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Crítica
18 de Outubro de 2015   Filosofia

Filosofia e retórica

Álvaro Nunes

A melhor forma de caracterizar a filosofia é dizer que ela consiste em problemas, teorias e argumentos. O que distingue os problemas filosóficos dos problemas de outras áreas de investigação, como a física ou a história, é o facto de não terem solução experimental. Eis alguns exemplos de problemas filosóficos:

Para estes e para os outros problemas filosóficos, os filósofos formulam respostas, a que se dá o nome de teorias ou doutrinas filosóficas, que tentam depois justificar (e criticar) por meio de argumentos. A importância dos argumentos para a filosofia deriva sobretudo do facto de, devido à própria natureza dos problemas investigados, ser impossível recorrer, como nas ciências, à experiência para testar a verdade das teorias ou doutrinas filosóficas.

Assim, embora não seja fácil determinar o valor de verdade de uma teoria, é esse o fim último de toda a actividade filosófica. Por conseguinte, perguntar qual o contributo da retórica para a filosofia é perguntar se a retórica contribui para a descoberta do valor de verdade das teorias que os filósofos formulam. Se esse contributo existir, a retórica tem interesse para a filosofia. Caso contrário, não tem.

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Dúvidas?

A retórica como exigência de clareza

Há uma certa ideia de retórica cujo interesse para a filosofia e, na verdade, para qualquer forma de comunicação, é evidente e que pode ser expressa usando a máxima de Chaïm Perelman segundo a qual “o orador deve sempre adaptar-se ao seu auditório” com um sentido diferente daquele que ele lhe dá. Para Perelman, esta máxima significa que o orador deve preparar o seu discurso usando estratégias que lhe permitam, ou que ele julga que lhe permitem, maximizar a persuasividade. Podemos, no entanto, entender esta máxima como significando que, quando comunicamos, devemos fazê-lo de forma tão clara quanto formos capazes e o tema permita, de modo a facilitar a avaliação das nossas ideias e dos nossos argumentos por parte daqueles que nos ouvem ou nos lêem.

Esta ideia é tão trivial que pode parecer que bastaria o mais elementar bom senso para perceber que a sua aplicação deveria ser generalizada. Contudo, nem sempre isso acontece e, como o chamado caso Sokal mostrou, é vulgar esconder a ignorância e a ausência de ideias por detrás de uma linguagem rebuscada, que leva os incautos a julgarem estar perante um pensador profundo. Eis um exemplo do filósofo e psicanalista francês Félix Guattari citado pelo biólogo Richard Dawkins:

Podemos claramente ver que não há qualquer correspondência biunívoca entre cadeias lineares de significado ou de arqui-escrita, dependendo do autor, e esta catálise maquinal multirreferencial e multidimensional. A simetria de escala, a transversalidade, o carácter pático não discursivo da sua expansão: todas estas dimensões afastam-nos da lógica do terceiro excluído e reforçam-nos na nossa recusa do binarismo ontológico que criticámos previamente. (Richard Dawkins, A Devil’s Chaplain, p. 47)

Poderíamos, infelizmente, dar muitos outros exemplos. Se estes autores usassem uma linguagem acessível tornar-se-ia imediatamente evidente a falsidade ou a vulgaridade das suas ideias. Mas, em vez disso, usam conceitos retirados das matemáticas e das ciências da natureza e constroem frases complexas com as quais fingem ter um saber que, de facto, não têm.

Podemos eventualmente pensar que este é um fenómeno recente, mas isso não é verdade. Já Aristóteles, ao expor em que consiste falar correctamente, diz o seguinte:

O terceiro [aspecto] é não utilizar vocábulos ambíguos. Isto a não ser que se prefira o contrário, ou seja, fingir que se diz algo por meio deles quando não se tem nada para dizer. Com efeito, indivíduos deste género utilizam tais termos na poesia, como Empédocles. Iludem, pois, com seus rodeios excessivos, e os ouvintes ficam impressionados, tal como muita gente perante os oráculos; pois, quando estes são expressos por meio de vocábulos ambíguos, aqueles dão o seu assentimento […] porque ao falarmos em geral, o erro é menor. Por isso é que os adivinhos aludem aos assuntos por meio de palavras deste tipo. Pois será mais bem-sucedido no jogo do par e do ímpar quem disser “par” ou “ímpar”, do que se disser que algo vai acontecer em vez de quando (é por isso que os intérpretes dos oráculos não determinam quando). Tudo isto é semelhante, de forma que deve ser evitado, a não ser pela razão aduzida. (Aristóteles, Retórica, III, 5.)

O fenómeno não é, portanto, de agora. É por isto que não é demais insistir na exigência de clareza na exposição das ideias e dos argumentos. A clareza torna mais fácil a sua compreensão e, portanto, torna mais fácil a sua avaliação crítica, que é fundamental para o progresso do nosso conhecimento e para a nossa compreensão do mundo.

A retórica como método da filosofia

Entendida como um conjunto de técnicas que permitam uma troca clara, honesta e frutuosa de ideias e argumentos, a retórica é de grande interesse para a filosofia. Mas, como certamente já percebeste, não é neste sentido que a palavra “retórica” é vulgarmente entendida e também não é nesse sentido que foi entendida na antiguidade ou actualmente por quem quer fazer dela o método da filosofia.

Os filósofos que na antiguidade deram mais atenção à retórica, Platão e Aristóteles, não tinham uma opinião muito favorável a seu respeito. Platão recusava-lhe o estatuto de arte e considerava a persuasão obtida por seu intermédio uma mera forma de adulação e manipulação. Aristóteles não vai tão longe quanto o seu mestre e tem uma posição idêntica à defendida por Górgias no diálogo de Platão com o mesmo nome: a retórica é uma arte e pode ser usada tanto de forma justa como de forma injusta. Como investigador, Aristóteles estava interessado em compreender e explicar o poder persuasivo da palavra e como homem viu demasiadas vezes a verdade e a justiça serem vencidas pelo facto de o auditório ser incapaz de seguir as cadeias de argumentos necessárias para as suportar. Isso explica o seu interesse pela retórica e por que razão a considerava útil nos tribunais e nas assembleias. Mas não devemos tirar daí a conclusão de que a considerava de alguma utilidade para a filosofia. Não é a retórica mas antes a demonstração e a dialéctica que Aristóteles considera de interesse para a filosofia. E isso porque permitem descobrir a verdade.

Os seguidores modernos de Aristóteles, como Perelman, acerca deste ponto não pensam como ele: acham que o filósofo precisa de conquistar a adesão do auditório para os seus pontos de vista e que, portanto, a retórica é o método da filosofia. Esta concepção da filosofia e do seu método têm fundamento na ideia de que não há uma verdade única sobre um dado assunto, mas várias verdades. Esta é a mesma ideia que Protágoras defendeu na antiguidade quando disse que “o homem é a medida de todas as coisas”, a que se dá geralmente o nome de relativismo. O relativismo é uma teoria bastante atraente e parece a muitas pessoas obviamente verdadeira. A ideia de que a retórica é o método da filosofia parece assim estar bem fundada. No entanto, há boas razões para a recusar. Vejamos apenas três:

1. A filosofia procura formular teorias verdadeiras. Uma vez que a retórica é apenas um método de persuasão e não de descoberta da verdade, se fosse o método da filosofia, qualquer teoria seria admissível desde que fosse verosímil, isto é, desde que o filósofo fosse capaz de a apoiar com argumentos, metáforas e analogias e, desse modo, conquistar a adesão do auditório. Nestas circunstâncias, a filosofia seria apenas um jogo de interpretações que seria ganho por aquela que fosse capaz de melhor persuadir o auditório e a retórica seria o instrumento com que esse jogo se jogaria; portanto, o que dissemos sobre a filosofia seria falso e os filósofos não teriam como objectivo formular teorias verdadeiras. Contudo, sem esse objectivo a filosofia seria apenas uma especulação estéril e inútil.

Não deves pensar, pelo que acabámos de dizer, que toda e qualquer interpretação é desnecessária ou inútil. A interpretação tem um papel importante em filosofia, assim como em qualquer outra actividade humana. Sem ela não há comunicação e não podemos sequer conhecer as teorias filosóficas com as quais os filósofos pensam poder resolver um problema.

Supõe, por exemplo, que alguém te pergunta qual a distância entre Vila Franca de Xira e Lisboa. Se não fosses capaz de interpretar, de compreender, o que te foi dito, teria sido inútil fazer-te a pergunta. A incapacidade de interpretação resultaria nesse caso numa incapacidade de comunicação. E sem ela, toda a troca de ideias, mesmo sobre os assuntos mais triviais, seria impossível.

Mas será que basta sermos capazes de fazer interpretações? Supõe que respondes à pessoa que a distância é de 30 km. De acordo com a ideia de que tudo é interpretação, a tua resposta é ainda e só uma interpretação. Supõe agora que, ao mesmo tempo que respondias, dois colegas que estavam contigo diziam respectivamente 25 km e 20 km. Agora, em vez de uma, temos três respostas e, portanto, três interpretações diferentes. Isto, contudo, não nos parece satisfatório. Queremos saber também quem tem razão, isto é, qual das respostas é verdadeira. No entanto, a ideia de que tudo é interpretação e de que a retórica é o método da filosofia não nos permite ir mais longe. Usando a retórica, tudo o que podemos fazer é tornar uma das respostas mais verosímil, isto é, fazer com que os outros pensem que essa resposta é verdadeira ou que tem maior probabilidade de ser verdadeira. Certamente já viste o ponto de vista de alguém ser adoptado porque foi capaz de dizer uma chalaça e desse modo desacreditar a posição da pessoa com que discutia. Mas, claro, isso não significa que esse ponto de vista seja efectivamente verdadeiro e pode até acontecer que seja falso.

As coisas não são diferentes se se tratar de um problema filosófico em vez de um problema trivial como a distância entre Vila Franca de Xira e Lisboa. Supõe que alguém te pergunta, por exemplo, o que pensas da eutanásia. Supõe ainda que, por hipótese, adoptas uma posição segundo a qual a eutanásia está errada porque constitui uma forma de assassínio. Essa tua posição, de acordo com a teoria, é apenas uma interpretação. Supõe ainda que os teus amigos ouvem a pergunta e que um deles responde, por exemplo, que se o acto de eutanásia aumentar a felicidade de todos os envolvidos, então é um acto correcto, enquanto o outro afirma que a eutanásia é errada porque degrada o carácter daqueles que a praticam. Agora, em vez de uma só interpretação, temos três. Aqui também, de acordo com a tese que estamos a discutir sobre a filosofia, devemos recorrer à retórica. Mas, uma vez mais, o uso da retórica não permite saber qual dos pontos de vista sobre a eutanásia é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro. Tudo o que a retórica permite é persuadir o auditório de que um desses pontos de vista é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro, o que, obviamente, não é o mesmo. Mas isto significa que parámos onde a discussão filosófica devia começar. Era a partir daqui que as diferentes respostas poderiam ser confrontadas e os argumentos com que cada um justifica a sua posição poderiam ser criticamente avaliados. Assim, a tese de que a filosofia é interpretação e de que a retórica é o seu método é, no fundo, a tese da morte da filosofia e da investigação racional.

2. O relativismo é contraditório. O relativismo é a teoria segundo a qual não há verdades universais e absolutas e que, consequentemente, todas as verdades são relativas a indivíduos, a sociedades e a culturas. Uma forma rápida de colocar o relativismo em dificuldades é perguntar se esta afirmação é ela mesma relativa ou universal e absoluta. É que se é relativa, então é verdadeira apenas para os indivíduos, sociedades ou culturas que a aceitam e falsa para todos os outros. Se, pelo contrário, esta ideia não é relativa, mas universal e absoluta, então há verdades universais e absolutas. Em qualquer dos casos, o relativismo contradiz-se.

3. A retórica pressupõe a crença do auditório na verdade. Pior que isto é talvez o facto de a eficácia da retórica pressupor a crença do auditório na existência da verdade. Quando um orador argumenta, tem por objectivo obter a adesão do auditório às ideias que defende. O auditório, por seu lado, aderirá ou não a essas ideias consoante elas lhe pareçam ou não verdadeiras ou, se se trata de assuntos em que a verdade não é fácil de determinar, consoante lhe pareçam terem maior ou menor probabilidade de serem verdadeiras. Em qualquer dos casos, quando o auditório adere aos pontos de vista do orador é porque julga que esses pontos de vista são verdadeiros ou, na pior das hipóteses, que têm mais probabilidades de serem verdadeiros. Assim, quando o orador usa a retórica, está a explorar e a servir-se desta tendência do auditório para a verdade. Quando o auditório aceita as ideias do orador, fá-lo na convicção de que as teses apresentadas são verdadeiras ou mais provavelmente verdadeiras; mas como a retórica visa apenas a adesão, o orador está a manipular o auditório. Será este procedimento aceitável?

Mas se a retórica tem estas graves deficiências, como se explica que tenha tanta aceitação? Em primeiro lugar, porque o relativismo parece uma verdade evidente a muita gente. Quando, por exemplo, qualquer questão ética ou política suscita muita discussão nos órgãos de comunicação social, é fácil perdermos o rasto aos argumentos, ficarmos confusos e parecer-nos que, de alguma forma, é tudo uma questão de opinião e que cada um tem a sua.

Em segundo lugar, porque Perelman percebeu correctamente que é um erro reduzir a lógica à lógica dedutiva e que existem assuntos que não podem ser convenientemente tratados usando apenas esse tipo de lógica.

Contudo, quando tentou desenvolver esta ideia cometeu alguns erros e efectuou algumas confusões importantes. Um desses erros consistiu em pensar o seguinte:

A lógica dedutiva ou formal limita-se às áreas em que as premissas são inquestionavelmente verdadeiras; consequentemente, essa lógica é constringente.

Isto, obviamente, é um erro. Se um argumento é sólido, isto é, se tem forma válida e premissas inquestionavelmente verdadeiras, então a sua conclusão só pode ser verdadeira. Podemos então dizer, na linguagem de Perelman, que o argumento é constringente. Mas isso não significa que não possamos usar argumentos com forma válida e premissas que não são inquestionavelmente verdadeiras.

Como qualquer pessoa familiarizada com argumentação sabe, uma das estratégias para pôr em causa a conclusão de um argumento dedutivo é atacar as premissas. Se formos capazes de mostrar que uma das premissas é falsa, podemos dizer que não temos razões para crer que a conclusão seja verdadeira; e podemos dizer o mesmo se formos capazes de mostrar que uma premissa é duvidosa ou discutível. Mas isto não é o fim da discussão. Por exemplo:

Se o feto é um ser humano, o aborto é moralmente errado.
O feto é um ser humano.
Logo, o aborto é moralmente errado.

Este argumento é um modus ponens e, portanto, tem forma válida. Assim, se quisermos contestar a sua conclusão, temos de atacar as premissas e de mostrar que pelo menos uma é falsa ou duvidosa. Claro está que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão só pode ser verdadeira. Mas serão as premissas verdadeiras? Em particular, é a premissa “O feto é um ser humano” verdadeira? Como alguém que esteja familiarizado com o debate ético sobre o aborto fará imediatamente notar, grande parte da discussão passa por saber se o feto é ou não um ser humano. Isto significa que não sabemos se essa afirmação é ou não verdadeira. Contudo, podemos discuti-la e determinar a maior ou menor probabilidade de que seja verdadeira. Se for provável que seja verdadeira, fornece uma razão para pensarmos que é provável que a conclusão também o seja. Se, pelo contrário, for pouco provável ou mesmo improvável que seja verdadeira, não fornece.

Um partidário do uso da retórica dirá talvez que é precisamente devido a afirmações como “O feto é um ser humano” que a retórica se justifica. Com efeito, dirá ele, quando é preciso deliberar (por exemplo, quando é preciso legislar sobre o aborto) é por intermédio da retórica, da persuasão, que se escolhe entre as diversas teses em confronto. A prova disto é dada pelo largo uso da retórica nos tribunais. Isto leva-nos ao segundo erro cometido por Perelman:

Perelman confunde a forma como as coisas são com a forma como deviam ser, isto é, pensa que a forma como as coisas são estabelece como podem e devem ser.

É verdade que a retórica e a persuasão são frequentemente usadas em tribunais e noutras assembleias para resolver contendas cuja solução é difícil. Não é necessário estar muito atento para perceber que os debates políticos são também muitas vezes ganhos dessa maneira. Essa é uma descrição dos factos. Contudo, seria errado pensar que essa descrição é normativa, isto é, que podemos estabelecer o que devemos fazer com base nessa descrição.

Para compreendermos isto bem, usemos o exemplo do relativismo, não do relativismo cognitivo de que falámos, mas do relativismo moral. O relativismo moral consiste na ideia de que não há normas morais absolutas e de que todas as regras morais são relativas a sociedades e a culturas. O relativismo moral retira grande parte da sua força do facto de que cada sociedade e cada cultura tem as suas próprias regras morais: na Nigéria, uma mulher considerada adúltera pode ser apedrejada até à morte, enquanto em Portugal o adultério nem sequer é crime. Como descrição dos factos, é correcto dizer que cada sociedade e cada cultura tem as suas normas morais. Mas seria errado concluir daí que não há normas morais universais e absolutas. É que a ética não é descritiva, mas normativa. Não descreve como agimos, mas sim como devemos agir.

Algo semelhante acontece no domínio da argumentação. Dizer que em muitos domínios as pessoas usam a retórica e a persuasão quando têm de deliberar é, infelizmente, uma descrição correcta dos factos. Contudo, seria errado concluir que deve ser assim. É que neste caso também há alternativas: a lógica formal e informal, cujo objectivo não é a persuasão, mas a verdade. O principal erro de Perelman foi não ter percebido que a alternativa à lógica formal e ao irracionalismo não é a retórica, com os seus critérios psicológicos e sociológicos de adesão, mas a lógica informal, e que também naqueles domínios para os quais lógica formal é insuficiente existem, apesar disso, critérios objectivos que permitem determinar a probabilidade de uma afirmação ser verdadeira.

Álvaro Nunes

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ISSN 1749-8457