Muitos moralistas gregos são eudemonistas; pressupõem que a felicidade (eudaimonia) é o fim último da acção racional humana. Sócrates, Platão, Aristóteles e a maior parte dos seus sucessores tratam este pressuposto como a base da sua argumentação ética.1 Mas nem todos os moralistas gregos concordam; e dado que o pressuposto eudemonista poderá não nos parecer tão correcto como para muitos moralistas gregos, vale a pena ter em consideração as perspectivas daqueles gregos que dele discordavam.
Nessa discórdia, as vozes mais radicais que conhecemos são as da escola cirenaica, advindas (de algum modo) de Aristipo, um discípulo de Sócrates.2 As nossas fontes, por muito parcas que sejam, relatam claramente que os cirenaicos rejeitavam a felicidade como fim último:
[…] o fim não é o mesmo que a felicidade. Pois o fim é o prazer particular (kata meros), ao passo que a felicidade é um agregado (sustêma) feito de prazeres particulares, entre os quais se conta conjuntamente (sunarithmountai) tanto os prazeres do passado como do futuro.
O prazer particular é digno de escolha devido a si próprio. A felicidade, por outro lado, é digna de escolha não devido a si, mas devido aos prazeres particulares. (Diógenes Laércio II 87–88)3
Os anicerianos [i.e., os seguidores de Aniceres] da linhagem cirenaica não estabeleceram qualquer fim definido da totalidade da vida, afirmando ao invés que há um fim especial para cada acção — o prazer que resulta da acção. Estes cirenaicos repudiam a perspectiva que Epicuro tem do prazer como eliminação da dor, denunciando-a como a condição de um cadáver. (Clemente, Stromata II 21, 130.7–8)
Aristipo acolhia a experiência do prazer (hêdupatheia), e disse que é o fim, e que a felicidade tem nele o seu fundamento. E disse que era só por um momento (monochronos). Como pessoas pródigas, pensava que a memória das gratificações do passado não lhe dizia respeito, nem a expectativa das gratificações do futuro, discernindo antes o bem exclusivamente no momento presente único. Considerava que ter sido gratificado e estar prestes a sê-lo não lhe dizia respeito, com base na ideia de que um já não existe e o outro ainda não existe nem é claro — tal como acontece com as pessoas satisfeitas consigo mesmas, que supõem que só o que é presente as beneficia. (Ateneu, Deipnosophistae XIV 514a.)4
Estes relatos atribuem uma perspectiva bastante incomum aos cirenaicos, e por essa razão é menos provável que resultem simplesmente de incompreensão ou confusão das fontes.5 Contudo, não explicam por que razão os cirenaicos rejeitam o eudemonismo. Qualquer explicação está condenada a ser especulativa, devido à inadequação das nossas fontes; mas mesmo uma explicação especulativa poderá fixar-nos a atenção em algumas questões importantes levantadas por pressupostos eudemonistas.
Para ver por que razão uma pessoa poderia rejeitar o eudemonismo, é útil perguntar por que razão uma pessoa poderia aceitá-lo, ou até dá-lo como garantido. Aristóteles parece pensar que é em geral dado como garantido. Pois pensa que as pessoas irão em geral concordar que o bem final é de identificar com a felicidade, que é também de identificar com “viver bem” (eu zên) e “sair-se bem” (eu prattein) (Ética Nicomaqueia 1095a15–20). Aristóteles observa que, em contraste com este ponto de concordância geral, as pessoas discordam quanto ao que é a felicidade.
Se a observação de Aristóteles nos dá a tentação de supor que não há espaço para discordar quanto ao bem final ser ou não a felicidade, então as perspectivas cirenaicas devem certamente fazer-nos mudar de ideias. Pois os cirenaicos acreditavam que o prazer é o bem último, que é digno de escolha (haireton) por si, e que tudo o mais só é digno de escolha devido ao prazer; mas negavam que este bem último seja a felicidade.
Contudo, Aristóteles também tenta explicar por que razão o fim último deve ser identificado com a felicidade.6 Na Ética Nicomaqueia I 7, Aristóteles defende que o bem tem de ser completo e auto-suficiente; e infere que a felicidade é o bem final, porque satisfaz estes critérios (1097a34–b6, b15–21). Este argumento ajuda a fixar os pontos de disputa entre os cirenaicos e o eudemonismo. Se os cirenaicos negam que a felicidade é o fim último, então têm de afirmar que I) Aristóteles não tem razão quanto ao que afirma sobre os critérios do bem, ou que II) tem razão quanto aos critérios, mas está enganado ao pensar que a felicidade os satisfaz, ou que III) está enganado nas duas coisas. A base da discordância com Aristóteles tornar-se-á mais clara se examinarmos a concepção de bem dos cirenaicos.
Aristipo identifica o bem com o prazer, sem distinguir tipos melhores ou piores de prazer:
Aqueles que aderiram às perspectivas de Aristipo e eram denominados cirenaicos sustentavam a seguinte perspectiva: estabeleceram duas impressões (pathê), a dor e o prazer, considerando que uma delas, o prazer, é um movimento suave, e a outra, a dor, é agreste. Da sua perspectiva, um prazer não é superior a7 outro, nem é um mais agradável do que outro. Uma impressão é bem-vinda, e a outra é repulsiva, para todos os animais. (Diógenes Laércio II 87)
Aristipo não é apenas um hedonista; é também um hedonista do presente. Afirma que os prazeres do passado e do futuro não contam com respeito ao bem da pessoa:
Além disso, não pensam que o prazer se consegue pela memória, nem pela expectativa dos bens, como pensava Epicuro. Pois pensam que o movimento da alma se gasta com o tempo.
[…] pensam que apesar de o prazer ser digno de escolha em si, as coisas que nos disturbam e que provocam certos prazeres são amiúde do género contrário. E por isso parece que a acumulação (hathroismos) de prazeres que não produz8 felicidade é muito desagradável. (Diógenes Laércio II 89–90)
A minha sugestão é que a versão de Aristipo de hedonismo está ligada à sua rejeição do eudemonismo, e que a conexão se encontra nas suas perspectivas acerca da identidade pessoal. Para explicar a natureza desta conexão, irei falar um pouco mais da conexão entre o hedonismo e a rejeição do eudemonismo. Pois a linha principal de argumentação de Aristipo não é excêntrica, nem sem ligação às preocupações dos seus antecessores. Pelo contrário, desenvolve um argumento que faz parte da crítica de Platão ao eudemonismo hedonista.
O primeiro Aristipo foi discípulo de Sócrates.9 Isto não permite supor que terá de ter concordado com as perspectivas de Sócrates sobre ética; apesar disso, o exame de Sócrates do prazer e da felicidade poderá sugerir um ponto de partida para os argumentos cirenaicos. Pois o próprio Sócrates parece defender o hedonismo no Protágoras;10 e um discípulo seu poderia de maneira inteligente pensar que esta é a explicação mais plausível do bem, com base na qual se conseguirá defender algumas das outras principais teses éticas de Sócrates.
O hedonismo cirenaico do presente difere marcadamente do hedonismo defendido por Sócrates no Protágoras. Para Sócrates, o hedonismo está firmemente subordinado ao eudemonismo. Sócrates considera que o eudemonismo é obviamente verdadeiro (Eutidemo 278e3–6, 289b5–6, 282al–2), e defende o hedonismo argumentando que procuramos maximizar o saldo positivo de prazer sobre a dor, na vida como um todo (Protágoras 53c9–354e2). A verdade pressuposta do eudemonismo determina o sentido em que se considera que o prazer é o fim (telos, 354b7); não é o prazer do momento [en tô(i) parachrêma, 353d1], mas o prazer somado ao longo da vida. Sócrates defende que precisamos da ciência de pesar os prazeres e as dores para “a salvação da vida” (sôtêria tou biou, 356d4–5); a “vida” refere-se à nossa vida como um todo.
Tanto Platão como os cirenaicos afastam-se da perspectiva de Sócrates do Protágoras; e a discordância de Platão com Sócrates ajuda a explicar a discordância cirenaica com ambos.
No Górgias, Sócrates defende que Cálicles não pode de maneira consistente aceitar simultaneamente o hedonismo e o seu pressuposto de que a coragem é uma virtude que promove a felicidade do agente. Ao pressupor que as virtudes de um agente têm de promover a sua felicidade, Cálicles concorda com a posição de Sócrates tanto do Górgias como do Protágoras. O Protágoras, contudo, não vê dificuldade em reconciliar a aceitação da coragem com o hedonismo; pois Sócrates afirma aí que a coragem é o conhecimento do que maximiza o nosso prazer total na vida (359d4–360a2). No Górgias, em contraste, Sócrates responde que de facto o cobarde parece obter mais prazer do que a pessoa corajosa, de modo que um hedonista não tem qualquer razão para considerar a coragem uma virtude (Górgias 498e10–499b3).
Podemos suspeitar que ou Sócrates não está a fazer justiça ao hedonismo, ou não rejeita realmente o hedonismo do Protágoras. Pois este diálogo não tem em consideração simplesmente o prazer de curto prazo que parece estar na mira do Sócrates do Górgias, mas antes o prazer de longo prazo que é acumulado ao longo da vida do agente como um todo; caso se tenha isto em consideração, decerto que deixa de ser verdadeiro que o cobarde obtém mais prazer, ou não?
Esta resposta, contudo, não deve convencer-nos, se compreendemos o Górgias. Pois Sócrates põe em questão a tese eudemonista do hedonista de que a pessoa corajosa obtém mais prazer do que a cobarde, no cômputo geral. Cálicles concordou que obtemos mais prazer se, digamos, comemos quando estamos com muita fome do que quando não temos muita fome; ora, o cobarde tem mais medo do perigo do que a pessoa corajosa, e por isso tem tanto mais prazer se a ameaça de um mal lhe passa ao lado. Além disso, se a sua cobardia o expuser a mais perigo no futuro, pode ter a expectativa de um prazer maior se tiver a sorte de evitar os males que o ameaçavam. Claro que poderá não ter sorte; mas não é claro que se saia pior, de um ponto de vista puramente hedonista, do que a pessoa corajosa. Pois mesmo que a pessoa corajosa consiga proteger-se (de novo, sem garantias) de algumas dores do futuro, nega-se a oportunidade dos prazeres intensos do cobarde, que suspira de alívio quando o perigo passa, além de se expor a dores que este evita.
Cálicles sugeriu uma razão diferente para rejeitar a vida do cobarde. Admira as pessoas corajosas, porque “são suficientemente fortes para levar a cabo o que têm em mente, e não se acobardam por serem fracas” (491b2–4). Estas pessoas fortes e resolutas têm planos para si e querem levá-los a cabo; dado que os medos e a “fraqueza” nos impede de levar a cabo os nossos próprios planos, os agentes que têm interesse em levar a cabo os seus planos quererão dominar o medo e evitar que caiam na cobardia. A pessoa ideal de Cálicles é a que leva a cabo os seus planos, e satisfaz os seus próprios desejos (491e8–492a3), sem medo do que as outras pessoas irão pensar (492a3–b1).
Não ocorre inicialmente a Cálicles que a sua admiração por esta forma de vida bem planeada e resoluta entra em conflito com o conteúdo particular que pressupõe que terá — a procura sem limites da satisfação dos nossos próprios desejos. Mas Sócrates faz-lhe notar o conflito. Pois o género de planeamento e resolução que Cálicles valoriza só poderão parecer valiosos a um hedonista se forem estratégias sensatas para maximizar o prazer ao longo da nossa vida. O exemplo do cobarde mostra que fazer planos e ser resoluto poderá não ser melhor do que a cobardia como estratégia para maximizar o prazer; daí que o hedonismo não dê a Cálicles uma justificação para preferir a coragem à cobardia.
Sócrates não precisa de mostrar que um hedonista tem de rejeitar virtudes como a coragem; só precisa de mostrar que o hedonismo não consegue explicar o valor que se associa apropriadamente a essas virtudes. Ainda que os hedonistas possam dar alguma razão para nos aconselhar a fazer o que a pessoa corajosa faria, não terão explicado o que a coragem tem realmente de valioso. Se dermos o valor que Cálicles dá às virtudes que exprimem o nosso interesse pelos nossos planos racionais e pela sua execução, então teremos razões para rejeitar o hedonismo.11
Um hedonista perspicaz poderá dar-se conta de que o argumento anti-hedonista do Górgias se apoia no pressuposto de que nos concebemos como agentes racionais temporais com um interesse apropriado nas nossas próprias vidas como um todo, e pela execução dos nossos planos de longo prazo. A coragem é valiosa para agentes que se interessam pelos seus planos de mais longo prazo, e que não querem desviar-se deles devido a receios mais imediatos; e se queremos viver em harmonia com os nossos planos de mais longo prazo, iremos rejeitar o género de vida que — como a vida do cobarde — nos impede de formar e executar esses planos. Ora, poderá ocorrer ao hedonista que, se o eudemonismo for falso, então o interesse por nós próprios como agentes racionais temporais não tem justificação, e as objecções socráticas ao hedonismo desmoronam-se.
No Filebo surge uma questão semelhante sobre a relação do hedonismo com o eudemonismo. Depois de começar por dizer que Filebo só reconhece o prazer como bem (11b4–6), Sócrates pressupõe que tanto ele como Filebo querem identificar a condição da alma que torna feliz a vida de um ser humano (11d4–6); é evidente que Sócrates não pensa que esta é uma nova questão relativamente à questão sobre os bens. Dado que a questão é acerca da felicidade, é entendida como uma propriedade desejável da vida de uma pessoa como um todo (ton bion hapanta, 21a8; cf. b3, d3, 22b6); é por isso que a argumentação é acerca de uma escolha entre duas maneiras de conduzir toda a nossa vida.
Sócrates pressupõe que o bem tem de ser completo e adequado, de modo que uma vida que o tenha de nada mais precisa (20e5–21a2). Para mostrar que a vida de prazer sem inteligência (phronêsis) não é completa, Sócrates apela à importância da memória e da antecipação. A vida pura de prazer carece de inteligência, e por isso carece das diferentes formas de consciência racional — memória, crença (sobre o presente) e cálculo (quanto ao futuro) — presentes na concepção que o agente tem de si próprio como agente racional que perdura ao longo das suas diferentes experiências e prazeres. Dado que não temos memória, não nos lembramos que tivemos prazer; sem crença, não estamos cientes de estarmos usufruindo o prazer que agora temos; e sem cálculo racional não temos capacidade para calcular que continuaremos a ter prazer no futuro (21c).
Sócrates não faria justiça à posição hedonista caso pretendesse recomendar estas formas de consciência racional simplesmente como meios para ter prazeres mais intensos.12 Pois já concedeu que a vida pura de prazer inclui os prazeres mais intensos (21b3–4). Se as várias formas de consciência racional são necessárias como meios para obter estes prazeres, então já estão incluídos na vida de prazer; mas dado serem puramente instrumentais para o prazer (do ponto de vista hedonista sob consideração), é de presumir que eles próprios não constituem qualquer um dos bens da vida de prazer. Consequentemente, Platão tem justificação para perguntar como é a vida de prazer sem estes aspectos da consciência racional, e para perguntar se inclui todos os elementos do valor intrínseco que pensamos que devem ser incluídos. O hedonista não concede que a consciência racional é um dos elementos constitutivos do valor intrínseco da vida.
A consciência racional que Platão tem em mente é a que está presente quando estou ciente de mim próprio ao longo do tempo; a memória, a autoconsciência e o cálculo racional são diferentes maneiras de estar ciente de mim como o mesmo agente em todas estas experiências. Platão não fala apenas da memória do prazer do passado; fala especificamente da minha memória de que anteriormente estava a sentir-me bem (21c1). Estar ciente de mim como agente racional, nas minhas diferentes experiências, faz parte do que há de bom na vida, e isso está ausente na vida pura de prazer. A minha crença de que a memória e a antecipação são minhas faz parte do que as torna agradáveis para mim; e essa crença é relevante para me sentir bem, na medida em que liga estas experiências ao meu interesse por mim e pela minha vida como um todo. Se o hedonismo não der valor intrínseco ao género relevante de consciência racional de si, não poderá dar o valor apropriado à memória e à antecipação. Dado que não pode fazer tal coisa, não consegue explicar correctamente a natureza da felicidade.
De novo, como no Górgias, um hedonista poderá dar-se conta de que a argumentação de Platão depende da racionalidade do interesse por mim como um todo. Ao dar valor à consciência racional do meu passado, presente e futuro, e à consciência da sua conexão, Platão pressupõe que é apropriado que me interesse por um agente racional temporal. Se rejeitarmos o eudemonismo, pomos em questão o fundamento da argumentação de Platão.
Os argumentos de Platão sugerem por que razão um hedonista poderia pensar pôr em questão alguns argumentos anti-hedonistas, disputando alguns pressupostos eudemonistas, e por que razão um ataque à racionalidade do nosso cuidado por um eu temporal seria um ataque sério ao eudemonismo. Este pano de fundo platónico deverá tornar mais fácil ver por que razão os cirenaicos rejeitam o eudemonismo; e veremos que apoiam provavelmente a rejeição do eudemonismo pondo em questão a crença num eu temporal.
Alguns aspectos da sua posição sugerem que Aristipo rejeita o eudemonismo por pensar que depende de pressupostos disputáveis quanto ao carácter temporal da felicidade. Há quatro teses entreligadas que são especialmente relevantes:
A quarta destas teses é relevante para as outras porque depende da terceira, que por sua vez está ligada às duas primeiras. Isto torna-se claro na resposta epicurista à perspectiva cirenaica. Os epicuristas defendem que os prazeres e dores do espírito podem ser muito maiores do que os prazeres e dores do corpo:
Pois com o corpo de nada podemos estar cientes excepto do presente e do que está aqui agora (quod adest), mas com o espírito podemos estar cientes tanto das coisas do passado como do futuro. Pois se pressupomos que quando temos dor física [em dois casos] a dor [física] é igual, pode mesmo assim haver um grande incremento se pensarmos que algum mal sem limite nem fim se aproxima. (Cícero, De finibus bonorum et malorum I 55)13
O argumento epicurista pressupõe o eudemonismo; pois afirma que os prazeres e dores da antecipação afectam os nossos prazeres e dores do presente se considerarmos a totalidade do prazer e da dor ao longo do passado e do futuro. Aristipo centra-se nos prazeres e dores do corpo porque tem em mente o presente e não o passado nem o futuro.
As primeiras duas teses de Aristipo centram-se também no presente, em contraste com o passado e o futuro. Afirma-se que a felicidade é um agregado (sustêma) que inclui prazeres do passado e do futuro, assim como do presente; e dado que temos de levar a cabo dores de curta duração para ter prazeres posteriores, a acumulação desse agregado é desagradável.
À luz dos argumentos anti-hedonistas de Platão, é inteligível que Aristipo se centre na extensão temporal da felicidade; pois Platão apela exactamente a esta característica para mostrar que uma concepção hedonista da felicidade não consegue explicar o valor que damos à consciência racional de nós como agentes racionais temporais. Em resposta, Aristipo concede que uma concepção hedonista da felicidade não consegue responder à condição de Platão, mas defende que isso não importa; pois dado que a felicidade não é o bem ou fim último, quaisquer objecções que apelem a factos sobre a felicidade não têm força contra uma concepção hedonista do bem.
Mas, então, por que razão supõe Aristipo que o aspecto temporal da felicidade explica por que razão a felicidade não pode ser o fim último?
Neste ponto, temos de voltar-nos para um aspecto da doutrina cirenaica que as provas documentais da Antiguidade ligam com muita proeminência ao hedonismo ético — o sensacionismo extremo da epistemologia cirenaica. Algumas fontes afirmam que tanto na epistemologia como na ética os cirenaicos só confiam nas nossas impressões, pathê, e são completamente cépticos quanto a tudo o mais:
Os cirenaicos dizem que os critérios são as impressões; só estas são apreendidas, e só elas não são enganadoras, ao passo que nenhuma das coisas que provocam impressões é apreensível14 nem não-enganadora. Pois, afirmam, podemos dizer sem estarmos enganados, nem sermos refutados, que estamos num estado branco ou doce; mas não podemos afirmar se a coisa que provoca a nossa impressão é branca ou doce. (Sexto Empírico, Adversus Mathematicos VI 190–191)
[…] Assim, se temos de dizer a verdade, só a impressão é evidente para nós; a coisa externa que a provoca talvez exista, mas não é evidente para nós. (194)
[…] Parece que o que dizem sobre os fins corresponde ao que dizem sobre os critérios. Pois as impressões abrangem também os fins. Pois algumas impressões são agradáveis, outras dolorosas, outras intermédias, e, do seu ponto de vista, as dolorosas são más e o seu fim é a dor, as agradáveis são boas e o seu fim não-enganador é o prazer, e as intermédias não são boas, nem más, e o seu fim é o que não é bom nem mau, uma impressão intermédia entre o prazer e a dor.
Assim, de todas as coisas, as impressões são os critérios e fins e, afirmam, vivemos seguindo-as, apoiando-nos na obviedade15 e aprovação — na obviedade em relação às outras impressões, e na aprovação em relação ao prazer. (199–200)
Esta passagem afirma que os cirenaicos encontram na sua epistemologia um apoio directo da perspectiva que defendem de que o prazer é o fim. Supõe-se que a nossa consciência de que o prazer é bom em si tem o mesmo carácter óbvio e irrefutável que tem a nossa consciência das sensações enquanto nos ocorrem; e, do ponto de vista cirenaico, nenhuma outra concepção do bem pode afirmar uma base irrefutável nas nossas impressões.
Ao dizer que consideram “as impressões” o critério, os cirenaicos não podem querer dizer que confiam por igual em todas as impressões. Pois algumas podem incluir pressupostos sobre o futuro, por exemplo, que depois se revelam falsos. Se tenho medo de levar uma injecção por acreditar que será terrivelmente dolorosa, essa impressão não é de confiança; pois é refutada ao descobrir mais tarde que afinal não é assim tão dolorosa. Os cirenaicos apoiam-se no subconjunto de impressões que não podem ser refutadas por seja o que for de mais evidente; nada (do seu ponto de vista) pode refutar a minha sensação de que este gosto é agradável, nem a crença associada de que há algo de bom quanto a este prazer; e nenhuma crença igualmente evidente pode persuadir-me de que outra coisa qualquer é boa. A razão dos cirenaicos para confiar em algumas impressões em detrimento de outras revelar-se-á depois importante, quando examinarmos a sua atitude para com as impressões que parecem entrar em conflito com a sua concepção do fim.16
Para que esta defesa do prazer possa pôr em questão a tese de que a felicidade é o fim, os cirenaicos têm de mostrar que não temos uma consciência igualmente directa e irrefutável do bem da felicidade.
Poderá parecer estranho afirmar, deste ponto de vista epistemológico, que o bem da felicidade é menos óbvio do que o bem do prazer. Pois se afirmamos que a felicidade é simplesmente um agregado de prazeres, poderá parecer que herda o bem óbvio das suas componentes. Se os cirenaicos não concordam, então terão de pensar que há algum problema epistemológico especial com respeito aos agregados, mesmo que as suas componentes sejam objecto de consciência directa irrefutável.
Para ver o problema que os agregados levantam, devemos ter em consideração uma discussão que os menciona, numa análise da nossa crença nos objectos externos. No Teeteto, Platão desenvolve uma explicação heraclitiana da percepção e da realidade, afirmando que apoia a crença de Protágoras de que as coisas são como parecem a cada pessoa. A teoria heraclitiana considera que, ao ver uma pedra branca, tanto o sujeito que vê, como a pedra branca, são produtos ou a “prole” de um encontro entre substractos ou “progenitores” (156c6–e7). A teoria afirma que os substractos nada são “em si” (157a8), ganhando ao invés as qualidades que têm exclusivamente dos encontros entre quem percepciona e os objectos percepcionados. As únicas coisas que têm propriedades são as que começam a existir e desaparecem em resultado de encontros perceptivos; mas nós damos nomes como “homem”, “cavalo” e “pedra” a uma “acumulação” (hathroisma, 157b9).
Não é claro qual é a acumulação que tem Platão aqui em mente. Se concordarmos que um homem nada é senão encontros perceptivos particulares, poder-se-á pensar que é uma acumulação de qualidades percepcionadas em mais de um sentido. Mesmo que consideremos um único sujeito que percepciona de cada vez, não podemos identificar Sócrates, digamos, com apenas uma qualidade percepcionada (por exemplo, a sua forma ou compleição) que passa a existir num único encontro perceptivo. Sócrates, tal como o percepciono num único momento, é um compósito de várias dessas qualidades. Temos de “acumulá-las” ou “enfeixá-las” para podermos dizer que um homem existe.
Outras acumulações serão necessárias quando temos em consideração a crença de senso comum de que Sócrates existe fora de um sujeito perceptivo particular num momento particular. Pressupomos normalmente que Sócrates não é apenas este agregado momentâneo de qualidades que esse sujeito perceptivo percepciona. Supomos que Sócrates inclui as qualidades algo diferentes que são percepcionadas por diferentes sujeitos perceptivos que percepcionam Sócrates ao mesmo tempo, ou pelo mesmo sujeito perceptivo que o percepciona em diferentes momentos. Ao introduzir dois sujeitos perceptivos num dado momento, ou em dois momentos, introduzimos mais duas “acumulações” ou “agregados” para lá do agregado que tem de estar subjacente ao reconhecimento de Sócrates num momento particular, por parte de um sujeito perceptivo.
As questões sobre a existência de Sócrates em diferentes momentos, e os géneros de agregados que isso acarreta, são formuladas logo de seguida no Teeteto. Sócrates defende (de um ponto de vista protagoriano, 158e5–6) que os diferentes Sócrates percepcionados em diferentes momentos não são estágios do mesmo Sócrates que perdura (158e5–160c5). Neste caso, é um erro pensar que um agregado diacrónico de qualidades constitui uma mesma pessoa. Nada se diz, contudo, quanto a quaisquer questões que poderão surgir com respeito ao primeiro género de agregado, que diz respeito à aplicação de “homem” a várias qualidades percepcionadas.
Contudo, não podemos ter a certeza se Aristipo conhece esta passagem do Teeteto ou a teoria que a passagem descreve. Apesar disso, a passagem permite concentrar-nos numa questão que surge em especial para Aristipo. Pois para os cirenaicos surgem algumas questões acerca de agregados, tal como para os heraclitianos.17
Dado que os cirenaicos pensam que só as impressões nos são cognitivamente acessíveis, e que não nos dão uma base racional para ter crenças quanto às propriedades dos objectos externos ou sequer para acreditar na existência desses objectos, são cépticos quanto ao mundo exterior.18 Mas mesmo antes de levantarem problemas quanto à existência externa, os cirenaicos enfrentam outra questão: que bases temos para reconhecer o género de agregado nas nossas experiências imediatas que nos daria razão para lhe aplicar o conceito de “homem” (pensemos ou não que os homens existem independentemente das nossas impressões)?
Felizmente, temos algumas provas que mostram que os cirenaicos estão preocupados com questões sobre este género de agregado elementar. A discussão de Plutarco do epicurista Colotes sugere que quando os cirenaicos usam termos como “branqueado” ou “adoçado” para descrever um certo tipo de impressão que temos, não têm em mente uma análise paralela da nossa experiência de objectos; não dizem que estamos “homenados” ou “paredados”:
“Os cirenaicos”, segundo Colotes, “não dizem que existe um homem, ou um cavalo, ou uma parede, mas que eles próprios estão paredados, ou cavalados, ou homenados”. Antes de mais, como aqueles que fazem acusações vexatórias, Colotes usa os termos maliciosamente. Pois é de admitir que estas consequências se seguem para os cirenaicos; mas Colotes deveria ter apresentado o que acontece tal como eles próprios o expõem. Pois os cirenaicos afirmam que estão adoçados, amargados, gelados, aquecidos, iluminados ou escurecidos, e que cada uma destas impressões tem em si a sua própria obviedade irrecusável. (Adversus Colotem 1120de)
Plutarco afirma que os cirenaicos não usam efectivamente os termos que Colotes pensa que terão de usar para descrever a nossa experiência de homens e paredes — ainda que pense que estão logicamente obrigados a aceitar a legitimidade destes termos.
Se dermos atenção aos problemas acerca dos agregados, conseguimos ver por que razão os cirenaicos poderão ter direito à distinção que Plutarco concorda que introduzem. Os cirenaicos usam “branqueado”, “adoçado” e assim por diante para referir o conteúdo das impressões que são evidentes e irrefutáveis; essas impressões são a base de juízos que nunca têm de ser retractados à luz de novas experiências. Mas dizer que tenho agora uma percepção “de parede” não é fazer um juízo simplesmente sobre uma impressão; é asserir uma conexão entre esta percepção de (digamos) rugosidade e solidez com outras percepções efectivas ou possíveis de um certo tipo de forma e dimensão. Dizer que tenho agora uma percepção “de homem” compromete-me com a afirmação de que esta percepção pertence a um agregado ainda mais complexo. Dizer que a minha percepção da (suposta) altura de Sócrates, e da sua compleição, nariz arrebitado e olhos sobressaídos constitui uma percepção “de homem” é fazer uma asserção sobre a maneira apropriada de coligir diferentes percepções; e esta asserção carece do carácter irrefutável e irrevisível dos juízos sobre percepções particulares. Daí que os cirenaicos tenham boas razões para negar que ficamos “paredados” ou “homenados”; Plutarco está enganado ao afirmar que a sua recusa é arbitrária e injustificada.
Defendi que para explicar o testemunho de Plutarco (em contraste com o seu veredicto sobre a posição cirenaica), precisamos de supor que os cirenaicos vêem uma dificuldade epistemológica nas afirmações acerca da consciência que temos dos agregados, e especificamente que pensam que a nossa consciência dos agregados não pode ser evidente e irrefutável. Se isto estiver correcto, conseguimos ver por que razão os cirenaicos aceitam o prazer como o bem e o fim, mas recusam inferir que a felicidade é o fim. A felicidade é um agregado de prazeres que inclui prazeres do passado e do futuro; está portanto sujeita às dificuldades que surgem com todos os agregados. Apesar de os prazeres e dores particulares serem evidentes para nós, a crença de que estamos a conseguir a felicidade exige que agrupemos estes prazeres e dores de uma maneira particular, de modo que a nossa atitude para com a nossa experiência do presente é afectada pelas nossas perspectivas acerca do passado e do futuro. Se pensarmos na nossa felicidade, poderemos prescindir deste prazer particular agora porque irá prejudicar-nos no futuro, mas tê-lo-íamos cultivado se não o tivéssemos visto desta maneira. Segundo os cirenaicos, nada há quanto às nossas paixões em si que nos dê justificação para ver a nossa experiência do presente de uma dessas maneiras em vez da outra. Daí que o facto evidente (segundo os cirenaicos) de o prazer ser digno de procurar não nos dá justificação para procurar o agregado particular de prazeres que constitui a felicidade.
Vimos até agora por que razão a epistemologia cirenaica levanta questões sobre a felicidade: porque a felicidade é um agregado temporal. Mas o eudemonismo depende também do pressuposto de que a felicidade é o bem temporal de uma pessoa temporal. Se concebermos a felicidade como uma vida boa para nós ou como a prossecução do nosso próprio bem, temos de considerar que temos uma vida — uma sequência de acções e experiências que pertencem a um sujeito que perdura no tempo. A incapacidade dos animais e das crianças para formar essa concepção de si próprias é provavelmente a razão de Aristóteles para rejeitar que possam ser felizes (Ética Nicomaqueia 1099b32–1100a5). Vimos como Platão usa pressupostos sobre o eu que perdura para mostrar a inadequação do hedonismo como explicação do bem. Contudo, se os cirenaicos duvidam da existência do género apropriado de eu que perdura, então têm uma razão para rejeitar estes argumentos contra o hedonismo.
Deverá ser agora claro que um eu que perdura fica exposto às dúvidas cirenaicas. Pois, do ponto de vista cirenaico, a crença num eu temporal tem de incluir a crença num agregado; e esta crença tem de ficar exposta à dúvida céptica.
Aristipo poderia também ter conhecimento de um argumento que tira partido de factos sobre agregados para chegar à conclusão mais forte de que não há um eu que perdure. O “argumento do crescimento” afirma que toda a mudança num sujeito acarreta a existência de um sujeito novo. Plutarco atribui este argumento a Epicarmo (De communibus notitiis 1083a);19 e um (suposto) fragmento de Epicarmo defende a remissão da dívida de uma pessoa que, alegadamente, não é a mesma que pediu o empréstimo (Diógenes Laércio III 10–11).20
Este argumento não seria cogente caso se limitasse a pressupor sem mais defesa que toda a mudança acarreta um novo sujeito. Os proponentes do argumento, contudo, defendem o pressuposto. Começam com exemplos de sujeitos de discurso definidos quantitativamente — um comprimento, uma medida, um número, ou um amontoado (considerado como uma quantidade de constituintes contíguos, como Locke concebe uma massa de matéria). Qualquer “crescimento” ou “diminuição” num sujeito de discurso desses acarreta a aniquilação, dado que o sujeito de discurso tem essencialmente as propriedades quantitativas que tem (cf. Aristóteles, Metafísica 1043b36). Para que a conclusão quanto ao devedor se siga, os seres humanos têm de ser sujeitos de discurso do mesmo género que as quantidades e os amontoados.
Este argumento conduz-nos de novo ao Teeteto. Pois algumas fontes mencionam o argumento sobre o crescimento para apoiar a doutrina heraclitiana do fluxo e para apoiar a doutrina do fluxo extremo que Protágoras sustenta no Teeteto (que, segundo Diógenes, é também a perspectiva do próprio Platão). Além disso, o próprio Platão introduz questões sobre a mudança e a persistência na sua exposição da defesa heraclitiana de Protágoras. Imediatamente depois da passagem que discutimos acerca dos agregados, Platão aborda as percepções da mesma pessoa (alegadamente) em diferentes momentos (quando está doente e quando está saudável, por exemplo). Platão defende (com base na teoria heraclitiana, 158e5–6) que nenhuma pessoa persiste da saúde à doença. Como Epicarmo, Platão apoia-se num argumento a favor da destruição e da substituição que parte da mudança (158e7–159b10). O argumento, ao que parece, é o seguinte:
A primeira premissa é aparentemente uma simples aplicação da lei de Leibniz, afirmando que se duas coisas não partilham todas as suas propriedades, então não são idênticas. Mas poderíamos perfeitamente contestar o uso de 1 ao derivar 3 de 2. Segue-se certamente de 1 e 2 que o Sócrates que está doente e o Sócrates que está saudável não estão no mesmo estágio; mas por que razão não serão a mesma pessoa? Quem não é heraclitiano pressupõe que uma pessoa que perdura pode ter diferentes propriedades em diferentes estágios, e esta diferença não mostra por si que não há uma só pessoa.
Esta resposta não irá convencer o heraclitiano. Pois a persistência de Sócrates tem de consistir na persistência de algum agregado de “progenitores” e “prole”. Mas se com o tempo este agregado perder alguns dos seus membros — e já concedemos que perde — então não é o mesmo agregado e portanto não é a mesma pessoa. Quando se compreende que a continuidade da mesma pessoa exige a continuidade de um agregado, não temos razão para acreditar num Sócrates que perdura e que está saudável e doente em diferentes momentos.
Ora, os cirenaicos têm de concordar com a perspectiva heraclitiana de que a continuidade de uma pessoa ao longo do tempo consiste na continuidade de um agregado. Se concordam que a identidade de um agregado é determinado pela sua composição, então têm uma razão para rejeitar qualquer crença num eu que perdura.
Poderá ser especialmente significativo que se tenha considerado por vezes que o próprio Platão teria aceitado o argumento do crescimento. Pois no Banquete Diotima observa que ao longo de uma vida comum em que “se diz que um animal está vivo e é o mesmo” (208d4–5), a criatura muda constantemente num ou noutro aspecto, tanto corpóreo como mental. E conclui: “Assim, toda a criatura mortal é preservada não por ser sempre a mesma em todos os aspectos, como um ser divino, mas pelo que desaparece e fica velho, deixando no seu lugar outra coisa nova21 que é do mesmo género que a primeira” (208a7–b2). Tanto os leitores antigos como modernos supuseram que Platão defende a não-persistência com base na mudança, negando consequentemente que as pessoas persistam ao longo daquilo a que comummente dizemos que é a sua vida.22
Contudo, não há qualquer boa razão para supor que Platão tem de querer negar a persistência das pessoas ao longo das suas vidas comuns. Pode-se também entender que Platão queria dizer que a persistência não exige que qualquer componente de uma pessoa permaneça qualitativamente a mesma ao longo da sua vida, exigindo apenas as conexões causais e qualitativas apropriadas entre diferentes estágios.23 De facto, seria um pouco surpreendente, à luz da nossa discussão prévia, que Platão rejeitasse realmente a persistência das pessoas. Pois Platão não tem dúvida sobre a racionalidade do eudemonismo, que é a base do desejo de imortalidade; se não formos realmente seres que persistem durante um período significativo de tempo, não é claro por que haveríamos de supor que as atitudes eudemonistas são racionais, de todo em todo.
Apesar disso, ainda que Platão pretenda que as suas observações sobre a mudança expliquem a maneira como as pessoas persistem, não negando que persistam, alguns leitores poderão facilmente inferir I) que Platão nega a persistência, e que, desse modo, II) compromete o eudemonismo sem se dar conta disso. Esses leitores poderão aceitar facilmente a posição cirenaica.
O argumento derivado de Epicarmo, e talvez de Platão, não depende do cepticismo cirenaico quanto a seja o que for além das impressões do presente. Mas a sua concepção composicional da identidade e da persistência deveria parecer especialmente plausível a um cirenaico. Pois se rejeitarmos a concepção composicional da identidade e da persistência, precisamos de introduzir algum princípio que não seja composicional; Aristóteles introduz a forma para este fim. Mas qualquer propriedade deste género que não seja composicional será ainda menos evidente do que as propriedades puramente composicionais.
Ora, os cirenaicos já consideram que os agregados (ainda que simultâneos) não são apreensíveis, na medida em que estão para lá da apreensão da consciência imediata. Pois recusam-se a classificar as impressões como “de homem” ou “de parede”; e esta recusa é inteligível se negam que os agregados sejam apreensíveis. À luz destas dúvidas, têm boas razões para crer que o argumento do crescimento lança dúvidas sobre a existência de objectos que persistem. Pelas razões explicitadas no Banquete, qualquer pessoa que aceite uma concepção composicional da persistência tem razão para ser céptica quanto à persistência dos eus.
O cepticismo sobre a persistência dos eus constitui uma forte razão para rejeitar tanto a procura da felicidade, como a crença de que a felicidade é o bem último. Um cirenaico pode defender que as impressões não apoiam essa crença; pois informam-nos apenas do fluxo de acontecimentos, experiências, prazeres e dores; não revelam qualquer eu que perdura, dado que tudo o que associam ao eu é uma sequência de impressões. De modo que qualquer cuidado com um futuro alargado para mim se apoia numa ilusão e numa crença sem garantias.
Vimos como Platão argumenta contra o hedonismo, afirmando que a única concepção razoável de bem para um agente racional temporal é um eudemonismo que não seja hedonista. Os cirenaicos parece que aceitam então a tese de Platão, e parece que negam que constitua uma defesa do eudemonismo para agentes como nós. Pois, do seu ponto de vista, não temos razão suficiente para acreditar que somos o género de agentes temporais para os quais o eudemonismo seria a concepção correcta de bem.
A minha tentativa de ligar as objecções dos cirenaicos à felicidade a dúvidas acerca da identidade pessoal não tem apoio directo nas fontes; pois estas nunca dizem I) que os cirenaicos têm dúvidas especiais sobre a identidade pessoal, nem II) que estas dúvidas estão subjacentes às objecções à felicidade. Apesar disso, tentei mostrar que as fontes apoiam I e II indirectamente. Apoiam I na medida em que atribuem aos cirenaicos uma posição epistemológica que lhes exige que aceitem os argumentos cépticos sobre a identidade que poderão muito bem já conhecer perfeitamente. Pois o cepticismo dos cirenaicos quanto aos agregados compromete-os com um cepticismo acerca de agregados temporais; e dado que aparentemente não têm alternativa a uma concepção composicional da identidade transtemporal dos agregados, estão comprometidos com uma descrença efectiva num eu temporal. As fontes apoiam II, na medida em que as afirmações do eudemonismo dependem claramente de pressupostos sobre a identidade que os cirenaicos têm boas razões para pôr em dúvida (se I estiver correcta). Sabemos que os cirenaicos põem em dúvida o eudemonismo, e é razoável supor que têm alguma base específica para essa dúvida (dada a aceitação generalizada do eudemonismo); por isso, inclino-me a encontrar esta base nas dúvidas sobre a identidade pessoal.
O tratamento cirenaico das concepções do bem que vão além do prazer do momento poderá revelar razões complementares para supor que eram cépticos quanto à identidade pessoal. Pois se for razoável pensar que as dúvidas sobre a identidade pessoal explicam algumas das críticas cirenaicas a outras perspectivas, teremos razões complementares para atribuir as dúvidas aos próprios cirenaicos.
Apesar de Aristipo ser um hedonista bastante extremo sobre o bem, não é um hedonista psicológico. Não afirma que toda a gente de facto procura em exclusivo o prazer do presente como bem último; considera os outros objectivos não como impossibilidades psicológicas, mas como produtos de crenças sem fundamento, e ao tentar argumentar contra elas procura pôr a nu a falta de fundamento das crenças subjacentes a esses objectivos. Em particular, menciona quatro diferentes tipos de cuidado que vão além do momento presente:
A quarta passagem deixa entrever a abordagem geral de Aristipo a quem não é hedonista. Sugere que os seus objectivos resultam de crenças sem fundamento, que o sábio cirenaico irá evitar.
Ao chamar “vazia” (kenê) à crença, talvez Aristipo não esteja a sugerir que é falsa. Pois Aristipo contrasta a crença vazia com sentimentos que surgem naturalmente; do seu ponto de vista, só estes são evidentes, e as outras coisas não podem ser apreendidas. Ao dizer que as coisas não podem ser apreendidas, está afirmando que não temos fundamentos suficientes para acreditar na sua existência, e não que sabemos que não existem; daí que a crença sem base em impressões não tenha fundamento, apesar de não ser automaticamente falsa.
No caso da identidade pessoal, contudo, Aristipo tem uma razão especial para afirmar que a crença sem fundamento é efectivamente falsa. Pois mesmo que possamos ultrapassar o problema geral de justificar a crença em agregados, a aceitação de um critério composicional de identidade para agregados dá-nos razão para negar que o agregado que constitui uma pessoa perdura o tempo suficiente que normalmente se supõe. Neste caso, um cirenaico tem boas razões para não só duvidar das crenças cruciais sobre a persistência de pessoas, mas também para crer que são provavelmente falsas.
A possibilidade de crença sem fundamento explica o propósito da segunda passagem anteriormente citada. A “perversão” pode muito bem afastar-nos dos sentimentos naturais, em direcção a crenças sem fundamento; em particular, se acreditarmos que somos agentes temporais, podemos levar a nossa felicidade a sério. Nesse caso, podemos procurar (supostos) bens além do prazer, ou (como se sugere na primeira passagem) podemos procurar a felicidade em nome dos prazeres que a constituem.
A importância da crença na nossa persistência é ilustrada pela discordância entre os cirenaicos e Epicuro quanto à memória e à antecipação:
O propósito destas discordâncias é claro se tivermos em conta que Epicuro é um eudemonista, e quer que o prazer seja um candidato plausível para a felicidade.26 Epicuro valoriza a ausência de dor porque pensa na atitude de um agente com respeito à sua vida como um todo. Se penso na maneira como as coisas me correram e como espero que corram para mim, e descubro que correram bem e que é de esperar que assim continuem, posso afirmar estar numa condição desejável, ainda que não sinta qualquer sensação particularmente forte nesse momento. Mas esta condição não tem qualquer interesse para os sábios cirenaicos; pois dado não se preocuparem consigo mesmos como agentes temporais, não têm qualquer razão para dar valor a qualquer consideração sobre como correm as coisas para esse agente.
Deste ponto de vista, é mais fácil ver sobre o que discordam os cirenaicos e Epicuro, na sua disputa sobre a memória e a antecipação. Os relatos das suas perspectivas fazem parecer por vezes que discordam sobre uma questão qualquer de psicologia empírica, com respeito ao grau com que as pessoas efectivamente apreciam os prazeres da memória e da antecipação. Mas esta pode ser uma maneira enganadora de apresentar a questão. Pois Epicuro e os cirenaicos podem não estar a pensar nos prazeres relevantes exactamente da mesma maneira.
“Recordar o prazer” ou “antecipar o prazer” poderá ser entendido de duas maneiras:
No segundo caso, o conteúdo da memória ou antecipação inclui um elemento essencialmente na primeira pessoa; o conteúdo da memória não seria o mesmo caso eu não acreditasse que o sujeito do prazer do passado é o mesmo que o sujeito da memória actual. Isto não acontece no primeiro caso.
Ora, um sábio cirenaico poderá dar consigo com memórias ou antecipações na primeira pessoa; mas não as levará muito a sério. Pois o seu cepticismo acerca de eus que perduram acarreta que essas atitudes na primeira pessoa quanto ao passado e ao futuro resultam de crenças vazias. Como observam os cirenaicos, procurar a felicidade é uma actividade muitíssimo desagradável:
[…] pensam que apesar de o prazer ser em si digno de escolha, as coisas perturbadoras que produzem certos prazeres são amiúde do género contrário. E por isso parece-lhes que a acumulação (hathroismos) de prazeres que não produzem felicidade é muitíssimo desagradável. (Diógenes Laércio II 89–90)
As coisas desagradáveis que produzem prazeres só podem produzir prazeres do futuro; e por isso para que um cirenaico pense que valem a pena, a antecipação desses prazeres tem de ser suficientemente agradável para ter mais peso do que a dor do presente. Mas dificilmente lhe darão tanto prazer que tenham grande peso contra a dor do presente. Aplica-se a mesma observação à memória. A memória de um prazer do passado poderá ser uma fonte de algum prazer; pois limitarmo-nos a imaginar um prazer pode ser agradável, e pensar que o prazer ocorreu efectivamente poderá permitir-me imaginá-lo com mais vivacidade.27 Mas provavelmente não esperamos grande ganho hedónico dessas memórias do prazer do passado.
Se eu acreditasse efectivamente, em vez de me limitar a imaginar, que os prazeres recordados ou antecipados me aconteceram ou irão acontecer-me, então teria razão para considerar que os prazeres do passado e do futuro fazem parte da minha felicidade. Mas esta é a crença crucial que os cirenaicos não partilham. Dado não acreditarem que somos o mesmo agente naqueles diferentes momentos, não acreditam na existência de um sujeito único cuja felicidade seja produzida pela acumulação de prazeres.28
É razoável que Epicuro tenha uma perspectiva bastante diferente das memórias e antecipações na primeira pessoa; é perfeitamente racional, do seu ponto de vista, que a minha crença na verdade dessas memórias e antecipações afecte o meu juízo sobre o meu bem-estar, independentemente dos seus efeitos hedónicos imediatos. Pois se sou eudemonista, preocupo-me com o eu que perdura e que faz parte do conteúdo das atitudes na primeira pessoa. Dado que me preocupo com o bem-estar deste eu que perdura, as minhas preocupações são satisfeitas na medida em que estou ciente do que aconteceu ou do que provavelmente acontecerá a este eu nos diferentes estágios da sua existência. Se olhar para lá do presente, posso estar ciente de prazeres que compensam as dores de agora, na medida em que mostram que me saio melhor do cômputo geral do que pensaria que me sairia caso me centrasse apenas no presente. Este é um objecto legítimo de cuidado e interesse para o epicurista, tal como para qualquer outro eudemonista; mas não pode ter a mesma importância para o cirenaico anti-eudemonista. Pois o cirenaico não pode levar a sério a perspectiva da compensação futura do eu que está agora sujeito a uma dor; para levar a sério essa perspectiva, é preciso acreditar que somos realmente o mesmo eu, e não apenas estarmos inclinados a pensar que somos o mesmo eu. A disputa entre os cirenaicos e os epicuristas sobre a memória e a antecipação não é sobre a quantidade de prazer que é provável que conseguiremos obter das mesmas crenças, pois os partidários das duas teorias têm crenças diferentes que afectam os seus juízos acerca do seu bem-estar.
As dúvidas cirenaicas sobre a identidade pessoal podem explicar uma disputa estranha que está também ligada à antecipação. Os cirenaicos, segundo o relato de Cícero, afirmam que a antecipação dos males do futuro os torna menos graves quando finalmente chegam:
Os cirenaicos pensam que a dor não é produzida por todo o género de mal, mas por um mal que foi inesperado ou que não foi previsto. Isso na verdade não tem um peso moderado no incremento da dor; pois todas as coisas súbitas parecem mais sérias. […] Esta antecipação [praemeditatio] dos males do futuro, portanto, suaviza a chegada daqueles males que vimos de longe que se aproximavam. (Cícero, Tusculanae Disputationes III 28–29; cf. 52)29
Epicuro, por outro lado, desaconselha-nos a cismar sobre os males do futuro, e defende que a estratégia cirenaica torna as coisas piores; pensa que não é mais sensato cismar sobre os males do futuro do que do passado (III 32–33). Cícero não explica por que razão os cirenaicos e os epicuristas assumem estas perspectivas diferentes; mas é razoável tentar explicá-las à luz das suas diferentes perspectivas gerais sobre os prazeres e dores da memória e da antecipação.
Para os cirenaicos, a antecipação impessoal pode ser útil para reduzir a perturbação que sofremos quando acontece algo de doloroso. Se creio que uma injecção será dolorosa, a dor será menos surpreendente para mim quando chegar e, se estiver preparado para ela, será menos perturbadora. Dado que os cirenaicos pensam que o bem e o mal do prazer e da dor consiste no género de mudança ou perturbação que provoca, poderiam defender que a antecipação da dor provoca uma pequena perturbação antecipada, de modo que quando a dor efectiva chega, provoca relativamente menos perturbação.
Suponha-se, por exemplo, que no momento t1 antecipo uma injecção dolorosa, e que a antecipação provoca uma perturbação de força 1 (supondo que as perturbações podem ser medidas como os temporais ou os terramotos); suponha-se que em t2, quando levo a injecção, sofro mais uma perturbação, de força 2; e suponha-se que, caso não tivesse antecipado a dor da injecção, teria sofrido uma perturbação de força 3 em t2. Neste caso, os cirenaicos irão defender que me saio melhor se antecipar a dor, dado que a perturbação de t2 é menor do que seria sem a antecipação. O facto de a perturbação total de t1 e t2 ser igual independente de a antecipar não importa para os cirenaicos; pois só ficaremos preocupados com a perturbação total se acreditarmos na nossa identidade ao longo do tempo, e os cirenaicos rejeitam esta crença.
Suponha-se, por outro lado, que a minha antecipação em t1 provoca uma perturbação de força 2, e que a injecção em t2 provoca mais uma perturbação de força 2, ao passo que a injecção em t2 sem antecipação teria provocado uma perturbação de força 3. Mesmo nestes casos os cirenaicos dirão que me saio melhor se antecipar; pois não tenho razão para estar preocupado com a dor total que resulta da comparação entre os dois momentos, dado que não sou a mesma pessoa nesses dois momentos.
Estes usos cautelares da antecipação impessoal tornam também razoável, para os cirenaicos, a antecipação na primeira pessoa. Pois podemos de novo admitir que se imagino que a dor do futuro me acontece, irei imaginá-la com mais vivacidade, de modo que a minha imaginação cautelar poderá ser mais eficaz. Mas o meu juízo acerca do meu bem-estar não será afectado pela crença de que irei realmente sofrer a dor, dado que um cirenaico considera sem fundamento a crença subjacente na identidade pessoal ao longo do tempo.
Para um epicurista, contudo, o carácter de primeira pessoa de uma antecipação faz uma diferença vital. Pois se não me limito a pensar que a dor acontece a alguém, mas antes acredito que será a mim que acontecerá, descubro uma ameaça à minha felicidade. Se sou epicurista, e antecipo a minha própria dor, ou dela me lembro, acredito estar a descobrir algo que pode afectar a minha felicidade ao longo do tempo; pois preocupo-me com os interesses de um eu temporal. Daí que um epicurista, ao contrário de um cirenaico, se preocupe com o resultado total de antecipar a injecção em t1 e de levá-la em t2. A antecipação da dor é má para um epicurista de uma maneira que não pode ser má para um cirenaico. Os cirenaicos e os epicuristas têm boas razões para recomendar as suas atitudes opostas com respeito à antecipação da dor.
Contudo, esta explicação da posição cirenaica levanta mais uma questão sobre a sua consistência. A quem, e com que propósito, recomendam os cirenaicos o uso cautelar da antecipação? Posso reflectir que se pensar sobre os efeitos dolorosos de diferentes tipos de acontecimentos, estarei preparado para eles, quando chegarem. Mas como conseguem os cirenaicos levar a sério esta ideia? A ideia pressupõe a identidade entre o sujeito da reflexão presente (e da dor antecipada) e o sujeito da dor do futuro. Do ponto de vista cirenaico, não deveria haver melhores razões para levar esta ideia a sério do que a ideia de que se eu pensar sobre os efeitos dolorosos de diferentes tipos de acontecimentos, alguém ficará preparado para quando chegarem. Mas esta segunda ideia não parece de modo algum ter uma força óbvia para os cirenaicos, que não vêem qualquer razão para impor ónus a si próprios em nome de benefícios para os outros.
A resposta apropriada a esta objecção poderá ser mais clara se tivermos em consideração um problema mais geral que parece emergir das teses epistemológicas dos cirenaicos. Afirmam estes filósofos que qualquer crença que vá além das nossas impressões fica aberta à dúvida céptica; é por isso que põem em dúvida a crença num eu que perdura e também a concepção de felicidade como bem final. Mas parece óbvio que algumas impressões e sentires dizem respeito ao meu futuro; parece que tenho receios e esperanças quanto ao que irá acontecer-me num dado momento do futuro, quando (segundo o cirenaico) não há razão para acreditar que serei o sujeito dos acontecimentos que agora receio ou almejo. As nossas próprias emoções parecem mostrar o cuidado quanto ao futuro que tem como resultado desejar a nossa felicidade como fim último. Não terão por isso os cirenaicos de concordar que procurar a nossa própria felicidade se justifica com base nas percepções e sentires que a teoria cirenaica considera epistemologicamente básicos?
Para responder a esta objecção, os cirenaicos precisam de insistir que não pensam que todas as impressões são de confiança.30 Algumas impressões — por exemplo, receios que se apoiam em crenças sobre o futuro — podem depender de pressupostos que se revelam falsos, contrastando com as percepções irrefutáveis da minha condição presente. Ter medo é uma impressão do presente, e que tenho medo de algo é verdadeiro e irrefutável; mas a crença subjacente a esse medo — e.g., que a injecção será muito dolorosa para mim — poderá muito bem ser falsa, seja porque a dor não será grave, seja porque não serei eu que irá senti-la. Ainda que algumas impressões pressuponham a crença num eu que perdura, o cirenaico não está obrigado a subscrever essa crença.
Apesar disso, se temos algumas impressões que nos levam a preocuparmos-nos com o nosso futuro, o facto de as termos é significativo para o cirenaico; pois se nada fizermos quanto a elas, podemos sofrer mais dor do que se fizermos alguma coisa. Se nos sentimos inclinados a sacrificar uma coisa do presente em nome do futuro, não temos razão para nos inibirmos deste sacrifício, se esse sentir for suficientemente forte; mas também nada de irracional fazemos se sentirmos um desejo urgente de uma satisfação presente, sendo indiferentes aos custos do futuro.
Se esta é a atitude dos cirenaicos com respeito às impressões que se apoiam em crenças injustificadas, estes filósofos conseguem explicar por que poderemos praticar uma antecipação cautelar para minimizar as nossas perturbações do futuro. Se temos uma concepção relativamente vívida do nosso futuro e damos connosco preocupados com ele, então temos razão para satisfazer a nossa preocupação pensando em maneiras de reduzir a nossa perturbação do futuro por meio da antecipação cautelar. Se o fizermos, podemos remover a nossa ansiedade presente sem efectivamente aceitar a crença de que somos pessoas temporais que têm razão para ficar preocupadas com a nossa felicidade de longo prazo.
Ao examinar algumas das questões que as perspectivas dos cirenaicos levantam quanto à memória e à antecipação, tentei mostrar como a posição cirenaica poderia ser defendida contra a suspeita de incoerência. Não quero defender que é claramente coerente, ou que pode ser sustentada sem introduzir mudanças inaceitavelmente significativas na concepção que os agentes têm de si próprios e da razão prática. Uma perspectiva consistente baseada em pressupostos cirenaicos poderá ser difícil de pôr em prática, ou sequer de imaginar; apesar disso, para os cirenaicos, vale a pena explorar as consequências das suas teses acerca da identidade pessoal e da felicidade.
Como já observei, Aristóteles argumenta na Ética Nicomaqueia I 7 que dado o bem ter de satisfazer certos critérios, e dado que a felicidade os satisfaz, a felicidade tem de ser o bem. Podemos ver agora onde Aristipo discorda do argumento de Aristóteles. Aristipo não se opõe à tese de Aristóteles de que o bem tem de ser completo; na verdade, os cirenaicos afirmam o mesmo quanto ao prazer.31 Além disso, é também a única coisa que é escolhida apenas por si; Aristipo insiste que a virtude é digna de escolha exclusivamente em nome do prazer (Diógenes Laércio II 91), e não sugere qualquer outro bem que possa ser escolhido em nome de qualquer outra coisa que não o prazer. É também difícil ver por que haveríamos de rejeitar que o prazer é auto-suficiente (autarkês), e que não se lhe pode acrescentar seja o que for, nem aprimorá-lo. Daí que não tenha razão para rejeitar os critérios de Aristóteles, dado pensar que o prazer os satisfaz.
Contudo, Aristipo nega explicitamente que a felicidade é digna de ser escolhida por si; afirma que só é digna de ser escolhida32 em nome dos prazeres que a constituem. Se não há um eu que perdura que tenha um bem por si, então não há um agente que tenha uma razão qualquer para encarar a felicidade como um bem em si — ainda que seja verdadeiro que se obtivermos o agregado de prazeres que constituem a felicidade, obteremos também o prazer em momentos particulares.
Contudo, o que quer Aristipo dizer ao sugerir que a felicidade é digna de ser escolhida em nome dos prazeres particulares que a constituem? Poderemos pensar que está dizendo que apesar de não ser o bem último, vale mesmo assim a pena ser escolhida em nome do nosso verdadeiro bem último, que é o prazer do momento. Mas esta atitude com respeito à felicidade parece uma confusão. Se Aristipo advoga realmente a procura da felicidade como estratégia para acumular o máximo de prazer, enfrenta de novo a questão já formulada quanto à antecipação; em nome de quem deverá esta estratégia ser adoptada? Se é para o mesmo eu que perdura, então não estaremos a conceder ao eudemonismo o ponto essencial? Se não é, por que razão haveria então um eu de curta duração de pensar estrategicamente acerca do prazer de outro eu posterior de curta duração?
Talvez não devamos então considerar que o comentário sobre procurar a felicidade em nome do prazer particular é uma descrição de um cirenaico esclarecido, mas antes um produto da “crença vazia”. A crença vazia seria a crença na minha própria persistência ao longo do tempo, persuadindo-me a ficar preocupado com o prazer momentâneo de estágios futuros de mim próprio (ou do que sem fundamento considero que são estágios futuros de mim próprio). Mas se esta crença é afinal de contas pressuposta na procura da felicidade como bem instrumental, torna-se difícil ver como alguém que a tenha não ficará também preocupado com a sua felicidade como bem intrínseco; pois a felicidade é apenas o bem de um eu temporal, e alguém que se preocupa com a acumulação de prazeres do futuro parece precisamente alguém que está preocupado com o bem de um eu desse género.
Assim, os cirenaicos não têm aparentemente maneira de fugir do argumento de Aristóteles, a menos que rejeitem a crença num eu que perdura. Pois se considerarmos um eu que perdura, parece óbvio que o prazer do momento não pode ser um bem completo nem auto-suficiente; um hedonista tem de admitir que para um agente temporal o prazer mais durável seria uma coisa boa, e que o prazer em toda a nossa vida seria o melhor bem. Para os cirenaicos, a parte mais controversa do argumento de Aristóteles com base no bem e a favor da felicidade é um pressuposto que este filósofo nem sequer menciona — que nos preocupamos com o bem de um agente temporal, e portanto com o carácter de toda a vida (tal como normalmente a concebemos). Apesar de não termos encontrado provas directas para mostrar que os cirenaicos são cépticos quanto à identidade pessoal, parece que precisam de algumas teses cépticas para responder ao eudemonismo.
Aristipo mostra que o pressuposto eudemonista de que o bem final de um agente racional é a felicidade não é trivial, nem indisputável. E levanta uma questão de especial importância para Epicuro, que quer defender o hedonismo partindo da base epistemológica cirenaica, mas que também aceita o eudemonismo. Epicuro não parece enfrentar o desafio cirenaico mais básico à sua posição. Pois não parece distinguir a tese de que as impressões imediatas nos mostram que o prazer é o bem da tese de que essas impressões mostram que a felicidade é a maximização do prazer ao longo da nossa vida (tal como a concebemos comummente), e que o bem é isso. Os cirenaicos sugerem que a sua base epistemológica mostra que o prazer é o bem e que a felicidade não é o bem; sugerem que o eudemonismo não pode apoiar-se na sua base epistemológica. Se tiverem razão, então a sua base epistemológica é insuficiente para a versão epicurista de eudemonismo hedonista.
Epicuro não parece ver esta dificuldade; mas deveria tê-la visto, uma vez que sugere que tem de abandonar a base epistemológica cirenaica. E se tem de abandoná-la para defender o eudemonismo, como conseguirá evitar ser obrigado a reconhecer bens irredutivelmente não-hedónicos?
Assim, Epicuro parece não ter aprendido tudo o que deveria dos cirenaicos. Pois os argumentos cirenaicos apoiam efectivamente a tese de Platão de que o ponto de vista que faz o hedonismo parecer atraente é também um ponto de vista que faz o eudemonismo não parecer atraente. Quer consideremos que isto é um argumento contra o eudemonismo (como supõem os cirenaicos), quer consideremos que é um argumento contra o hedonismo (como supõe Platão), a tese de que temos de escolher entre o hedonismo e o eudemonismo não é fácil de refutar.33
Escreve Gregory Vlastos: “Posso agora introduzir o princípio, frequentemente denominado ‘eudemonismo’, que, depois de configurado por Sócrates, se tornou axiomático para todos os moralistas posteriores da Antiguidade clássica. É a ideia de que a felicidade é desejada por todos os seres humanos como fim último (telos) de todos os seus actos racionais.” [“Happiness and Virtue in Socrates' moral theory”, Proceedings of the Cambridge Philological Society 30 (1984), 181-213, p. 183.]
Até que ponto os epicuristas e os estóicos aceitavam o eudemonismo merece também discussão; mas as questões que surgem aqui são algo diferentes das que surgem com os cirenaicos.↩︎
Há uma disputa persistente sobre o grau em que Platão pretende transmitir o seu apoio do hedonismo no Protágoras. Concordo em geral com as perspectivas de J. C. B. Gosling e C. C. W. Taylor, The Greeks on Pleasure, pp. 58–68 (apesar de não concordar com a explicação que dão da relação entre o Protágoras e o Górgias, pp. 75–82). Para os propósitos agora em mãos, contudo, não interessa se Sócrates de facto subscrevia o hedonismo no Protágoras ou não; tudo o que conta para compreender Aristipo é o facto evidente de Sócrates levar o hedonismo suficientemente a sério para formulá-lo muito cuidadosamente e explorar as suas consequências.
A conexão entre Aristipo e o Protágoras é destacada por G. Grote, Plato and the other Companions of Socrates (Londres: Murray, 2.ª ed., 1888), vol. 1, cap. 3 (= cap. 38 da 1.ª ed.), pp. 199–201. Grote observa que Aristipo não parece destacar a importância da sabedoria prática para planear o máximo de prazer na nossa vida como um todo. Este silêncio só é inteligível se Aristipo tiver dúvidas quanto ao eudemonismo.↩︎