Menu
Crítica
12 de Julho de 2009   Filosofia da religião

O argumento ontológico e o problema da possibilidade da existência de Deus

Pedro Merlussi

Introdução

No Proslogium, Anselmo de Aosta (1033–1109) apresentou um dos mais importantes argumentos a favor da existência de Deus da história da filosofia: o argumento ontológico. Este argumento sustenta a existência de Deus recorrendo unicamente a premissas conhecíveis a priori.1 Embora o argumento ontológico não seja propriamente um único argumento, mas, como escreve Rowe, “uma família de argumentos” (Rowe, p. 42), pois encontramos diferentes versões em filósofos como Descartes (1646–1716) e Leibniz (1646–1716),2 a versão de Anselmo é a mais importante. A sua importância resulta de levantar um número elevado de questões filosóficas fundamentais e de ter estimulado uma série de reflexões ao longo da história da filosofia. No entanto, não tenho a pretensão de expor todos os comentários e discussões referentes ao argumento de Anselmo. Tampouco me limito a considerações meramente histórico-filosóficas. O interesse do presente ensaio é mais específico: apresentarei o argumento a fim de discutir sua segunda premissa (“será Deus um ser possível?”). O objetivo é mostrar que o defensor do argumento ontológico está obrigado a admitir que Deus é um ser nomologicamente impossível (tais conceitos serão explicados ao longo do texto). E não só isto; pretendo sustentar também que não há boas razões para aceitar a segunda premissa do argumento. Se a crítica for correta, não podemos considerar o argumento de Anselmo uma prova sólida a favor da existência de Deus.

O argumento ontológico e o conceito anselmiano de Deus

Anselmo estava convencido de que, se aceitássemos apenas três premissas, estaríamos obrigados a aceitar a existência de Deus mediante uma reductio ad absurdum.3 Vejamos, então, quais são estas premissas:

  1. Deus existe no pensamento.
  2. Deus é um ser possível.
  3. Se algo existe no pensamento e podia existir na realidade, então podia ser maior do que é.

De início, precisamos examinar cada premissa em particular; posteriormente, apresentaremos o argumento como um todo. Não é surpreendente aqui o fato de haver conceitos ainda inexplicados. Portanto, convém elucidar a respeito de algumas noções importantes, tal como o conceito anselmiano de Deus. Que entende Anselmo sobre isto? O filósofo medieval define Deus como o ser maior do que o qual nenhum outro é pensado (ens quo maius cogitari nequit). No entanto, seguindo Rowe, é mais fácil compreender esta definição de Anselmo se fizermos uma ligeira alteração. Ao invés de utilizarmos a palavra “pensado”, entenderemos a expressão como “o ser maior do que o qual nenhum outro é possível”. Como afirma Rowe, “esta idéia diz que se um determinado ser é Deus, então nenhum ser possível pode ser maior que aquele” (Rowe, p. 44). Para tornar esta concepção mais clara, vejamos algumas propriedades comumente atribuídas ao Deus teísta. Ao afirmarmos ser Deus o maior de todos os seres possíveis, atribuímos-lhe as seguintes propriedades essenciais: onipotência, onisciência, suma bondade, eternidade, distância e independência do mundo e, finalmente, auto-existência. Destas propriedades essenciais acima elencadas destacaremos apenas alguns aspectos.

Onipotência é um conceito fundamental na concepção teísta. Dizer que Deus é onipotente significa afirmar que Deus pode fazer tudo aquilo no qual não envolva contradição nos termos (por exemplo, Deus não pode fazer um quadrado redondo), ademais, não pode fazer aquilo que seja contrário às suas propriedades essenciais (por exemplo, se Deus é sumamente bom, então não pode praticar o mal). O conceito de onisciência cumpre também um papel fundamental nesta concepção. Afirmar que Deus é onisciente significa dizer que Deus é infinitamente sábio (por exemplo, não possui limitações cognitivas como os seres humanos). Ser sumamente bom é praticar tão somente atos morais e a impossibilidade de praticar qualquer ato imoral (ou seja, as ações de Deus, moralmente falando, são as melhores possíveis). Ser eterno, distante e independente do mundo implica transcender as leis da física (por exemplo, Deus não está sujeito às leis do espaço e tampouco às leis do tempo; logo, pode ocupar dois lugares no espaço ao mesmo tempo e, além disso, estar presente em qualquer tempo — passado, presente e futuro. Por ser eterno, sempre existiu e jamais perecerá. Por ser auto-existente, não necessita da atividade causal de outros seres para existir (por exemplo, a existência da mesa depende da existência do marceneiro; Deus, ao contrário, basta-se a si mesmo).

Tais propriedades caracterizam seguramente a grandiosidade de Deus. É acaso possível haver ser maior? A grandiosidade de que fala Anselmo não é a grandeza física. Não se trata, por exemplo, de um grande prédio ou de um grande navio. Trata-se, antes, de um ser mais elevado e melhor, nomeadamente em termos cognitivos e morais.

Em termos cognitivos, pois é inegável a limitação cognitiva dos seres humanos. Mas Deus é onisciente, e por isso superior aos homens; ou seja, Deus certamente conhece tudo o que pode ser conhecido mas nós não conhecemos. Portanto, Deus supera os seres humanos, bem como os demais seres, em capacidades cognitivas.

Em termos morais, Deus também é maior do que os seres humanos; a sua suma bondade contribui para a sua grandiosidade. Pelo fato de ser sumamente bom, Deus não pode praticar o mal (ao contrário de nós, que somos suficientemente não sagrados para cometermos o mal).

Em suma, se elencarmos ponto a ponto as propriedades atribuídas ao Deus teísta que Anselmo tem em mente, veremos que se trata do melhor ser possível, e também o mais elevado. Trata-se portanto do ser maior do que o qual nenhum outro é possível, tal como definira Anselmo.

A primeira premissa

Uma vez explicado o conceito de Deus, podemos passar a discutir a primeira premissa do argumento de Anselmo (a saber, Deus existe no pensamento). Para melhor compreendê-la, é necessário estabelecer uma distinção entre coisas que existem tão somente no pensamento e coisas que existem na realidade. Que significa isso? Imagine, por exemplo, um ser qualquer — digamos, um dragão. Você pode concebê-lo como existente no pensamento; de fato, podemos imaginá-lo tal como é descrito nas narrativas de Tolkien e em demais obras literárias de ficção. Contudo, não podemos afirmar a existência de dragões na realidade, pois sabemos não ser este o caso. Do mesmo modo, podemos pensar em unicórnios e, no entanto, não lhes atribuir existência na realidade. Ao contrário das baleias e das girafas, os dragões e os unicórnios não existem na realidade. Na perspectiva de Anselmo, sempre que negamos a existência de algo, admitimo-la como existindo no pensamento. Não é surpreendente que os ateus afirmem ocorrer o mesmo com Deus. Com efeito, embora concebamos Deus como existente no pensamento, não o concebemos como existente na realidade, dirão os ateus: tratar-se-ia meramente de uma sofisticada invenção da imaginação humana. O ponto interessante a notar é que Anselmo está ciente do fato de, mesmo os ateus, admitirem a existência de Deus no pensamento. Por negar a existência divina na realidade, o ateu conseqüentemente tem de admitir a existência de Deus no pensamento (do mesmo modo, quando negamos a existência de dragões na realidade, estamos, segundo a perspectiva de Anselmo, a admitir sua existência no pensamento). Portanto, podemos justificar a primeira premissa de Anselmo com o seguinte argumento:

1.a. Quando alguém nega a existência de um ser na realidade, tem de admitir a existência do mesmo no pensamento.
2.b. Os ateus negam a existência de Deus na realidade.

Logo,

3.c. Os ateus têm de aceitar a existência de Deus no pensamento.

Entretanto, admitir a existência de Deus no pensamento parece trivial: o que de fato procuramos saber é se ele existe na realidade, afirmará o ateu. Vejamos, pois, como Anselmo procede a fim de persuadir-nos a aceitar a existência de Deus na realidade, e não meramente a aceitar sua existência no pensamento.

A segunda premissa

O segundo passo da estratégia de Anselmo consiste em afirmar a possibilidade da existência de Deus na realidade. Há pelo menos três sentidos diferentes em afirmar a possibilidade da existência de Deus na realidade. Podemos afirmar que é metafisicamente possível Deus existir na realidade. Também podemos afirmar que é nomologicamente possível Deus existir na realidade. E, finalmente, podemos afirmar que é logicamente possível Deus existir na realidade. Temos aqui, portanto, três sentidos diferentes de possibilidade, a saber, possibilidade metafísica, nomológica e física. Mas o que significa exatamente cada uma delas?

Metafisicamente possível é aquilo que é realmente possível. A possibilidade metafísica permite que algo seja possível se for consistente com as leis “metafísicas” — sejam elas quais forem. Por exemplo, se as leis metafísicas incluem as leis da lógica, afirmaremos ser metafisicamente impossível chover e não chover ao mesmo tempo, ou Sócrates não ser Sócrates. Por outro lado, se considerarmos as leis metafísicas de modo a incluir as leis das ciências, diremos que é metafisicamente impossível a água não ser H2O ou um objeto dar a volta à galáxia num microsegundo. Assim, Deus é um ser metafisicamente possível se, e somente se, for consistente com as leis metafísicas.

Por sua vez, algo é nomologicamente possível se for consistente com as leis da ciência. Por exemplo, é fisicamente impossível viajar mais depressa do que a luz, assim, é uma impossibilidade nomológica qualquer objeto viajar mais depressa do que a luz. Já Sócrates ter nascido no Egito, ao invés de ter nascido em Atenas, é uma possibilidade nomológica. Não há qualquer transgressão das leis científicas no fato de Sócrates poder ter nascido no Egito. Também não é uma impossibilidade nomológica alguém saltar de pára-quedas. Mas um ser humano dar um salto até à Lua é algo nomologicamente impossível. Tudo aquilo que não for permitido pelas leis da ciência é nomologicamente impossível. Positivamente, tudo aquilo que é permitido pelas leis científicas é nomologicamente possível.

Um âmbito de possibilidade certamente mais amplo é o da possibilidade lógica. Uma coisa só é logicamente possível se sua negação não é nem implica uma contradição. Todo o resto é logicamente possível. Não é uma impossibilidade lógica saltar até a Lua, a água não ser H2O, Sócrates não ser humano, etc. Mas disso não se segue que tudo seja possível. Há sem dúvida coisas que são logicamente impossíveis. Pense, por exemplo, no conceito de triângulo sem três lados. É sequer possível que tal coisa exista na realidade? Não há dúvidas de que responderíamos negativamente. Portanto, seguindo este raciocínio, negaríamos não só a existência, mas também a possibilidade de existirem quadrados redondos, solteiros casados, triângulos sem três lados, etc. Não podemos de modo algum — na perspectiva de Anselmo — aceitar a possibilidade de existirem coisas que sejam contradições nos termos. Mas o conceito de Deus não implica contradição nos termos. O ponto capital parece então ser o seguinte: se algo não é uma impossibilidade lógica (por exemplo, chover e não chover ao mesmo tempo, existir um solteiro que seja ao mesmo tempo casado), então não há problemas em afirmar que este algo possa existir na realidade. Como Deus, na perspectiva de Anselmo, não é um ser logicamente impossível, segue-se então que ele poderia existir na realidade. Assim, sustentaremos a segunda premissa com o seguinte argumento:

2.a. Se algo é logicamente possível, então é possível que exista na realidade.
2.b. Deus é logicamente possível.

Logo,

2.c. É possível que Deus exista na realidade.4

A terceira premissa e a reductio ad absurdum

Finalizaremos a primeira parte de nossa exposição com a terceira premissa do argumento de Anselmo, a saber, se algo existe no pensamento e podia existir na realidade, então podia ser maior do que é. Esta premissa pressupõe a noção de que a existência confere grandiosidade, ou seja, afirma que a existência de algo na realidade é maior do que a existência de algo meramente no pensamento. Por exemplo, na perspectiva de Anselmo, um dragão existente é maior (em termos de grandiosidade) do que um dragão inexistente, visto que o primeiro possui a qualidade de existência e o segundo não. As qualidades que conferem grandiosidade não são apenas as que atribuímos à concepção teísta de Deus. É claro que as propriedades essenciais desta concepção tornam Deus o maior ser (em termos de grandiosidade) de todos os possíveis (como vimos, a bondade e a sabedoria moral são características produtoras de grandiosidade). Mas a terceira premissa de Anselmo parece sugerir o seguinte: quando falamos de uma mesma coisa, se esta pode existir na realidade mas não existe, então poderia ser maior do que é. Por exemplo, supondo que seja possível um unicórnio existir na realidade, diremos que poderia ser maior do que é: um unicórnio existente na realidade é maior do que um unicórnio que existe meramente no pensamento.

Com Deus não é diferente. Como admitimos a possibilidade de Deus existir na realidade, admitiremos também que poderia ser maior do que é, caso aceitemos a terceira premissa. Contudo, tal afirmação leva-nos a uma conclusão surpreendente. Supondo que admitamos as premissas 1 a 3, temos de aceitar, como afirmou Anselmo, a existência de Deus na realidade. Lembremos que o Deus de Anselmo é o maior, em termos de grandiosidade, de todos os possíveis. Vejamos agora o argumento como um todo:

  1. Deus existe no pensamento.
  2. Deus é um ser possível.
  3. Se algo existe no pensamento e podia existir na realidade, então podia ser maior do que é.

Mas por que temos de aceitar a existência de Deus na realidade mediante unicamente estas três premissas? Como afirmei, ao invés de convencer-nos diretamente a aceitar a existência de Deus na realidade, Anselmo convida-nos a negar sua existência na realidade. Se supusermos que tal Deus não existe na realidade, ocorrerá o seguinte:

  1. Deus não existe na realidade (suposição da reductio).
  2. Se Deus não existe na realidade, então — dada a premissa 3 — poderia haver um ser maior do que ele.

Logo,

  1. Há um ser maior do que Deus. Ou melhor, há um ser maior do que o ser maior do que o qual nenhum outro é possível.

Dado que 6 é uma contradição, pois não é possível haver ser maior do que Deus justamente pelo fato de Deus ser o maior de todos os seres, concluímos:

  1. Deus existe na realidade bem como no entendimento.

Com esta reductio Anselmo pensa que prova a existência de Deus. Como podemos observar, o filósofo medieval pensa que, a partir de uma simples análise do conceito de Deus, podemos estabelecer a sua existência na realidade e, para tanto, oferece-nos este argumento. No entanto, foram muitas as críticas ao seu argumento desenvolvidas ao longo da história da filosofia. Infelizmente, não podemos expor toda a discussão e debate que se seguiu.5 O ataque que faremos ao argumento de Anselmo dirige-se à sua segunda premissa. Se conseguirmos negá-la, então não teremos de aceitar o argumento.

Possibilidade e existência de Deus

Sustentamos a segunda premissa com o seguinte argumento: se algo é logicamente possível, então é possível (ou seja, este algo é metafisicamente possível). Vejamos novamente como justificamos a segunda premissa:

2.a. Se algo é logicamente possível, então é possível que exista na realidade.
2.b. Deus é logicamente possível.

Logo,

2.c. É possível que Deus exista na realidade

Como Deus é logicamente possível, segue-se então que é de fato possível. Quando aplicamos este argumento a Deus parece não haver problema algum. Entretanto, alterando o exemplo, o argumento apresenta-se muito contra intuitivo.

Se algo é logicamente possível, então é realmente possível.
É logicamente possível que Sócrates tenha sido um cão.

Logo,

É realmente possível (ou metafisicamente possível) que Sócrates tenha sido um cão.

Como podemos observar, o defensor do argumento ontológico parece ter de sustentar que tudo o que é logicamente possível é metafisicamente possível. Isto porque Deus parece que é um ser nomologicamente impossível. Uma coisa só é nomologicamente possível se for consistente com as leis da ciência. Deus é nomologicamente possível se, e somente se, é consistente com as leis da ciência. Pelo fato de Deus ser capaz de estar em dois lugares ao mesmo tempo, por exemplo, não podemos considerá-lo como um ser nomologicamente possível. Além disso, a onipotência divina assegura que Deus pode fazer tudo aquilo no qual não envolva contradições. Não há qualquer contradição em afirmar que Deus viaja mais depressa do que a luz, ainda que seja fisicamente impossível viajar mais depressa do que a luz. Isto é suficiente para afirmarmos que Deus é um ser nomologicamente impossível.

Entretanto, ao considerar que a possibilidade lógica é uma possibilidade real (tal como observamos na premissa 2.a.) enfrentamos um problema: esta pressuposição viola uma de nossas intuições básicas: a de que nem toda a possibilidade lógica é uma possibilidade real. Será realmente possível que amanhã nos tornemos elefantes voadores? Que Wittgenstein, na verdade, tivesse sido uma raquete de tênis ao invés de um ser humano? Intuitivamente, responderíamos que não. Além disso, o problema não é somente o fato de violar uma de nossas intuições fundamentais. Quando afirmamos que Deus é um ser possível estamos a pressupor sem justificação que uma possibilidade lógica é uma possibilidade real. Por que devemos acreditar que tudo aquilo que é logicamente possível é de fato possível? O que o defensor do argumento ontológico teria de fazer é defender esta idéia ao invés de meramente pressupô-la. Se não há razões para aceitar que uma possibilidade lógica é uma possibilidade real, então podemos rejeitar a segunda premissa do argumento ontológico.

Além do mais, parece mais intuitivo supor que a possibilidade real seja a possibilidade nomológica. Se fizermos isto, não teremos de aceitar que Sócrates poderia ter sido um cão ou Wittgenstein uma raquete de tênis. Entretanto, se afirmamos que só o que é nomologicamente possível é metafisicamente possível, teremos de recusar a mera possibilidade de Deus existir na realidade, ou seja, Deus seria um ser metafisicamente impossível. Contudo, não precisamos defender esta idéia para negar o argumento ontológico. O que compete ao defensor do argumento ontológico é mostrar por que toda a possibilidade lógica é uma possibilidade real. Infelizmente não há razões para aceitar esta suposição. E se não a aceitamos, o argumento de Anselmo não é uma prova sólida da existência de Deus.

Uma possível objeção do defensor do argumento ontológico

Uma das maneiras de o defensor do argumento ontológico rejeitar minha objeção seria a seguinte: não é preciso pressupor que tudo o que é logicamente possível é realmente (ou metafisicamente) possível. Pode-se apenas pressupor que nem tudo o que é nomologicamente impossível é realmente impossível. Embora seja nomologicamente impossível viajar mais depressa do que a luz, não se segue que seja realmente impossível viajar mais depressa do que a luz, pois as leis da natureza podem ser metafisicamente contingentes. O teísta argumentaria a favor da possibilidade real de viajar mais depressa do que a luz, apesar de isso não ser nomologicamente possível. O defensor do argumento ontológico não precisaria assim de pressupor que tudo o que é logicamente possível é realmente (ou metafisicamente) possível; só teria de pressupor que algumas coisas que são nomologicamente impossíveis são realmente possíveis. Portanto, ficaria imune à minha crítica que questiona o primeiro pressuposto, defendendo que embora Deus seja nomologicamente impossível, daí não se segue que é metafisicamente impossível.

Mas se Deus é nomologicamente impossível e se o teísta não parte do pressuposto de que toda a possibilidade lógica é uma possibilidade real, terá de pressupor que Deus é um ser metafisicamente (ou realmente) possível. Mas este pressuposto, apesar de evitar a objeção por mim levantada, tem um grave problema para o teísta: afinal, não é óbvio que Deus seja metafisicamente possível. O defensor do argumento ontológico estaria a pressupor sem maiores razões que Deus é um ser realmente possível. Ao invés de justificar a segunda premissa, simplesmente a toma como óbvia: pressupõe algo que deveria justamente provar. Isto é suficiente para tornar o argumento — no mínimo — muitíssimo menos cogente. Nem mesmo neste caso o argumento ontológico poderia ser uma prova sólida a favor da existência de Deus. Esta suposição, que afirma a possibilidade metafísica de Deus existir, tornaria simplesmente o argumento menos cogente porque obrigaria a aceitar uma premissa muito menos plausível.6

Pedro Merlussi

Notas

  1. Um argumento é a priori quando todas as suas premissas são conhecíveis pelo pensamento apenas, ou quando não precisamos recorrer às nossas capacidades perceptivas. Ou seja, não precisamos recorrer à experiência para conhecer uma proposição como que dois mais dois é igual a quatro. No caso do argumento ontológico, não precisamos recorrer à experiência para conhecer suas premissas. Dos argumentos mais famosos a favor da existência de Deus (como o cosmológico e do desígnio), o ontológico é o único a priori.
  2. Observa-se outras formas do argumento ontológico em Descartes (nomeadamente na Meditação V), Espinosa (Ética, parte I, teoremas 7–11) e Leibniz (Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain, livro IV, cap.10; Monadologia, seçs. 44-45).
  3. Reductio ad absurdum (lat., redução ao absurdo) “é um método indireto de demonstração que prova a verdade de uma proposição pela impossibilidade de aceitar as conseqüências que derivam de sua contraditória” (Mora 2004: 2476). Ao invés de demonstrar diretamente a existência de Deus, Anselmo supõe a inexistência de Deus. A partir disso, conclui o seguinte: se afirmamos que Deus não existe, teremos um resultado contraditório. Portanto, devemos aceitar a existência de Deus.
  4. Este argumento não está presente no texto de Anselmo, mas, infelizmente, o filósofo também não fornece razão para aceitar a segunda premissa. Mesmo que a segunda premissa seja verdadeira, devemos saber por que ela o é (e quanto a isso Anselmo não oferece razões). Portanto, o que parece mais plausível supor é que se uma coisa não implica contradições nos termos, então se segue que ela seja possível de existir na realidade. Ao aceitar este argumento parece que temos justificação para aceitar a segunda premissa.
  5. A primeira objeção ao argumento de Anselmo encontra-se no texto Livro em Favor do Insensato do monge Gaunilo de Marmoutiers. A resposta de Anselmo a esta objeção pode ser encontrada tanto em Obras Completas de San Anselmo, Madri, Biblioteca de Autores Cristianos, 1952–1953, vol. I, como também em Philosophy of Religion: A Guide and Anthology, Oxford, Oxford University Press, 2000. Uma crítica que muito mais tarde se tornou célebre pode ser encontrada em Kant, Crítica da Razão Pura. Além disso, para uma exposição clara e introdutória das diversas objeções cf. Rowe.
  6. Este trabalho foi realizado no âmbito da disciplina Filosofia da Religião, ministrada por Desidério Murcho na UFOP.

Bibliografia

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457