A lógica formal e a lógica informal têm como objectivo distinguir os argumentos válidos dos argumentos inválidos e os argumentos bons dos argumentos maus. Quer no caso da lógica formal quer no caso da lógica informal, trata-se de estabelecer critérios objectivos que permitam saber, com o maior rigor possível, quando a conclusão de um argumento é verdadeira ou provável, caso as premissas também o sejam. Contudo, a lógica formal e a lógica informal não são as únicas disciplinas que estudam os argumentos. Para além delas há também outra disciplina que estuda os argumentos. A esta disciplina dá-se o nome de retórica e é vulgarmente caracterizada como a arte da persuasão, isto é, a arte que estuda os procedimentos que permitem a um orador fazer um auditório aderir aos pontos de vista que defende. Assim, apesar de, tal como a lógica formal e informal, a retórica também estudar os argumentos, a finalidade desse estudo é completamente diferente da daquelas disciplinas, uma vez que o seu objectivo não é descobrir e estabelecer as condições que permitem saber que determinadas proposições são verdadeiras ou plausíveis, mas tentar compreender e usar a capacidade persuasiva da argumentação na comunicação.
Desde o tempo de Homero (século IX ou VIII a.C.) que a capacidade de persuadir do discurso fascinou os gregos, mas o seu interesse por essa capacidade só se desenvolveu a partir do momento em que a democracia substituiu os regimes monárquicos e oligárquicos nalgumas das principais cidades da Grécia. Segundo uma tradição que remonta a Aristóteles, a retórica teria sido inventada por Empédocles de Agrigento, filósofo pré-socrático do século V a.C. de quem Górgias, um dos mais reputados professores de retórica, teria sido discípulo. Outra tradição atribui a origem da retórica a Córax e Tísias, que, após a queda dos tiranos e a instauração da democracia em várias cidades da Sicília em meados do século V a.C., teriam sido os primeiros a escrever um tratado de retórica para responder às necessidades dos litigantes numa questão de disputa de terras.
Qualquer que seja a tradição que esteja correcta, com a democracia, a persuasão passou a estar no centro da acção política e social e o seu domínio a ser fundamental nos tribunais, para convencer os juízes, e nas assembleias, para persuadir o povo. Isso fez surgir, um pouco por toda a Grécia, uma classe de professores itinerantes, “sofistas” e “mestres de retórica”, os mais famosos dos quais foram Protágoras e Górgias, que, ao mesmo tempo que ensinavam aos jovens ricos que pretendiam fazer carreira política a arte do discurso, procuravam compreender o poder persuasivo do mesmo. As ideias relativistas de Protágoras e Górgias, pondo em causa a existência de verdades e valores objectivos e fazendo da verdade uma construção do momento que depende da persuasividade do orador, fornecem a justificação teórica do uso generalizado que os gregos irão daqui em diante fazer da retórica. Ao mesmo tempo, os sofistas e os retores investigaram alguns dos aspectos centrais do discurso e da língua, como a erística (arte da discussão com o objectivo de vencer uma contenda verbal) e a gramática, fazendo desse estudo uma disciplina teórica e uma técnica que engloba, além do ensino, teorias sobre a persuasão e sobre o discurso e pesquisas sobre técnicas de argumentação.
Esta actividade simultaneamente de investigação e ensino produziu oradores e retores ilustres como Lísias (c. 445-380 a.C.), Isócrates (436-338 a.C.) e Demóstenes (384-322 a.C.), que continuaram a cultivar e a desenvolver as técnicas retóricas dos seus mestres. Contudo, foi apenas com Aristóteles (384-322 a.C.), que curiosamente não era sofista nem retor, mas filósofo, que a retórica grega clássica atingiu o ponto máximo de sofisticação e sistematização com que entrou no mundo helenístico e romano.
Durante o período helenístico, a retórica, com autores como Teofrasto (370–285 a.C.), que foi discípulo de Aristóteles, e Hermágoras de Temnos (século II a.C.), continuou a desenvolver-se no sentido de um sistema global, aprofundando as antigas técnicas e integrando novas, articulando conhecimentos, introduzindo inovações no estilo, na argumentação e na acção oratória. Mas é com Cícero (106-43 a.C.), em plena República romana, que a retórica volta a encontrar um orador do nível dos principais oradores gregos e, ao mesmo tempo, um teórico, historiador, professor e filósofo da retórica de grande estatura. Cícero procurou também superar o conflito entre filosofia e retórica, entre filósofos e oradores, o que faz dele, o antecessor mais ilustre na antiguidade daqueles que, actualmente, embora em moldes diferentes, procuram fazer o mesmo.
Fosse nos tribunais, no senado ou nas assembleias, os discursos tinham uma enorme importância na política romana e, por isso, quer durante a república quer durante o império, a retórica ocupou um lugar de primeira ordem na educação e na vida pública. Como outrora em Atenas, mas de forma mais sofisticada e sistemática devido à multiplicação de tratados e manuais, os membros das classes superiores recebiam desde pequenos uma educação retórica que visava prepará-los para o exercício de cargos públicos, que, previsivelmente, viriam a desempenhar em adultos.
Com o advento do cristianismo, a retórica foi usada, não sem relutância, por autores como Tertuliano (c. 155-225 d. C.), para divulgar e espalhar a nova religião. A partir do momento em que a religião cristã se tornou a religião oficial, a retórica grega e romana cedeu o lugar à “verdade revelada” e à retórica cristã (por exemplo, de Santo Agostinho), para, com o fim do império romano e do mundo antigo, ser completamente absorvida e integrada nela.
Este ofuscamento rápido, se tivermos em conta a importância que tinha na vida pública tanto do mundo romano como grego, da retórica antiga pela retórica cristã vai manter-se durante toda a idade média. É só com o renascimento e a redescoberta pelo mundo cristão dos autores antigos que o interesse pela retórica aumenta. Esse interesse, no entanto, deu origem, no contexto mais geral dos conflitos políticos e religiosos da época (reforma e contra-reforma), sobretudo a uma retórica literária, a uma querela entre partidários de uma retórica do ethos e partidários de uma retórica do pathos e, com Pedro Ramus (1515–1572), que separa as componentes lógicas da retórica das estéticas, a uma cisão, que na opinião de autores contemporâneos como Perelman, esteve na origem do declínio da retórica.
A partir do século XVII, a retórica vai ser posta ao serviço do poder pontifício e das monarquias. A aristocracia fará dela um instrumento de distinção social, o que, em conjunto com a ascensão do método científico e a relevância dada às provas e à verdade, leva ao seu declínio, que se manterá no século XIX, com a sua condenação pelos românticos em nome de um ideal de sinceridade, e em grande parte do século XX. Na segunda metade deste século, primeiro com Chaïm Perelman (1912–1984) e Stephen Toulmin (n. 1922), e depois com Hans-Georg Gadamer (1900–2002) e o Grupo µ, assiste-se a um recrudescimento do interesse pela retórica e a uma tentativa de, embora noutros moldes, a reabilitar.
A palavra “retórica” deriva da palavra grega rhêtorikê, que significa “arte da palavra”. Mas o que é a retórica e como podemos defini-la?
Ao dissertar sobre a natureza da retórica, Quintiliano reflecte sobre as várias definições desta, e deixa-nos perceber as seguintes quatro como as mais representativas das convenções retóricas clássicas:
- A definição atribuída a Córax e Tísias, Górgias e Platão: geradora de persuasão;
- A definição de Aristóteles: a retórica parece capaz de descobrir os meios de persuasão relativos a um dado assunto;
- Uma das definições atribuídas a Hermágoras: a faculdade de falar bem no que concerne aos assuntos públicos;
- A definição de Quintiliano, na linha dos retóricos estóicos: a ciência de falar bem.
Manuel Alexandre Júnior, in Aristóteles, Retórica, p. 15 (adaptado).
Como se pode ver, esta não é uma questão de fácil resposta e, mesmo na antiguidade, aqueles que estudaram o assunto discordavam acerca do que é a retórica. Contudo, ao lê-lo com atenção é possível verificar que as duas primeiras definições dão ênfase à persuasão, enquanto as duas últimas dão mais relevo ao falar bem. Claro que quem fala bem, em geral, persuade e quem persuade, em geral, fala bem. Porém, isso não significa que se trate apenas de uma distinção subtil e sem importância, porque aqueles que davam mais relevo à persuasão tendiam a dar mais importância às relações da retórica com a argumentação, enquanto aqueles que davam ênfase ao falar bem tendiam a dar mais importância às figuras do discurso, à eloquência e a outros aspectos da comunicação, como o tom de voz e a posição das mãos. No entanto, a definição mais comum e mais aceite é a da retórica como arte da persuasão, entendendo-se o termo “arte”, não no sentido moderno, que o aproxima das belas-artes, mas no sentido antigo de uma técnica ou de um sistema de regras práticas que possibilitam ao orador obter o assentimento do auditório por intermédio do discurso. A persuasão é usada em domínios da vida pública em que é possível deliberar, quando se trata dos interesses da sociedade e dos cidadãos, e em assembleias públicas e tribunais, embora, também possa ser usada em diálogos e em conversas privadas. Em resumo, a retórica é uma técnica ou um sistema de regras de comunicação que visam a persuasão e tem por base um conhecimento prático ou, na opinião de alguns, empírico. Tanto esta técnica ou sistema de comunicação como o conhecimento que está na sua base podem ser ensinados.
Esta caracterização da retórica é a mais comum e, de certa forma, clássica. Contudo, o interesse que a retórica despertou nos últimos anos voltou a chamar a atenção para o problema da sua definição. Como seria de esperar, surgiram outras definições, que, em geral, procuram realçar um ou outro aspecto da retórica que já se encontra na definição clássica. É o caso de Chaïm Perelman, que pretende desenvolver a definição de Aristóteles e pensa que a retórica é o estudo das técnicas discursivas que visam provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas, e do Grupo µ, que faz da retórica o estudo do estilo e das figuras e a vê como aquilo que faz com que um texto seja literário.
A retórica antiga corresponde, como vimos, a um período que vai de Empédocles ou Córax e Tísias até ao fim da antiguidade. Durante estes cerca de mil anos, foram muitos os oradores, retores e até filósofos que escreveram sobre a retórica. Assim, em rigor, não há uma retórica clássica, isto é, um sistema de retórica único e uniforme, mas tantos sistemas quanto o número daqueles que na antiguidade a estudaram com alguma atenção. Apesar disso, há um conjunto de características principais que a maior parte dos autores antigos concorda em atribuir à retórica. Grande parte dessas características foram pela primeira vez investigadas de forma sistemática por Aristóteles. Por esse motivo, o nosso trabalho consistirá em larga medida no estudo do que Aristóteles escreve na obra Retórica, tendo em conta, quando isso se justificar, o contributo dos autores gregos e latinos posteriores.
Pode parecer que a Retórica de Aristóteles tem o inconveniente de ser historicamente próxima da época em que a retórica surgiu e que, devido a isso, lhe escapam todos os desenvolvimentos que se seguiram. Mas não só, por um lado, depois dele as inovações teóricas não foram em grande número, como, por outro, a sua retórica representa o ponto culminante da retórica antiga. Além disso, a importância de Aristóteles para a retórica, antiga ou contemporânea, é tal que, se tivéssemos de identificar a retórica com o sistema de um autor, esse sistema seria, sem qualquer dúvida, o seu.
Para Aristóteles, a retórica é uma arte que trata de questões que são do domínio do conhecimento comum e para as quais não existe arte específica, isto é, questões que não têm resposta científica e que podem ser objecto de deliberação por parte de um auditório. Este auditório é normalmente constituído por pessoas simples, facilmente influenciáveis, e incapazes de ver muitas coisas ao mesmo tempo ou de seguir longas cadeias de raciocínio. Por conseguinte, é a natureza das questões e do auditório, que tornam a retórica necessária. Ao contrário de filósofos seus contemporâneos tão importantes como Platão, Aristóteles considera a retórica útil porque:
Apesar desta utilidade, a retórica também pode ser usada de forma injusta e causar grandes danos. É, por conseguinte, um instrumento que tanto pode ser usado para o bem como para o mal. No entanto, não é apenas com a retórica que isto acontece. Ela encontra-se na mesma situação que a maioria dos outros bens e em particular que os bens mais úteis, como a força, a saúde, a riqueza e o talento militar, que, se forem usados de forma justa, podem ser muito úteis, mas, se forem usados de forma injusta, poderão causar muitos prejuízos.
Aristóteles trata a retórica e o discurso persuasivo como um domínio da realidade sobre o qual é necessário fazer uma investigação que permita a constituição de um saber. Consequentemente, define a retórica, não como a arte da persuasão, mas como a arte que permite determinar quais são os meios de persuasão mais adequados a cada caso.
Entendamos por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir. Esta não é seguramente a função de outra arte; pois cada uma das outras é apenas instrutiva e persuasiva nas áreas da sua competência; como, por exemplo, a medicina sobre a saúde e a doença, a geometria sobre as variações que afectam as grandezas, e a aritmética sobre os números; o mesmo se passando com todas as outras artes e ciências. Mas a retórica parece ter, por assim dizer, a faculdade de descobrir os meios de persuasão sobre qualquer questão dada. E por isso afirmamos que, como arte, as regras se não aplicam a qualquer género específico de coisas. (Aristóteles, Retórica, I, 2.)
A retórica é, portanto, a arte que estuda os meios de persuasão. Contudo, isso não significa que o seu objectivo seja apenas teórico. Aquele que os conhece é também aquele que está em melhores condições para aplicá-los e, por consequência, para ser persuasivo. Por isso, a retórica não é apenas uma arte que visa compreender o discurso persuasivo. É também uma técnica que permite ser persuasivo.
Existem, segundo Aristóteles, três géneros de discurso retórico: o deliberativo, o judicial e o epidíctico. Cada um destes géneros tem características específicas que ajudam a caracterizá-los e, ao mesmo tempo, a distingui-los uns dos outros. O quadro abaixo apresenta as características principais de cada um deles.
Discurso deliberativo | Discurso judicial | Discurso epidíctico | |
Auditório | Membros da assembleia | Juízes | Espectadores no conselho |
Tempo | Futuro | Passado | Presente |
Intenção | Aconselhar/dissuadir | Acusar/defender | Elogiar/censurar |
Objecto | Conveniente/prejudicial | Justo/injusto |
Virtude/vício
Belo/feio |
Método | Exemplo | Entimema | Amplificação |
O discurso deliberativo tem por auditório os membros da assembleia, a quem procura aconselhar ou dissuadir, mostrando por meio do exemplo que uma qualquer acção possível futura (uma vez que só podemos deliberar sobre o que ainda não aconteceu) é conveniente ou prejudicial. Esta é a forma por excelência do discurso político.
O discurso judicial é o usado pelos oradores nos tribunais. Tem por auditório os juízes e como intenção acusar ou defender, mostrando por meio do entimema que uma determinada acção ocorrida no passado (uma vez que só podemos julgar o que já aconteceu) é justa ou injusta.
O discurso epidíctico tem por auditório os espectadores no conselho e a sua intenção é elogiar ou censurar, mostrando por meio da amplificação que alguém, devido às acções que praticou, é virtuoso ou vicioso, belo ou feio.
De notar, no entanto, que algumas das características que aparecem no quadro relacionadas com um género de discurso (como o entimema ou o passado com o género judicial) não são exclusivas desse género. O entimema, por exemplo, também pode ser usado no discurso deliberativo, embora não constitua aí o meio principal de prova; e o discurso epidíctico, embora incida sobretudo sobre acções do presente, também pode incidir sobre acções já ocorridas.
Para persuadir, o orador pode recorrer a dois tipos de provas: as provas não técnicas e as provas técnicas. As provas não técnicas, que são específicas da retórica judicial, são aquelas que já existem e que o orador só tem de usar no seu discurso. São provas não técnicas as leis, os testemunhos, os contratos, as confissões sob tortura e os juramentos.
As provas técnicas são aquelas que podem ser preparadas pelo orador. Estas são de três espécies:
No primeiro caso, a persuasão é obtida quando o discurso é proferido de maneira a deixar no auditório a impressão de que o carácter do orador o torna digno de fé. No segundo, a persuasão é obtida quando o auditório é levado pelo discurso a sentir emoções. E, no terceiro, quando se mostra pelo discurso a verdade ou o que parece verdadeiro. Neste último caso, os meios de persuasão são:
Embora existam outras formas de persuadir um auditório, para Aristóteles, o método apropriado é a argumentação retórica, que, como já vimos, é constituída por entimemas e exemplos.
O entimema é uma forma de argumento dedutivo que permite no domínio dos discursos públicos demonstrar ou provar uma proposição a partir de premissas que são sempre ou quase sempre prováveis. Como todos os argumentos, o entimema tem premissas e conclusão. Mas distingue-se dos outros argumentos e, em particular, dos outros argumentos dedutivos, pelo seguinte:
Normalmente, um entimema é constituído pela proposição que se quer provar e por uma outra que fornece a razão ou justificação da primeira, como neste exemplo: “Ela deu à luz, uma vez que tem leite”..
Os entimemas têm origem em dois tipos de dados: probabilidades e sinais. A probabilidade é o que geralmente acontece, mas não o que acontece sempre e, por isso, os entimemas que têm premissas prováveis têm também conclusões prováveis. Os sinais estabelecem uma relação entre dois factos em que, a partir da existência de um, se estabelece a existência do outro. Se esta relação é necessária, o sinal chama-se tekmérion(prova, indício) e dá origem a um argumento irrefutável; se não é necessária, a conclusão é apenas provável. São exemplos de sinais:
Em qualquer dos casos, as premissas têm de ser opiniões aceites pelo auditório do orador. No caso das probabilidades, o auditório deve aceitar que é provável que algo ocorra e, no caso dos sinais, deve acreditar que existem e aceitar que indicam a existência de outra coisa.
Há duas espécies de entimemas: os demonstrativos e os refutativos. Os primeiros são aqueles que demonstram que algo é ou não é, enquanto os segundos são aqueles que refutam que algo seja ou não seja. Tanto no entimema demonstrativo como no refutativo, a conclusão é obtida a partir de premissas com as quais quer o orador quer o seu adversário estão de acordo, mas o entimema refutativo conduz a conclusões com que o adversário está em desacordo.
Além dos entimemas, que são argumentos válidos, há também os entimemas aparentes. Estes entimemas são os que parecem e pretendem ser formas válidas de dedução, mas que na verdade não são. Fazem parte desta categoria algumas das falácias estudadas na lógica informal.
A outra forma de prova admitida por Aristóteles é o exemplo. O exemplo é semelhante à indução do particular para o particular e pode basear-se em factos passados ou em histórias inventadas pelo próprio orador. Neste último caso, os exemplos podem ser parábolas ou fábulas. Eis como Aristóteles ilustra o uso do exemplo:
Quando os dois termos são do mesmo género, mas um é mais conhecido do que o outro, então há um exemplo; como quando se afirma que Dionísio tenta a tirania porque pede uma guarda; pois também antes Pisístrato, ao intentá-la, pediu uma guarda e se converteu em tirano mal a conseguiu, e Teágenes fez o mesmo em Mégara; estes e outros que se conhecem, todos eles servem de exemplo para Dionísio, de quem ainda se não sabe se é essa a razão por que a pede. (Aristóteles, Retórica, I, 2.)
Aos entimemas e aos exemplos Aristóteles junta ainda as máximas. As máximas são afirmações gerais que podem ser aceites ou rejeitadas e que se referem a acções. No entanto, diz Aristóteles, se à máxima se juntar a causa e o porquê, transforma-se num entimema. Assim, a máxima é uma espécie de entimema truncado, isto é, uma afirmação cuja justificação é omitida. Por exemplo:
“Não há homem que seja inteiramente feliz” e “Não há homem que seja livre” são máximas, mas passam a entimemas, se lhe acrescentarmos “Porque o homem é escravo da riqueza ou da fortuna”. (Aristóteles, Retórica, II, 21)
Aristóteles considera que as máximas são muito úteis porque, por um lado, os juízes, devido a terem um espírito rude e serem incultos, sentem-se satisfeitos por ouvir alguém, falando em geral, ir ao encontro das suas opiniões pessoais e porque, por outro, as máximas conferem ao discurso um carácter ético, isto é, se forem honestas farão com que o carácter do orador pareça honesto.
O segundo tipo de prova técnica é a que depende do carácter do orador. Aristóteles, como vimos, privilegia o primeiro tipo, mas o facto de o auditório se deixar muitas vezes persuadir mais pela imagem que faz do orador, por aquilo que pensa ser o seu carácter, do que pelos seus argumentos faz do ethos um elemento que o orador não pode desprezar se quiser ter a garantia de que é persuasivo. O orador persuade por intermédio do carácter moral, do ethos, quando é visto pelo auditório como alguém que inspira confiança. Para isso, é preciso que o discurso, mesmo na ausência de provas pelo logos, crie no auditório uma imagem do orador como pessoa prudente, virtuosa e benevolente. Esta imagem tem de ser, segundo Aristóteles, a consequência do discurso do orador e não de aspectos anteriores e exteriores a esse discurso. É por este motivo que o ethos é uma prova técnica.
Três são as causas que tornam persuasivos os oradores e a sua importância é tal que por elas nos persuadimos, sem necessidade de demonstrações. São elas a prudência, a virtude e a benevolência. Quando os oradores recorrem à mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que dão conselhos, fazem-no por todas essas causas ou por algumas delas. Ou é por falta de prudência que emitem opiniões erradas ou então, embora dando uma opinião correcta, não dizem o que pensam por maldade; ou sendo prudentes e honestos não são benevolentes; por isso, é admissível que embora sabendo eles o que é melhor, não o aconselhem. Além destas não há outra causa. Forçoso é, pois, que aquele que aparenta ter todas estas qualidades inspire confiança nos que o ouvem. (Aristóteles, Retórica, II, 1.)
O terceiro tipo de prova é o que se relaciona com o auditório. Se quer ser persuasivo, o orador deve procurar suscitar sentimentos e emoções no auditório que o predisponha de forma favorável para a tese que defende. Embora critique os que o antecederam no estudo da retórica por terem dado mais importância a esta prova e por terem descurado o logos, que, segundo ele, é a prova retórica por excelência, Aristóteles reconhece a importância de emoções como a ira, a compaixão e o medo para a persuasão do auditório.
O discurso será emocional se, relativamente a uma ofensa, o estilo for o de um indivíduo encolerizado; se relativo a assuntos ímpios e vergonhosos, for o de um homem indignado e reverente; se sobre algo que deve ser louvado, o for de forma a suscitar admiração; com humildade, se sobre coisas que suscitam compaixão. E de forma semelhante nos restantes casos. O estilo apropriado torna o assunto convincente, pois, por paralogismo, o espírito do ouvinte é levado a pensar que aquele que está a falar diz a verdade. Com efeito, neste tipo de circunstâncias, os ouvintes estão em tal estado que pensam que as coisas são assim, mesmo que não sejam como o orador diz; e o ouvinte compartilha sempre as mesmas emoções que o orador, mesmo que ele não fale. É por esta razão que muitos impressionam os ouvintes com altos brados. (Aristóteles, Retórica, III, 7.)
Existe uma relação estreita entre o logos, o ethos e o pathos, uma vez que as emoções (pathos) que o discurso (logos) do orador suscita no auditório têm um papel importante na construção da imagem que este faz do carácter (ethos) do orador e, desse modo, da sua capacidade de persuasão.
A retórica pode ser dividida em cinco partes que correspondem às fases pelas quais passa quem constrói um discurso. Embora muitos elementos desta divisão já estejam presentes na obra de Aristóteles, é só na Retórica a Herénio, um tratado latino de autor desconhecido do século I a.C., que aparece pela primeira vez de forma clara. As cinco partes são a invenção, a disposição, a elocução, a memória e a acção.
Nesta parte, o orador procura descobrir e conceber os argumentos mais apropriados à tese que pretende defender. Para isso, deve ter em conta o tema que vai abordar, o género (deliberativo, judicial e epidíctico) a que este tema pertence e qual, dos três tipos de provas retóricas (a prova pelo logos, pelo ethos e pelo pathos), é o mais persuasivo no caso em questão. A invenção está relacionada com as noções de lugar e de estado da causa.
Um lugar (topos em grego) é um tipo de argumento provável, um esquema ou quadro argumentativo que pode assumir os mais diversos conteúdos e de onde, de acordo com o tema a tratar pelo discurso, é possível fazer derivar argumentos retóricos. Por exemplo, o lugar do mais e do menos permite fazer argumentos como o seguinte:
Se nem os deuses sabem tudo, menos ainda os homens. (Aristóteles, Retórica, II, 23.)
Existem dois tipos de lugares, os lugares comuns e os lugares específicos.
Os lugares comuns são os que podem ser usados nos três géneros de discurso retórico (deliberativo, judicial e epidíctico). Os argumentos fundados em relações de causa e efeito, em relações temporais, em definições e em analogias são tipos de argumentos utilizados nos três géneros de retórica.
Os lugares específicos são aqueles que tratam de temas que são próprios de um determinado género retórico. Assim, o género deliberativo utiliza argumentos que se fundam na noção de utilidade, o género judicial argumentos que se fundam na noção de justiça e o género epidíctico argumentos que fazem apelo a qualidades morais (virtude e vício) ou estéticas (belo e feio). Segundo Aristóteles, os lugares específicos são aqueles de que é possível derivar mais entimemas.
A teoria dos estados da causa aplica-se sobretudo ao discurso judicial. Foi elaborada por Hermágoras de Temnos no século II a.C. e tem por fim determinar com exactidão o ponto a debater de modo a permitir que o orador escolha a sua linha de argumentação. Normalmente distinguem-se quatro estados da causa principais:
Nesta parte, o orador determina a forma como os argumentos devem estar ordenados no discurso, isto é, elabora o plano do discurso. Ao longo dos tempos foram propostos diversos planos, mas o mais comum tinha cinco partes: o exórdio ou proémio, a narração, a confirmação ou prova, a refutação e a peroração ou epílogo.
Esta parte da retórica trata da redacção e do estilo do discurso. A elaboração do discurso centra-se em duas questões essenciais: a clareza de expressão e o ornamento. O ornamento não tem apenas uma finalidade estética. A sua finalidade é também fazer do discurso uma arma eficaz, capaz de vencer no debate. Para isso, com base na noção de conveniência, os retores latinos formularam a teoria dos três estilos. O princípio da conveniência (decorum) estabelece que o discurso deve variar segundo as circunstâncias, o que, na prática, consiste numa adaptação em função do seguinte:
A teoria dos três estilos aparece pela primeira vez na Retórica a Herénio e distingue:
O quadro seguinte mostra a relação do estilo com outros aspectos fundamentais do discurso retórico.
Estilo | Finalidade | Prova | Parte do discurso |
Simples | Explicar | Logos | Narração, confirmação e peroração |
Médio | Agradar | Ethos | Exórdio |
Elevado | Comover | Pathos | Peroração |
O orador deve adoptar o estilo que melhor lhe permite atingir o objectivo que tem em vista: o elevado para comover, sobretudo na peroração; o simples para informar e explicar, sobretudo na narração e na confirmação; o médio para agradar, sobretudo no exórdio. Os retores antigos deram uma tradução geográfica a esta divisão, definindo igualmente três estilos regionais, muito semelhantes aos três níveis que acabámos de ver:
As figuras de estilo são a principal forma de embelezar e de dar vivacidade ao discurso. Os oradores antigos viam as figuras como um meio de impressionar, de seduzir e de emocionar, isto é, de persuadir. Por isso, a função das figuras não é meramente decorativa. Pelo contrário, contribuem para que o discurso seja uma arma eficaz no debate oratório. As figuras são muito numerosas e não há uma classificação que seja universalmente aceite. Cícero distingue as figuras de pensamento, como a ironia e a alegoria, e as figuras de palavras, como o trocadilho e a metáfora. De uma maneira geral, os retóricos latinos insistiram na capacidade que as figuras têm de provocar a convicção do auditório metendo-lhe “pelos olhos dentro”, com força e de imediato, o que está em questão.
Os oradores da antiguidade tinham de pronunciar com frequência longos discursos sem o auxílio de notas escritas. Isso levou a que dessem grande atenção à memorização. Alguns autores latinos, como Cícero, viam a memória apenas como uma aptidão natural e não como uma técnica, pelo que não a consideravam uma parte da retórica. Mas outros, como Quintiliano, consideravam-na também uma técnica que pode ser aprendida. Um dos processos que Quintiliano indicava para memorizar um discurso é o da mnemotecnia, que consiste em decompor o discurso em partes, que são aprendidas de cor, às quais são associados sinais mentais que facilitem a sua recordação na altura certa. Mas, segundo ele, a memória depende também do estado físico do orador (é necessário ter dormido bem e estar de boa saúde) e da estrutura do discurso (isto é, da sua maior ou menor coerência).
A acção designa a pronunciação efectiva do discurso. Trata-se de um factor essencial da persuasão retórica, na medida em que a imagem do orador e, portanto, a sua credibilidade, dependem, além do ethos, da sua presença física face ao auditório. Por esta razão, a teoria da acção interessa-se pelos diferentes elementos da presença física do orador: por exemplo, a respiração, a colocação e o tom de voz, a mímica da face, a atitude do corpo e os gestos.
A pronunciação assenta na voz, ou seja, na forma como é necessário empregá-la de acordo com cada emoção (por vezes forte, por vezes débil ou média) e como devem ser empregues os tons, ora agudos, ora graves ou médios, e também quais os ritmos de acordo com cada circunstância. (Aristóteles, Retórica, III, 1.)
No final dos anos 50 e princípios dos anos 60 do século XX, o interesse pela retórica renovou-se com o surgimento do que ficou conhecido como a nova retórica. Não se tratava de um movimento homogéneo, mas de várias correntes que partilhavam entre si um interesse muito diverso pela retórica. Uma dessas correntes incluía o Grupo μ e Roland Barthes e reduzia a retórica ao conhecimento dos procedimentos da linguagem que são característicos da literatura, isto é, às figuras de estilo.
A esta corrente de tendência literária opunha-se, no entanto, a de Chaïm Perelman, cuja obra principal, escrita com Lucie Olbrechts-Tyteca, é o Tratado de Argumentação publicado em 1958. Na tradição de Aristóteles, Perelman vê na retórica a teoria do discurso persuasivo. O seu ponto de partida é o problema da justificação dos juízos de valor — e, por extensão, da moral, do direito e da política — e procura uma lógica paralela à lógica demonstrativa, uma lógica dos juízos de valor que irá identificar com a retórica. A obra de Perelman é responsável pelo ressurgimento do interesse e pela renovação da retórica no século XX. É essa obra que vamos agora estudar.
Nas suas obras sobre a lógica, normalmente agrupadas com o título de Organon, Aristóteles distingue dois tipos de raciocínios: aqueles a que chama analíticos e aqueles a que chama dialécticos. Os raciocínios analíticos são os que constituem formas de inferência válida, isto é, que têm uma forma tal que sempre que as suas premissas são verdadeiras a conclusão é também verdadeira. Devido a esta propriedade, Aristóteles chamava a estes raciocínios silogismos científicos. Os silogismos científicos são demonstrativos e impessoais, porque, devido à sua forma, sendo as premissas verdadeiras, provam a conclusão, que é independente da opinião humana. Quer queiramos quer não, a conclusão de um silogismo analítico com premissas verdadeiras só pode ser verdadeira e a sua recusa implicaria necessariamente uma contradição. Os silogismos dialécticos, pelo contrário, são aqueles cujas premissas são apenas prováveis, ou geralmente aceites, seja por todos os seres humanos seja pela maioria ou apenas por alguns. Para Perelman, isso significa que, ao contrário do que acontece com os silogismos científicos, os silogismos dialécticos têm por fim persuadir ou convencer. Não constituem inferências formais, válidas e constringentes, mas apenas argumentos que procuram fazer admitir teses, que podem ser ou não controversas e que, consoante os casos, são mais ou menos verosímeis, mais ou menos fortes e convincentes. Por este motivo, os argumentos dialécticos não são nem demonstrativos nem impessoais. São raciocínios persuasivos, que incidem sobre a opinião e que, por isso, devem ser distinguidos dos analíticos, que incidem sobre a verdade.
Esta distinção aristotélica que, embora desse a primazia ao conhecimento científico, concedia um lugar importante à dialéctica foi posta em causa por Descartes. Com Descartes a lógica passou a identificar-se apenas com a lógica formal, isto é, com os raciocínios analíticos de Aristóteles. Ao tomar como modelo “o método dos geómetras”, ao usar como critério de verdade a prova e ao ter como objectivo a descoberta da verdade em todas as coisas, Descartes baniu do domínio do conhecimento qualquer saber que, como o que deriva da dialéctica, se apresente como meramente verosímil ou provável. As regras do método cartesiano são em larga medida a consequência da aplicação desta ideia.
Se Descartes se tivesse limitado a aplicar o método ao discurso matemático, não haveria problema. Porém, Descartes foi mais longe e fez das suas regras regras universalmente válidas, isto é, regras que podem ser aplicadas em todo e qualquer domínio do conhecimento humano, tanto teórico como prático. Para Perelman, este procedimento é incorrecto, uma vez que raciocinar não consiste apenas em fazer cálculos nem em passar dos axiomas e das regras de um sistema formal para os teoremas que daí podem ser derivados. As consequências danosas desta perspectiva da racionalidade são, segundo Perelman, agravadas pelo facto de a lógica moderna, tal como se desenvolveu desde meados do século XIX, se ter identificado, devido à influência de Kant e dos lógicos matemáticos, com a lógica formal e ter negligenciado completamente os raciocínios dialécticos. Uma consequência desta identificação da lógica com a lógica formal foi a desvalorização da retórica, que passou a ser vista como tendo por fim agradar ou, na melhor das hipóteses, fazer aceitar verdades estabelecidas por intermédio de métodos que tinham por base a lógica formal. Mas, a consequência principal é que os processos pelos quais confrontamos argumentos a favor ou contra uma tese com o objectivo de persuadir ou convencer um auditório da sua razoabilidade, com que tentamos mostrar a conformidade das nossas acções com as nossas convicções e procuramos justificar as nossas convicções, ficam sem justificação racional, uma vez que escapam à lógica formal e à demonstração matemática. Na opinião de Perelman, a desvalorização da dialéctica e da retórica — primeiro com Pedro Ramus, depois com Descartes e, por fim, com os lógicos de formação matemática do século XIX — teve como consequência a negação da razão prática e a impossibilidade da constituição de uma filosofia moral, de uma filosofia política e de uma filosofia do direito. Por outras palavras, Perelman pensa que a redução da verdade à prova, que caracterizou o pensamento ocidental nos últimos séculos, ao recusar aquilo a que chama uma lógica própria da persuasão — que é a da dialéctica e da retórica —, teve como consequências a exclusão da ética, do direito e da política do domínio da racionalidade e o abandono a factores irracionais e arbitrários, à força e à violência, a solução dos conflitos de carácter prático.
Foi com esta dificuldade que Perelman se viu confrontado quando, de um ponto de vista positivista, procurou raciocinar sobre os valores. Os positivistas — os últimos e mais extremos representantes da corrente de pensamento que reduz a lógica à lógica formal e limita a sua aplicação às ciências positivas —, para quem os juízos de valor são apenas a expressão de emoções irracionais sem qualquer valor cognitivo, pensavam ser impossível a constituição de uma filosofia prática que, ao mesmo tempo, guie racionalmente a acção humana e justifique a moral, o direito e a política. Este cepticismo, que, segundo Perelman, é uma consequência do pensamento cartesiano e conduz à mais completa arbitrariedade no domínio da prática é inaceitável. Foi esta conclusão que o levou a procurar constituir uma lógica dos juízos de valor.
Para sua surpresa, Perelman descobriu que não existe uma lógica dos juízos de valor e que a lógica que procurava nada mais era do que a antiga retórica greco-latina. Quando se trata de valores, a questão já não é, como nas matemáticas e nas ciências positivas, descobrir a verdade, mas estabelecer o que é preferível e, para o fazer, o método não consiste em deduções e induções correctas, mas em todo o género de argumentos, por intermédio dos quais se visa provocar e ganhar a adesão do auditório às teses que lhe são apresentadas. Ora, é precisamente nisto que consiste a retórica tal como foi desenvolvida na antiguidade: um conjunto de técnicas de discurso, de processos argumentativos que visam provocar a adesão dos espíritos através da persuasão. Por este motivo, Perelman considerou ser necessário alargar a noção de razão e, a fim de conciliar o pensamento e a acção, a razão teórica e a razão prática, juntar ao estudo da lógica formal o estudo dos raciocínios cujo fim é persuadir ou convencer. É a esta tarefa que, prolongando e amplificando a retórica de Aristóteles, se dedica a nova retórica.
A nova retórica é, no entanto, diferente da antiga. A retórica antiga, como vimos, diz respeito às técnicas usadas para persuadir um auditório que tem como características principais ser composto por pessoas simples e incapazes de seguir longas cadeias de argumentos. A nova retórica, pelo contrário, dirige-se a toda e qualquer espécie de auditório, quer se trate de toda a humanidade, da opinião pública nacional ou internacional, de uma multidão, de um conjunto de especialistas, de um indivíduo ou de nós próprios quando intimamente deliberamos sobre um dado assunto. Numa palavra, a nova retórica abrange e ultrapassa os domínios que Aristóteles tinha repartido pela dialéctica e pela retórica e, por isso, tem como objecto de estudo o discurso não demonstrativo, os raciocínios que não são inferências formalmente correctas, isto é, todo o discurso que tenha por fim convencer ou persuadir todo e qualquer auditório sobre o que quer que seja. É por isso que Perelman diz que a retórica tem como objecto
[...] o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que são apresentadas ao seu assentimento.Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Traité de l’argumentation, p. 5.
Além disso, Perelman pensa não existirem razões para limitar a retórica ao estudo das técnicas do discurso falado e que, dado o papel moderno da imprensa, a nova retórica, ao contrário da antiga, deve estudar sobretudo os textos impressos que, como qualquer outro texto, se dirigem sempre também a um dado auditório, mesmo que o escritor não tenha disso consciência.
Por outro lado, a retórica estuda apenas os meios discursivos de obter a adesão dos espíritos. Embora existam outros métodos — muitas vezes mais eficazes — de persuasão (como a carícia ou a bofetada), só a persuasão pela linguagem é do domínio da retórica.
Esta lógica do preferível, a teoria da argumentação, distingue-se da demonstração de várias maneiras:
Demonstração | Argumentação |
Os signos usados não são ambíguos, mas cuidadosamente definidos; | Os signos são frequentemente ambíguos e confusos; |
Utiliza regras explicitadas em sistemas formalizados; | As regras não dependem de sistemas formais; |
Os axiomas, os princípios de que parte, não estão sujeitos a discussão; | Os princípios podem ou não ser aceites pelo auditório; |
Os argumentos são constringentes e necessários; | Os argumentos têm mais ou menos força, são mais ou menos plausíveis; |
A opinião que o auditório forma do orador não é importante para a avaliação das suas teses; | A opinião que o auditório tem do orador é importante para a avaliação das teses que apresenta; |
A sua finalidade é deduzir consequências de certas premissas; | Tem como finalidade provocar a adesão do auditório; |
As consequências são necessariamente verdadeiras. | A verdade é apenas um dos motivos de adesão; uma tese pode ser aceite ou recusada também por outros motivos: ser ou não oportuna, justa, útil, etc. |
A adesão do auditório é, para Perelman, de grande importância porque pressupõe um contacto entre o orador e o auditório. E como esse contacto tem por finalidade, da parte do orador, agir sobre o auditório, modificar as suas convicções por meio do discurso, provocar a sua adesão, incitá-lo à acção, a credibilidade do orador junto do auditório, o ethos de que falava Aristóteles, é um aspecto que nenhum orador pode negligenciar. Outro aspecto que o orador deve ter em conta é a utilização de métodos apropriados tanto ao objecto do discurso, aquilo de que fala, como, sobretudo, ao tipo de auditório a que se dirige. Assim, o orador tem de escolher o estilo da sua argumentação e o tipo de argumentos que vai utilizar em função do assunto e do auditório a que se dirige. O orador deve sempre adaptar-se ao seu auditório. Um argumento que, por exemplo, não esteja adaptado ao auditório pode originar objecções ou parecer fraco e isso, ao pôr em causa o ethos do orador, ao fazê-lo parecer de má-fé ou indigno de confiança, transmitir-se à totalidade do discurso. A força de um argumento depende, segundo Perelman, das premissas e da pertinência da argumentação, das objecções que lhe podem ser feitas e de como podem ser refutadas e tudo isto depende das convicções, das tradições e dos métodos de raciocínio do auditório.
O objectivo do orador quando argumenta é provocar a adesão do auditório às teses que defende. Para o conseguir, o orador tem de mostrar que essas teses se seguem de premissas aceites por aqueles a quem o orador se dirige. Por este motivo, Perelman afirma que o orador tem de usar como ponto de partida dos seus argumentos apenas teses aceites pelo auditório. Estas teses podem incidir sobre o real, e serem factos, verdades e presunções ou sobre o preferível e serem valores, hierarquias e lugares do preferível.
Os factos e as verdades são, por princípio, objectivos e impõem-se a todos. No entanto, podem ser contestados. Se isso acontecer, o orador já não os pode usar na argumentação, a não ser que mostre que a contestação de que são alvo não tem razão de ser. De qualquer modo, os factos e as verdades podem ser postos em causa e não têm um estatuto definitivo. A verdade não é absoluta nem subjectiva. É um fenómeno social que resulta de um acordo do auditório universal.
As presunções não constituem pontos de partida tão seguros quanto os factos e as verdades, mas apesar disso permitem fundar uma convicção razoável. As presunções têm por base o que normalmente ocorre e o que é razoável pressupor, mas podem, no entanto, ser postas em causa pelos factos. São exemplos de presunções que “a qualidade de um acto manifesta o carácter da pessoa que o pratica” ou que “aquilo que nos é dito é por norma verdadeiro”.
Os valores permitem estabelecer uma ruptura da indiferença ou da igualdade entre as coisas, colocando uma delas acima ou julgando-a superior a outra, enquanto as hierarquias expressam os valores hierarquizados. Eis alguns exemplos deste tipo de valores:
As hierarquias podem ser concretas ou abstractas, homogéneas ou heterogéneas. As hierarquias heterogéneas estabelecem uma relação de preferência entre valores diferentes, sejam eles concretos ou abstractos (por exemplo, os homens são superiores aos animais; a justiça é superior ao útil); enquanto as homogéneas dão preferência a uma maior quantidade de um valor positivo ou a uma menor quantidade de um valor negativo, quer estes valores sejam concretos ou abstractos.
Os lugares do preferível têm um papel idêntico ao das presunções e podem ser divididos, como fez Aristóteles, em lugares comuns, que estabelecem o que vale mais em todo e qualquer domínio, e em lugares específicos, que determinam o que é preferível em domínios particulares. Os lugares da quantidade (por exemplo, “é superior o que é mais útil ao maior número”) e da qualidade (por exemplo, “é superior o que é único, incomparável, raro ou difícil”) que apontam um critério quantitativo e qualitativo para a preferência de algo são os mais comuns, mas há outros lugares como os da ordem (que afirma a superioridade da causa sobre o efeito), do existente (que justifica a preferência por aquilo que é sobre o que é apenas possível), de essência (que confere superioridade àquilo que representa melhor a essência) ou da pessoa (que exprime a superioridade do que lhe está ligado sobre aquilo que diz respeito às coisas ou aos outros seres).
Os factos, verdades, presunções, valores e lugares que servem de ponto de partida ao orador são seleccionados de um conjunto muito alargado de dados disponíveis. Uma vez esta selecção efectuada, o orador procurará mostrar a sua importância por intermédio de diversas técnicas de apresentação. O objectivo é conferir-lhes presença, isto é, colocá-los no primeiro plano da consciência dos auditores. As figuras da retórica contribuem de forma decisiva para a obtenção desse efeito. As principais figuras da retórica são as seguintes:
Desde o século XVI, devido à influência de Pedro Ramus, as figuras retóricas foram vistas como figuras de estilo, tendo uma função meramente ornamental. No entanto, Perelman pensa que as figuras têm também uma função persuasiva e que, por este motivo, devem ser consideradas figuras retóricas ou de estilo, consoante a função que tenham no discurso.
Quem constitui o auditório a que o orador se dirige? Por vezes a resposta é fácil: o auditório é constituído por todos aqueles a quem o orador se dirige directamente. É isso que normalmente faz um advogado no tribunal ou, para usar um exemplo que nos é muito familiar, o professor numa aula. Mas nem sempre o auditório é constituído por aqueles a quem o orador se dirige directamente. Por exemplo, um político que discurse no parlamento dirige-se apenas a quem o ouve presencialmente ou também àqueles que o possam estar a ver pela televisão, dirige-se a todos os que o podem ouvir ou apenas a uma parte?
Para Perelman, o auditório é constituído pelo “conjunto daqueles que o orador quer influenciar pela sua argumentação” (Chaïm Perelman, O Império Retórico, p. 33). Este conjunto pode ir do o orador, numa deliberação íntima, à totalidade da humanidade e, por isso, pode ser de dois tipos:
A distinção entre auditório universal e auditório particular está na base da distinção entre discurso persuasivo e discurso convincente:
Os argumentos usados pelo orador para intensificar a adesão do auditório a certas teses constituem, segundo Perelman, meios de prova. Estes meios de prova são, no entanto, diferentes dos meios usados pela lógica tradicional. Para a lógica tradicional, a prova deve ser objectiva, necessária e universal. Este tipo de prova, contudo, não tem qualquer utilidade quando se trata de deliberar, de decidir ou de persuadir. Por isso, paralelamente à lógica tradicional, que usa como meios de prova argumentos dedutivos e argumentos indutivos, é necessário também admitir os argumentos dialécticos ou retóricos, que visam a eficácia persuasiva e a adesão do auditório. Para Perelman, estes argumentos dialécticos e retóricos podem ser de três tipos:
Há várias categorias de argumentos quase lógicos. Em todos os casos, no entanto, trata-se de argumentos que revelam semelhanças com os raciocínios formais, de natureza lógica ou matemática, mas que se distinguem destes por pressuporem a adesão a teses de natureza não formal e por haver neles aspectos que são controversos e os tornam não constringentes. São argumentos quase lógicos:
Um exemplo de argumento quase lógico é o de incompatibilidade: mostra-se a uma pessoa que espera nunca ter de matar um ser vivo que o tratamento de um abcesso vai provocar a morte de uma multidão de micróbios.
Os argumentos fundados na estrutura do real baseiam-se em ligações entre elementos do real que podem ser de vários tipos:
Os argumentos que fundam a estrutura do real são argumentos que criam ou completam esta estrutura tornando visíveis ligações que tinham estado até aí invisíveis. São argumentos que a partir de um caso conhecido permitem estabelecer um precedente, um modelo ou uma regra geral. São argumentos deste tipo:
Além destes três tipos de argumentos, Perelman introduz também a dissociação de noções, que, segundo ele, é particularmente importante no pensamento filosófico. A dissociação é usada pelos filósofos para ultrapassar as incompatibilidades de pensamento com que deparam. A estratégia consiste em estabelecer pares hierarquizados e resolver as dificuldades dando a preferência a um dos pares. Foi o que fez Kant quando tentou superar a dificuldade que resulta do facto de a ciência pressupor o determinismo e a moral pressupor a liberdade. Dissociou a noção de realidade em realidade fenoménica, sujeita ao determinismo, e realidade numénica, onde existe liberdade.
Todo o pensamento filosófico pode ser apresentado mediante um encadeamento de pares deste tipo. O par principal que resulta da dissociação de noções é o par aparência/realidade, do qual derivam pares como opinião/verdade, nome/coisa, sujeito/objecto, meio/fim, relativo/absoluto, acidente/essência, individual/universal, teoria/prática. A introdução de alguns destes pares está directamente relacionada com a influência do pensamento de um dado filósofo. Platão, por exemplo, está na origem de pares como aparência/realidade, opinião/ciência, corpo/alma, devir/imutabilidade; e Espinosa é responsável pela introdução de pares como imaginação/entendimento, universal/individual, abstracto/concreto, contingência/necessidade.
A eficácia da argumentação não depende apenas do efeito de argumentos isolados, mas também da totalidade do discurso, da interacção entre os argumentos e até dos argumentos que ocorrem espontaneamente no espírito de quem ouve o discurso. Um aspecto que determina a eficácia do discurso é a ideia que o auditório tem do orador, o ethos do orador, como lhe chamava Aristóteles, que, por sua vez, é ela própria influenciada pela qualidade do discurso, uma vez que o orador é por ele responsável.
Para que a argumentação seja eficaz, diz Perelman, é necessário que seja ouvida com interesse e benevolência. Para o conseguirem, os oradores recorrem, como já tinha dito Aristóteles, ao exórdio, que pode, por vezes, ser substituído por uma apresentação do orador feita pelo presidente da sessão em que o orador discursa. Quer o exórdio quer a apresentação tornam-se desnecessários quando o orador goza de grande reputação e simpatia junto do auditório.
O orador organiza a sua argumentação dispondo o conjunto dos argumentos que constituem o discurso segundo uma determinada ordem. Qual deve ser essa ordem? A tradição consagrou três ordens diferentes, consoante a posição dos argumentos mais fortes e mais fracos no discurso: ordem de força crescente, ordem de força decrescente e a ordem nestoriana. Qualquer uma destas ordens tem inconvenientes. A ordem crescente, como começa pelos argumentos mais fracos, pode indispor o auditório, afectar o ethos do orador e esmorecer o prestígio e a atenção que lhe são concedidos. A ordem decrescente, ao terminar o discurso com os argumentos mais fracos, corre o risco de deixar nos auditores uma má impressão. Por último, a ordem nestoriana tem o inconveniente de pressupor que a força dos argumentos é imutável, independente da ordem pela qual os argumentos são apresentados, quando, de facto, ela depende da maneira como são recebidos. Isto leva Perelman a dizer que o critério que deve ser adoptado na organização do discurso é o da eficácia. Como a argumentação tem por finalidade persuadir o auditório, a ordem deve ser adaptada a esta finalidade: cada argumento deve aparecer no discurso no momento em que exerce maior efeito, isto é, quando o auditório estiver mais disposto a acolhê-lo. É impossível formular regras gerais com base neste critério, embora em certas matérias e perante certos auditórios exista uma ordem que é esperada pelo auditório e da qual não convém que o orador se afaste sem uma forte razão.
Todas estas considerações permitem distinguir a argumentação da demonstração que, como já dissemos, não precisa ter em conta as relações entre orador e auditório.
Qual a relevância da nova retórica para a filosofia? A filosofia está tradicionalmente ligada à noção de verdade e a retórica à de persuasão e, aparentemente, nada pode afastar mais as duas disciplinas. Como vimos, segundo Perelman, o ideal cartesiano de um saber fundado na prova e na demonstração permitiu nos últimos séculos o florescimento dos sistemas lógicos e matemáticos formalizados e das ciências da natureza, que forneceram um modelo ao pensamento filosófico que exclui a retórica e a dialéctica por serem do domínio do verosímil. Contudo, toda a actividade intelectual, como é o caso da filosofia, que não pertence nem ao domínio do necessário nem ao domínio do que é completamente arbitrário, isto é, cujas teses são controversas e podem ser sustentadas com argumentos, depende da retórica e da dialéctica. A filosofia é, para Perelman, o estudo sistemático das noções confusas, isto é, dos conceitos acerca dos quais é praticamente impossível haver acordo. Nestas circunstâncias, o filósofo apresenta perspectivas que não se impõem a todos e, por isso, tem de as suportar com argumentos, metáforas e analogias, com que pretende mostrar a sua adequação e, desse modo, conquistar a adesão do auditório. Este processo faz com que a filosofia, como qualquer outro domínio em que é preciso deliberar e decidir, se encontre numa relação necessária com o auditório, relação essa que a coloca na dependência da teoria da argumentação.
Ora, é esta impossibilidade de negligenciar o auditório a que sempre se dirige que faz com que a argumentação filosófica seja, inevitavelmente, tributária duma teoria da argumentação ou duma teoria do discurso persuasivo de que é, sustenta Perelman, uma aplicação particular. Enunciada com toda a clareza, a tese [...] é a de que “a prova filosófica é de natureza retórica e, na medida em que o raciocínio filosófico se apoia em premissas que lhe são próprias, liga-se a teses comummente admitidas, que são os princípios comuns, as noções comuns e os lugares comuns”.Rui A. Grácio, Racionalidade Argumentativa, p. 88.
Para Perelman há, portanto, uma relação estreita entre filosofia e retórica. Claro que a teoria da argumentação não encontra aplicação apenas na filosofia. O que distingue a argumentação filosófica das outras formas de argumentação retórica é o facto de esta ter como seu auditório específico o auditório universal.
Álvaro Nunes