O que é o conhecimento? Antes de podermos responder a esta questão temos de determinar com exactidão o que estamos a dizer quando falamos em conhecimento, uma vez que a palavra tem vários significados e há vários tipos de conhecimento. Todo o conhecimento é uma relação entre um sujeito, o agente que conhece, e um objecto, aquilo que é conhecido. Como há diferentes tipos de objectos, o sujeito pode ter diferentes tipos de conhecimento.
É comum dizermos que sabemos andar de bicicleta, nadar, conduzir uma mota ou fazer um bom cozido à portuguesa. Em todos estes casos temos um saber ou conhecimento de como efectuar uma determinada acção. Em todos estes casos, o objecto que o sujeito conhece é uma aptidão, um saber-fazer, e dá-se, por isso, a este tipo de conhecimento o nome de conhecimento de aptidões ou conhecimento prático.
Outro tipo de conhecimento é o que obtemos por experiência directa ao contactarmos com pessoas, coisas e lugares, etc., e a que normalmente se dá o nome de conhecimento por contacto. Temos conhecimento por contacto quando conhecemos directamente, por exemplo, uma pessoa ou uma localidade. Se nunca encontrei Nick Cave e nunca conversei com ele, não posso dizer que o conheço por contacto, apesar de ter ouvido os seus discos, ter visto no YouTube alguns dos seus vídeos com os Bad Seeds e de saber algumas coisas a seu respeito.1
A terceira forma de conhecimento é o conhecimento proposicional ou conhecimento teórico. O conhecimento proposicional é o conhecimento de factos ou, por razões que se tornará claro na próxima secção, de proposições verdadeiras. No conhecimento proposicional, o objecto de conhecimento já não é uma aptidão ou uma pessoa ou lugar mas uma proposição. Se sei que o Monte Evereste é a montanha mais alta do mundo, então aquilo que sei, o objecto do meu conhecimento, é a proposição “O monte Evereste é a montanha mais alta do mundo”.
Tipos de conhecimento | Objecto | Exemplos |
Conhecimento de aptidões | Saber-fazer | S sabe andar de bicicleta. |
Conhecimento por contacto | Pessoas, lugares e coisas | S conhece Lisboa. |
Conhecimento proposicional | Proposições | S sabe que o Monte Evereste é a montanha mais alta do mundo. |
O tipo de conhecimento que interessa mais aos filósofos é o conhecimento proposicional, porque, em geral, os filósofos estão interessados na verdade. As questões, por exemplo, de saber o que é a verdade, se conhecemos algumas verdades, e que verdades conhecemos, têm desde sempre merecido a sua atenção. O conceito de verdade não tem a mesma relevância nem no conhecimento de aptidões nem no conhecimento por contacto. Por este motivo, sempre que adiante falarmos em conhecimento, salvo indicação em contrário, estaremos a referir-nos ao conhecimento proposicional. É este tipo de conhecimento que iremos em seguida tentar definir.
Sabemos já que o conhecimento consiste numa relação que um sujeito estabelece com um objecto e que esse objecto é uma certa proposição. Daqui resulta que perguntar “O que é o conhecimento?” é equivalente a perguntar “O que é o conhecimento proposicional?” Tradicionalmente, a resposta a esta questão tem passado por analisar o conceito de conhecimento e tentar determinar as condições necessárias e suficientes ― isto é, as condições que são individualmente necessárias e em conjunto suficientes ― para que o sujeito conheça uma proposição. Quais são, então, essas condições que a análise revelou?
A primeira condição para que um sujeito conheça uma proposição é que acredite nessa proposição, ou melhor, que acredite que ela descreve adequadamente um dado facto do mundo.2 Se eu sei que Lisboa é a capital de Portugal, então acredito nessa proposição. Não é possível saber que Lisboa é a capital de Portugal e ao mesmo tempo não acreditar nisso, ou, inversamente, não é possível não acreditar ou duvidar de que Lisboa seja a capital de Portugal e ao mesmo tempo saber que Lisboa é a capital de Portugal. Imagine que o Miguel lhe diz: “Sei que 42 = 16 mas duvido disso”. Como reagiria? Decerto pensando que o Miguel se contradiz por não perceber que “saber que” já implica “acredito em”. Assim, este aspecto subjectivo, a crença, é uma condição necessária para que haja conhecimento. Na verdade, é largamente aceite entre os filósofos desta área que o conhecimento é uma forma de crença, embora não baste acreditar numa proposição para ter conhecimento.3
Uma razão importante para que nem tudo aquilo em que acreditamos constitua conhecimento é o facto de tanto podermos acreditar em proposições que são verdadeiras como em proposições que são falsas. Se fosse suficiente ter uma crença para ter conhecimento, quem, por exemplo, acreditasse que a Ponte Vasco da Gama é a maior ponte do mundo teria um conhecimento, apesar de essa proposição ser manifestamente falsa. Uma crença numa proposição falsa, portanto, não constitui conhecimento. Um exemplo extremo ajudará a tornar isto evidente. Imagine que tem uma forte dor de dentes e que, por esse motivo, decide ir ao dentista. No caminho encontra uma pessoa conhecida que, ao saber do seu sofrimento, lhe diz que a causa da sua dor é certamente a energia negativa que existe em sua casa, e que a solução não é ir ao dentista, mas limpar essa energia, e que para tal deve contratar os serviços de um especialista em Feng Shui. Que conclusão tirar deste exemplo? Evidentemente, que aquela pessoa nada sabe de problemas dentários, uma vez que tem uma crença manifestamente falsa acerca das suas causas e dos seus tratamentos. A crença, portanto, embora seja uma condição necessária, não é uma condição suficiente para que exista conhecimento. É necessário uma outra condição e esta, como agora deve ser óbvio, é que a proposição seja verdadeira.4
Serão estas duas condições, crença e verdade, suficientes? Toda a crença verdadeira é conhecimento? Não. Uma vez mais, um exemplo pode mostrar porquê. Imagine um optimista inveterado que joga todas as semanas no Euromilhões e sempre que joga diz para consigo: “Hoje vai sair-me o Euromilhões”. Obviamente, para sua consternação, na esmagadora maioria das vezes esta crença é falsa. No entanto, há um dia em que lhe sai efectivamente o Euromilhões. A sua crença de que vai sair-lhe o Euromilhões nesse dia é verdadeira. Será correcto dizer que nesse dia ele sabia que lhe ia sair o Euromilhões? É evidente que ele sabia tanto que lhe ia sair o Euromilhões nesse dia como em todos os outros em que não saiu, isto é, que ele não sabia que lhe ia sair o Euromilhões. A conclusão, portanto, que podemos tirar deste exemplo é que uma crença verdadeira por si só não constitui conhecimento. É necessária uma terceira condição, a saber, que a crença verdadeira esteja justificada, isto é, que o sujeito não se limite a ter uma crença verdadeira, mas que tenha razões para acreditar que a crença é verdadeira. Uma vez que uma pessoa pode justificar aquilo em que acredita com razões de vária ordem ― por exemplo, a lealdade para com um amigo, um partido ou uma confissão religiosa ―, é preciso que a justificação seja de natureza epistémica, isto é, que aumente as possibilidades de a crença poder ser verdadeira.
É costume chamar a esta concepção do conhecimento teoria da crença verdadeira justificada ou definição tripartida do conhecimento, realçando assim as três condições consideradas necessárias e suficientes para que um sujeito conheça uma proposição. Esta teoria pode ser apresentada na forma de uma definição explícita:
Um sujeito, S, conhece uma proposição, P, se e só se
a) S acredita em P
b) P é verdadeira
c) a crença de S em P está epistemicamente justificada
Para que haja conhecimento estas três condições têm de ser cumpridas; se uma delas, qualquer que ela seja, não se verificar, S não conhece P.
A definição tripartida de conhecimento foi apresentada pela primeira vez por Platão no diálogo Teeteto e aceite quase sem contestação até ao século XX.5 Em 1963, no entanto, o filósofo americano Edmund Gettier publicou um pequeno artigo intitulado “É a crença verdadeira justificada conhecimento?” Nesse artigo, Gettier apresentava dois casos fictícios em que alguém tinha uma crença verdadeira justificada que, no entanto, não consideramos constituir conhecimento. Estes casos, e todos os similares, são hoje conhecidos como “casos de Gettier”, e consistem em deduzir de uma crença justificada mas falsa uma outra que é verdadeira e está justificada e, contudo, que não constitui conhecimento. O caso que apresentamos em seguida é uma paráfrase do primeiro caso de Gettier.
A Ana e a Maria encontram o professor de Filosofia no corredor da escola e perguntam-lhe como estão os testes que fizeram alguns dias antes. Na conversa que se segue, o professor afirma que a Maria teve vinte valores no teste. Quando encontraram o professor, a Ana e a Maria vinham do Centro de Recursos onde tinham estado a fazer os trabalhos de Matemática. Nessa altura, a Ana contou as canetas e os lápis que a Maria tinha no estojo e verificou serem dezoito. Com base nisto, a Ana formulou o seguinte raciocínio:
A Maria tem vinte valores no teste de Filosofia e dezoito canetas e lápis no estojo. Logo, a pessoa que tem vinte valores no teste de Filosofia tem dezoito canetas e lápis no estojo.
Esta conclusão é uma crença verdadeira justificada. O que o professor disse constitui uma forte razão para acreditar que a Maria tem vinte valores no teste; e a própria Ana pôde verificar que a Maria tem dezoito canetas no estojo. A premissa está justificada e a conclusão segue-se dela validamente. Há, no entanto, um ponto em que a Ana está enganada: o professor mentiu e não é a Maria, mas ela, Ana, que tem vinte no teste. E, ao mesmo tempo, sem que ela tenha disso consciência, também tem no seu estojo dezoito lápis e canetas. Nestas condições, podemos dizer que a Ana sabe que a pessoa que tem vinte valores no teste de Filosofia tem dezoito canetas e lápis no estojo? Percebemos intuitivamente que não, pois Ana chegou àquela conclusão a partir de uma premissa que é falsa.
O caso seguinte tem origem numa proposta muito sumária de contra-exemplo apresentada por Bertrand Russell, alguns anos antes de Gettier, no livro Conhecimento Humano: O seu Alcance e Limites. Ao contrário dos casos de Gettier não se baseia em inferências dedutivas mas em inferências indutivas:
Esta manhã, quando vinha para a escola, a Ana viu que o relógio da igreja da sua terra marcava exactamente 8h e 10m. Em consequência disso, fez a seguinte inferência:
O relógio até agora tem sido fiável.
O relógio marca 8h e 10m.
Logo, são 8h e 10m.
Neste caso também, a Ana tem uma crença verdadeira justificada. É verdadeira porque são de facto 8h e 10m. E está justificada porque, como diz a primeira premissa, o relógio até agora tem sido fiável. Contudo, sem que Ana o saiba, o relógio avariou ontem quando marcava exactamente 8h e 10m. Podemos dizer, nestas condições, que a Ana sabe que são 8h e 10m? Não parece, uma vez que o relógio estava parado.
Em ambos os casos, portanto, as crenças são verdadeiras e estão justificadas. Contudo, tanto num caso como no outro, a justificação é acidental: é apenas por sorte que as crenças da Ana são verdadeiras e estão justificadas. É este, aliás, o motivo pelo qual essas crenças, embora respeitem os requisitos da definição tripartida, não constituem conhecimento.
Que conclusões resultam de tudo isto para a definição de conhecimento como crença verdadeira justificada? Em primeiro lugar, que essa definição de conhecimento é problemática. E, em segundo lugar, que o problema reside na justificação. De resto, o problema da justificação é o problema fundamental da definição de conhecimento. As tentativas de solução deste problema têm apontado no sentido de entender a justificação de duas formas diferentes. De acordo com uma dessas formas, a justificação deve tornar impossível que a crença seja falsa. Segundo a outra, a justificação deve apenas tornar plausível (ou provável) a verdade da crença, sem ter de a garantir. Estas duas formas de entender a justificação dão, na realidade, origem a duas concepções possíveis de conhecimento, consoante a justificação seja entendida num sentido ou no outro.
Tipos de justificação:
Álvaro Nunes
Ao dizer que conheço Nick Cave estou apenas a expressar incorrectamente o facto de que conheço por contacto as músicas que ouvi e os vídeos que vi no YouTube. ↩︎︎
A palavra “crença” presta-se a ambiguidades. Tanto pode significar o estado ou o ato mental de acreditar, como aquilo que é objecto desse ato ou estado mental, a própria proposição. Aqui, a palavra é usada sempre com o primeiro sentido. ↩︎︎
Esta conclusão, que crer e conhecer não são a mesma coisa, é de grande importância. Há certas proposições em que acreditamos tão fortemente que julgamos serem conhecimento apenas por isso. No entanto, a nossa convicção por si só, por mais forte que seja, não faz dessas proposições conhecimento. ↩︎︎
Afirma-se às vezes que pode haver conhecimento de falsidades e dá-se como exemplo o facto de em dada altura se ter pensado constituir conhecimento o que mais tarde se veio a saber ser falso (por exemplo, que o Sol girava em torno da Terra). Nesses casos, obviamente, as pessoas nunca tiveram conhecimento embora pensassem que o tinham porque, erradamente, consideraram verdadeiras proposições falsas. ↩︎︎
Platão, Teeteto, 201 c-d (Calouste Gulbenkian, p. 302). ↩︎︎