Desde a viragem do século — e para referir apenas as guerras mais importantes —, o mundo já viu surgir a guerra do Afeganistão (entre os Estados Unidos e o governo afegão, por um lado, e os Talibã e a al-Qaeda, por outro), a guerra civil do Chade (na qual rebeldes chadianos e mercenários sudaneses tentam depor o presidente), a guerra do Darfur (entre a região sudanesa do Darfur e o governo sudanês), a guerra do Iraque (entre uma coligação de estados liderados pelos Estados Unidos e o regime iraquiano de Sadam Hussein, primeiro, e os rebeldes apoiados pela al-Qaeda, depois) e a guerra do Líbano, mais um dos episódios do longo conflito armado que, desde a primeira metade do século XX, opõe Israel aos seus vizinhos árabes. Se nos virarmos para o século que deixámos, encontramos aí alguns dos conflitos bélicos mais cruéis, sanguinários e desumanos que o mundo já conheceu: só na Segunda Guerra Mundial, entre militares e civis, morreram 80 milhões de pessoas, e nas outras principais guerras do século, os mortos contam-se também por muitos milhões. Nos séculos imediatamente anteriores, com menos tecnologia, o número de vítimas foi certamente menor, mas as guerras foram igualmente muitas. E, até onde os nossos conhecimentos históricos permitem ver, o mesmo se pode dizer de todos os outros séculos antes e de quase todas as regiões do globo. Se, em vez de olharmos para o passado, olharmos para o futuro, é possível ver umas quantas guerras perfilarem-se no horizonte imediato, como parte da chamada guerra contra o terrorismo (Estados Unidos contra o Irão, Vietname, Síria?), e não é difícil admitir que muitas outras, agora imprevisíveis, surgirão no decorrer deste século. Não há razão para acreditar que o século XXI terá menos guerras — ou guerras menos devastadoras — que os anteriores e, a julgar pelo seu começo, há várias razões para pensar o contrário.
Karl von Clausewitz (1780–1831) definiu a guerra como a “continuação da política por outros meios”. Embora isto seja em geral correcto, diz-nos muito pouco sobre a natureza da guerra. Alguém que soubesse apenas isto, nunca poderia ter qualquer ideia de que a guerra é, por exemplo, um conflito armado. Contudo, nem todos os conflitos armados são guerras. As pequenas escaramuças ocasionais de fronteira não têm nem a dimensão nem a importância necessárias para serem consideradas guerras. E o mesmo é verdade de tumultos, motins, rebeliões e outras formas de violência colectiva. Apenas os conflitos armados intencionais de larga escala, mobilizando as forças armadas e uma importante parte dos recursos, em homens, meios e bens, de comunidades políticas, que são ou pretendem vir a ser estados são considerados guerras. Além disso, estes conflitos têm de ser sempre relativos ao governo de um território: quem manda, que leis devem existir, quem usufrui dos seus recursos; que ideias são aceites, que religiões permitidas, etc. Os exemplos clássicos de guerras são as guerras entre estados, como as duas guerras mundiais. Mas as guerras civis, como a Guerra Civil Espanhola, e as guerras de guerrilha, como as que os movimentos de libertação das colónias portuguesas em África moveram contra o estado português, são também guerras. Há quem pense que mesmo alguns dos conflitos em que uma das partes é constituída por grupos terroristas devem ser considerados guerras. São conflitos entre comunidades políticas que pretendem governar ou influenciar o governo de um território e essas são as características essenciais de todas as guerras.
A história mostra que a guerra faz parte da vida humana desde tempos imemoriais, apesar do enorme cortejo de sofrimento e miséria e do elevado preço, em mortos, feridos, mutilados, desalojados, refugiados, etc., que invariavelmente arrasta consigo. Embora isso possa desagradar-nos, é possível, como alguns autores sugerem, que a guerra seja inerente à natureza humana e que, apesar dos esforços recentes da comunidade internacional, por meio, por exemplo, da Carta das Nações Unidas, para a limitar — e até erradicar —, ela continue a existir ainda por muito tempo.
Devido ao seu carácter violento e aos enormes efeitos na vida das pessoas e das sociedades, a guerra é uma fonte óbvia de questões de natureza moral. A mais importante dessas questões é a de saber se a guerra pode em alguma circunstância ter justificação ou se, pelo contrário, é sempre incorrecta. Outras questões importantes são também as de saber como deve ser travada e o que se deve fazer uma vez terminada a guerra. São três as principais teorias que tentam responder a estas questões: o realismo, o pacifismo e a teoria da guerra justa.
O realismo é uma teoria popular sobretudo entre os cientistas políticos e aqueles que, por profissão, lidam com questões respeitantes às relações entre estados. Estas pessoas tendem a ver a cena política internacional como uma espécie de arena anárquica, sem outras regras excepto as que os estados conseguem impor, e na qual as questões dominantes são relativas ao poder, à segurança e ao interesse nacional. Por esse motivo, é muito comum pensarem que a política internacional não está sujeita a quaisquer regras morais. As considerações de carácter moral, embora possam ser convenções apropriadas para regular as relações entre pessoas individuais, são, quando aplicadas às relações entre estados, um mal, uma vez que um estado que tenha em conta normas de natureza moral nas suas relações com outros estados coloca-se necessariamente numa situação de fragilidade. Nas relações entre estados, a única regra que conta é a do “direito do mais forte à liberdade”. Qualquer outra regra é contrária aos interesses dos estados e, por isso, não deve nem pode ser tida em conta. A única política correcta nas relações internacionais é a “realpolitik”.
Como a guerra é apenas a continuação da política por outros meios, os realistas aplicam à guerra as suas ideias sobre a política internacional. A guerra só deve ser travada se servir os interesses do estado e, uma vez em guerra, o estado deve fazer tudo ao seu alcance para a ganhar. Consequentemente, tendem a pensar que a guerra está fora da moralidade. “No amor e na guerra vale tudo” ou “ inter arma silent leges” (“em tempos de guerra as leis calam-se”) são expressões a que recorrem frequentemente para resumir a sua posição, querendo com isso dizer que nenhuma lei se deve sobrepor aos interesses e aos decretos do estado que, por sua vez, deve guiar-se sempre nas suas decisões pelo interesse nacional.
Há duas espécies de realismo de alguma forma mescladas nesta exposição: o realismo descritivo e o realismo normativo. O realismo descritivo é o ponto de vista segundo o qual os estados não se comportam ou não podem comportar-se de forma moral. Os estados são motivados por questões de poder, de segurança e de interesse nacional e, para servirem os seus cidadãos de forma eficaz, não podem agir moralmente, pois movem-se numa arena internacional onde existem outros estados dispostos a fazer tudo para atingirem os seus objectivos. Como o nome indica, o realismo descritivo pretende ser factual e, portanto, é constituído por juízos de facto. A sua verdade ou falsidade depende da sua adequação aos factos.
O realismo normativo, pelo contrário, pretende estabelecer como os estados se devem comportar na cena internacional e é completamente independente do realismo descritivo: um pode ser verdadeiro sem que o outro o seja. Segundo o realismo normativo, os estados devem (um dever prudencial e não moral) ser amorais em matéria de relações internacionais, porque, se agirem com base em princípios morais serão explorados por estados menos escrupulosos ou correm o risco de ofender estados e comunidades com outros valores, prejudicando assim a defesa dos seus interesses. É melhor olhar apenas ao interesse nacional e deixar a moral fora das relações internacionais. Esta forma de realismo, em vez de pretender descrever como as coisas são, pretende estabelecer como devem ser. Daí o seu nome.
Os mais importantes defensores clássicos do realismo são Tucídides, Maquiavel e Thomas Hobbes. O realismo também tem defensores nos tempos modernos. O mais importante é, talvez, Hans Joachim Morgenthau (1904–1980), um alemão que se radicou na América pouco antes do começo da Segunda Guerra Mundial e que estabeleceu os princípios pelos quais se guiou a política internacional americana do pós-guerra. O mais conhecido, no entanto, é certamente Henry Kissinger, que foi Secretário de Estado durante as presidências de Nixon e Ford, nos anos setenta do século passado.
O pacifismo, ao contrário do realismo, não separa a ética da guerra. Os pacifistas consideram em geral que a guerra pertence à esfera da moral. A dificuldade está em que, do ponto de vista dos pacifistas, nenhuma guerra tem justificação moral. Seja por razões de princípio seja devido às consequências que dela resultam, a guerra é sempre incorrecta.
O pacifismo moderno é de dois tipos: consequencialista e deontológico. A principal diferença entre estes tipos de pacifismo está na razão evocada para considerar as guerras injustas. O pacifismo consequencialista baseia-se normalmente na alegação que os benefícios da guerra nunca superam os malefícios, ao passo que o pacifismo deontológico parte da ideia que a guerra é intrinsecamente errada porque viola deveres absolutos como o de não matar seres humanos.
Embora o pacifismo moderno seja sobretudo uma teoria secular, as suas origens são religiosas. Muitos dos primeiros cristãos, com base na Bíblia (por exemplo, em Mateus 5:38), pensavam que a mensagem de Cristo proibia completamente a guerra e eram fortemente pacifistas, opondo-se a todo o uso da violência, mesmo para fins exclusivamente defensivos. Esta posição, no entanto, impedia a defesa do mundo cristão dos ataques dos seus inimigos e acabou por levar ao desenvolvimento da terceira teoria ética da guerra que vamos estudar, a teoria da guerra justa.
A teoria da guerra justa é a resposta cristã ao problema moral da guerra. Na sua essência, essa resposta consiste em dizer que a guerra, ao contrário do que pensam os realistas, é abrangida pela moral e que, apesar disso, ao contrário do que pensam os pacifistas, por vezes tem justificação. A teoria opõe-se, assim, tanto ao realismo como ao pacifismo.
Embora tenha antecedentes em Aristóteles e em Cícero, é comum considerar Santo Agostinho o fundador da teoria da guerra justa. Depois dele, outros nomes importantes na tradição cristã da guerra justa são São Tomás de Aquino, Francisco de Vitória (1486–1546) e Hugo Grócio (1583–1645), pensadores que, de uma forma geral, articularam e desenvolveram a teoria. No nosso tempo, devido ao surgimento do armamento nuclear, à intervenção americana na guerra do Vietname e, mais recentemente, aos ataques de 11 de Setembro de 2001, e a guerra do Afeganistão e do Iraque, o interesse pela teoria renovou-se, ao mesmo tempo que perdeu o cunho especificamente cristão para se tornar uma teoria secular, isto é, independente de considerações de carácter religioso.
A influência da teoria tem sido enorme. Está na base das Convenções de Genebra de 1949 e de vários outros protocolos com que a comunidade internacional procura delimitar e regular a prática da guerra. Também há cada vez mais políticos e militares a reconhecer a importância da teoria (embora seja difícil determinar quando isso não é apenas por razões de propaganda). Lembremo-nos do grande esforço que os Estados Unidos fizeram para tentar convencer o resto do mundo da justeza da guerra contra o Iraque e da preocupação dos militares em evitar atingir as populações civis. A opinião pública mundial está também cada vez mais atenta às condições em que as guerras são praticadas exigindo quer que sejam justificadas quer que sejam travadas no respeito pelos direitos humanos.
A teoria da guerra justa estabelece um conjunto de princípios que visam determinar as condições em que a prática da guerra é justa. É costume distinguir entre os princípios que visam determinar quando é legítimo recorrer à guerra (jus ad bellum) e os princípios que procuram estabelecer como conduzir a guerra (jus in bello). Recentemente, alguns pensadores acrescentaram uma terceira categoria, relativa ao que se deve fazer uma vez a guerra terminada (jus post bellum).
As regras do jus ad bellum são dirigidas principalmente aos governantes, uma vez que são eles que, nos estados, têm o poder de declarar a guerra. Se os governantes violam declaradamente estas regras, cometem crimes contra a paz e podem ser julgados pelos seus actos por tribunais internacionais, como foi o caso do antigo dirigente sérvio, Slobodan Milosevic. As regras principais do jus ad bellum são as seguintes:
Para que uma guerra seja justificada estas seis condições têm de ser todas cumpridas. De notar que as primeiras três são regras deontológicas e constituem, portanto, aquilo a que podemos chamar deveres, ao passo que as últimas três são regras consequencialistas, uma vez que tratam das consequências que se espera que resultem da guerra.
O jus in bello respeita à justiça na guerra, àquilo que é permitido fazer na guerra. A responsabilidade pelo cumprimento das regras do jus in bello recai principalmente naqueles que formulam e executam a estratégia de guerra, isto é, os militares. Quando algumas dessas regras é violada, os responsáveis pela violação podem ser julgados por crimes de guerra, seja por tribunais nacionais seja, desde 1 de Julho de 2002, pelo Tribunal Penal Internacional, um tribunal da ONU criado para julgar este tipo de crimes. Um exemplo claro de violação das regras do jus in bello foi a tortura de prisioneiros iraquianos por soldados americanos na prisão de Abu Ghraib, em 2003. Um exemplo mais antigo, mas igualmente famoso pela sua barbárie, foi o massacre de My Lai, em que cerca de 500 camponeses vietnamitas indefesos foram mortos por soldados americanos, durante a guerra do Vietname. As regras do jus in bello são as seguintes:
A maior parte dos especialistas pensa que as regras do jus ad bellum e do jus in bello não têm qualquer relação. Uma consequência interessante desta ideia é que um estado pode combater justamente uma guerra injusta (isto é, para a qual não tem causa justa) ou, inversamente, combater de forma injusta (violando as regras do jus in bello) uma guerra justa.
O jus post bellum refere-se à justiça durante a fase final da guerra, quando esta está já decidida e as operações bélicas propriamente ditas estão a terminar ou já terminaram. Basicamente, trata-se de saber o que fazer uma vez vencida a guerra. Certos autores têm vindo a defender que a teoria da guerra justa, que tem sido tão eficaz a estabelecer as normas para as fases anteriores da guerra, deve fazê-lo também para esta última fase. Esta é, no entanto, a parte da teoria a que até agora foi dada menos atenção e, por isso, não há para ela, como para as anteriores, um conjunto definido de regras aceite por todos os teóricos (na verdade, alguns teóricos ignoram mesmo completamente o jus post bellum). Algumas ideias importantes têm, no entanto, sido propostas:
A teoria da guerra justa não visa justificar ou impedir a guerra quaisquer que sejam as circunstâncias. Não é um cheque em branco nem um cartão vermelho. A teoria da guerra justa é antes um instrumento que permite aos decisores políticos e àqueles que têm a responsabilidade de conduzir a guerra tomar decisões de acordo com um conjunto de regras que visam garantir a correcção dessas decisões, ao mesmo tempo que permite aos cidadãos em geral apreciar a correcção das decisões tomadas. Num mundo em que as guerras são uma presença constante, é preferível ter algumas regras que permitam determinar quando a guerra é ou não justificada a não ter quaisquer regras, como resulta do pacifismo e do realismo e, na prática, dar completa liberdade aos decisores políticos e aos exércitos no terreno para agirem como muito bem entenderem. Afinal, nem o realismo nem o pacifismo permitem justificar e explicar a condenação geral dos acontecimentos da prisão de Abu Ghraib.
Álvaro Nunes