (homens) não conseguiam imaginar.

Já Clare Mac Cumhaill e Rachael Wiseman, que também são filósofas, iniciam Metaphysical Animals com a descrição de um incidente, que poderia ter impactos consideráveis. Em 1956, Elisabeth Anscombe tentou impedir a Universidade de Oxford de conceder um título honorário ao presidente americano Harry Truman. Anscombe defendia que dar um título à pessoa que ordenou os bombardeios de Hiroxima e Nagasaki era conceder uma honra a um assassino em massa e, portanto, uma atitude moralmente questionável. Anscombe não foi bem-sucedida e, em 20 de Junho de 1956, Truman recebeu o título. Essa situação, na qual “as mulheres estão aprontando alguma coisa”, conforme as desconfianças de então (e que dá título ao livro de Lipscomb), dá o tom desta biografia filosófica das quatro filósofas que deixaram a sua marca em uma profissão dominada por homens. Mac Cumhaill e Wiseman mapeiam essa amizade e o desenvolvimento filosófico do Quarteto, numa narrativa mais histórica do que temática, uma das principais diferenças entre os dois livros.

A presença do Quarteto em Oxford foi, de certa forma, uma questão de acaso e oportunidade. Oxford só abriu as portas às mulheres em 1920, porém sempre mantendo limitações e uma grande diferença na presença de homens e mulheres. No entanto, com o recrutamento masculino durante a Guerra, essas limitações foram revistas e certo espaço se abriu para mulheres. Assim, aquelas acadêmicas e suas vozes puderam ser ouvidas. Mac Cumhaill e Wiseman oferecem um foco diferente de Lipscomb, enfatizando que o trabalho filosófico do Quarteto deve ser entendido no seio de um relato metafísico mais amplo do que se considerava até então. As investigações daquelas filósofas estavam enraizadas nos padrões da vida cotidiana no seio dos quais a nossa linguagem, as nossas emoções e os nossos valores estão enraizados. É porque somos animais — animais com uma história natural e uma forma complexa de vida organizada — que o mundo é uma fonte de valor. Essa estrutura permite que se faça uma conexão entre juízos éticos e coisas que são de importância humana.

Mac Cumhaill e Wiseman montaram assim um relato detalhado da vida dessas mulheres e da filosofia na Europa na primeira parte do século XX, contendo informações biográficas bastante completas e um retrato preciso do trabalho de muitos filósofos e acadêmicos daquele período. O livro tenta também mostrar alguns pontos em comum entre as autoras e filósofas do Quarteto: insatisfeitas com o estado da disciplina, tentaram encontrar uma maneira de fazer filosofia que fosse além de “ouvir homens falando sobre livros de homens sobre homens”, sobre temas distantes da vida comum, com ares de sofisticação e tecnicismos distantes da vida comum. Assim, tentaram fazer filosofia de uma forma mais engajada e criativa e, mais importante, de maneira cooperativa, dialogada e viva. Mac Cumhaill e Wiseman integram o Centro de Pesquisa In Parenthesis, da Universidade de Durham, uma iniciativa relevante que promove estudos sobre o trabalho do Quarteto de Oxford, destacando suas contribuições para os contextos filosóficos do século XX e o papel das mulheres em geral na filosofia.

Apesar de apresentar os mesmos contextos, de abordar o mesmo grupo de filósofas e de tratar dos seus desafios e caminhos, as duas narrativas são complementares e cativantes, além acessíveis ao leitor comum. Ao acompanhá-las, ficamos a conhecer muitas informações sobre a história da filosofia da primeira metade do século XX, bem como as teorias éticas que emergiram nesse contexto histórico. Os dois livros são subsídios importantes para o número crescente de publicações que visam destacar os contributos negligenciados que as mulheres deram à filosofia. Também compõem o conjunto mais amplo de biografias que podemos identificar como filosóficas, que, ao nos aproximar de pessoas que lidaram com desafios reflexivos mais amplos, nos inspiram e estimulam a pensar outra vez.

José Costa Júnior
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