As teorias estéticas podem proclamar-se universais, mas normalmente são condicionadas pelas questões e debates estéticos das suas próprias épocas. Platão e Aristóteles tinham ambos uma motivação igualmente forte para explicar as artes gregas do seu tempo e para ligar a estética às suas metafísicas gerais e teorias do valor. Mais perto de nós, como observa Noël Carroll, pode-se encarar as teorias de Clive Bell e R. G. Collingwood como a “defesa de práticas vanguardistas emergentes — o neo-impressionismo, por um lado, e a poética modernista de Joyce, Stein, e Eliot por outro”.1 Pode-se ler Susanne Langer como alguém que apresenta uma justificação da dança moderna, ao passo que a primeira versão da teoria institucional de George Dickie “exige algo como o pressuposto de que o Dada é uma forma central de prática artística” de maneira a ganhar apelo intuitivo. O mesmo se pode afirmar da teorização quase obsessiva, por Arthur Danto, acerca de quebra-cabeças minimalistas e objectos artísticos indiscerníveis de objectos não artísticos — acrescente-se as telas negras de Rheinhart, os readymades de Duchamp e as caixas de Brillo de Andy Warhol. À medida que as formas de arte e as técnicas mudam e se desenvolvem, à medida que o interesse artístico floresce ou declina, a teoria segue também o mesmo caminho, deslocando o seu foco de atenção, modificando os seus valores.
As distorções causadas pelos preconceitos da cultura local combinam-se com outro factor. Os filósofos da arte têm uma tendência natural para começar a teorizar a partir das suas próprias predilecções estéticas, das suas respostas estéticas mais perspicazes, por muito estranhas ou limitadas que possam ser. Immanuel Kant tinha um interesse marcado pela poesia, mas o seu descartar da função da cor na pintura é tão excêntrico que sugere mesmo uma possível deficiência visual. Bell, que reconhecia sem peias a sua incapacidade para apreciar música, concentrou a sua atenção na pintura, alargando falaciosamente as suas perspectivas a outras artes. Mais frequentemente, os pensadores que amam a beleza natural, ou que têm um fraquinho por uma cultura exótica ou género em particular, tendem a generalizar a partir dos sentimentos e experiência individuais. Este elemento pessoal pode ser teoricamente enriquecedor (Bell acerca do expressionismo abstracto) ou ter resultados quase absurdos (Kant acerca da pintura em geral). Devia porém instigar o cepticismo em todos nós. As perspectivas gerais extrapoladas do entusiasmo pessoal limitado podem persuadir-nos enquanto nos concentrarmos nos exemplos fornecidos pelo teorizador; frequentemente não funcionam quando aplicadas a uma maior diversidade de artes.
Além do preconceito cultural e da idiossincrasia pessoal, um terceiro factor tem sido um obstáculo ao filosofar apropriado acerca das artes: o carácter da retórica filosófica. A filosofia é maximamente robusta e estimulante quando argumenta a favor de uma posição única e exclusivamente verdadeira e procura desacreditar alternativas plausíveis. Na história da filosofia da arte, isto tem sido um obstáculo persistente à compreensão. Kant, por exemplo, não se limita a separar as componentes intelectuais da experiência estética das suas componentes sensuais primárias, mas em secções da sua terceira Crítica nega inteiramente o valor das últimas. Leão Tolstoi é tão dogmático na sua insistência na sinceridade como critério central da arte, a ponto de ter notoriamente rejeitado grandes porções do cânone, incluindo a maior parte da sua própria obra. Bell, mais uma vez o esteta por excelência, não se limita a elevar a experiência da forma na pintura abstracta, mas insiste que o elemento ilustrativo na pintura é esteticamente irrelevante. Tais posições extremas em estética são retoricamente apelativas, ao passo que as teorias menos exclusivistas não o são. Ensiná-las é também um prazer para os professores de estética, visto que dão aos estudantes um pano de fundo histórico, insights estéticos genuínos (ainda que absurdamente unilaterais), e o exercício intelectual envolvido na apresentação de contra-exemplos e contra-argumentos. Juntamente com o desenvolvimento histórico da própria arte, semelhante teorização faz avançar o debate — não no sentido da resolução, mas apenas para gerar mais disputa.
A estética no início do século XXI encontra-se numa situação paradoxal, para não dizer bizarra. Por um lado, os académicos e os estetas têm acesso — em bibliotecas, em museus, na Internet, em primeira mão por meio de viagens — a uma perspectiva mais ampla do que alguma vez tiveram sobre a criação artística, em diversas culturas e ao longo da história. Podemos estudar e apreciar esculturas e pinturas do paleolítico, música de toda a parte, artes populares e rituais de todo o mundo, literatura, artes de todas as nações, do passado e do presente. Perante esta vasta disponibilidade, como é estranho que a especulação filosófica sobre a arte tenha permanecido inclinada para a análise interminável de um conjunto infinitesimalmente pequeno de casos, entre os quais se destacam os readymades de Duchamp ou objectos como as fotografias apropriadas de Sherri Levine e a 4'33'' de John Cage. Subjacente a esta orientação filosófica está um pressuposto escondido, nunca articulado: supõe-se que o mundo da arte será finalmente compreendido quando formos capazes de explicar os exemplos mais marginais ou difíceis da arte. A Fonte e Antecipação de um Braço Partido, de Duchamp, são à primeira vista os casos mais difíceis com os quais a teoria da arte tem de lidar, o que explica a dimensão da bibliografia teórica que estas obras e os seus irmãos readymade geraram. A própria extensão desta bibliografia aponta também para uma esperança de que sermos capazes de explicar os exemplos mais extravagantes de arte nos ajudará a alcançar a melhor explicação geral de toda a arte.
Esta esperança conduziu a estética na direcção errada. Os juristas sabem que os casos difíceis dão má legislação. Se o leitor deseja compreender a natureza essencial do homicídio, não tomará como ponto de partida uma discussão do suicídio assistido ou do aborto ou da pena capital. O suicídio assistido pode ser ou não homicídio, mas determinar se tais casos em disputa são ou não homicídio exige antes o esclarecimento acerca da natureza e da lógica dos casos indisputáveis; passamos do centro incontroverso para os disputados territórios remotos. O mesmo princípio se aplica na teoria estética. A obsessão de dar conta dos mais problemáticos casos periféricos da arte, embora seja intelectualmente estimulante e um bom modo de os professores de estética gerarem discussão, fez a estética ignorar o centro da arte e dos seus valores. A filosofia da arte precisa de uma abordagem que comece por tratar a arte como um campo de actividades, objectos, e experiência dados naturalmente na vida humana. Temos primeiro de procurar demarcar um centro incontroverso que confere aos periféricos qualquer interesse que estes possam ter. Considero que esta abordagem é “naturalista”, não no sentido de ser impulsionada pela biologia (embora a biologia se mostre relevante), mas porque depende de padrões de comportamento e discurso persistentes, identificados transculturalmente: fazer obras de arte, ter experiência delas, e avaliá-las. Muitos dos modos como se discute a arte e se tem experiência dela transpõem facilmente fronteiras culturais, e conseguem uma aceitação global sem a ajuda dos académicos ou teorizadores. De Lascaux a Bollywood, artistas, escritores, e músicos não raro têm pouca ou nenhuma dificuldade em conseguir a compreensão estética transcultural. É no centro natural onde essa compreensão existe que a teoria deve começar.
Pode-se reduzir os aspectos característicos encontrados transculturalmente nas artes a uma lista de itens nucleares, doze na versão apresentada em seguida, a que chamo critérios de reconhecimento. Alguns dos itens destacam aspectos de obras de arte, outros destacam qualidades da experiência da arte. Outros teorizadores propuseram listas semelhantes no propósito, embora não idênticas no conteúdo. Nestas se incluem listas publicadas em 1975 por E. J. Bond, Richard L. Anderson (1979 e repetidamente revista desde então), H. Gene Blocker (1993), Julius Moravcsik (1992), e Berys Gaut (2000).2 Publiquei duas predecessoras da presente lista (2000 e 2001).3 A minha lista presta-se portanto à correcção por meio do esclarecimento, permutação de itens, ampliação, ou redução. Os itens que nela constam não são escolhidos para satisfazer um propósito teórico preconcebido; pelo contrário, a finalidade destes critérios é proporcionar uma base neutra à especulação teórica. Pode-se descrever a lista como inclusiva no modo como refere as artes em várias culturas e épocas históricas, mas não é por essa razão um compromisso entre posições adversárias que se excluem mutuamente. Reflecte um domínio vasto de experiência humana que as pessoas identificam sem dificuldade como artística. David Novitz observou que “as formulações precisas e as definições rigorosas” pouco ajudam a captar o significado da arte transculturalmente.4 Não obstante, só porque, como afirma Novitz, não há “um só modo” de ser uma obra de arte, não se segue que os “muitos modos” contrários sejam tão irremediavelmente numerosos a ponto de não se poder especificá-los, mesmo que o domínio a que se referem seja tão irregular e multifacetado como o da arte. Na verdade, serem especificáveis, por mais que sejam abertos à discussão, é exigido pela própria existência de uma bibliografia sobre estética transcultural.
Note-se que, dada existência de inúmeros casos marginais, por “arte” e “artes” refiro-me a artefactos (esculturas, pinturas, e objectos decorados, tais como ferramentas ou o corpo humano, e partituras e textos considerados como objectos) e execuções (danças, música, e a composição e recitação de histórias). Quando falamos acerca de arte, concentramo-nos por vezes em actos de criação, por vezes nos objectos criados, noutras ocasiões referimo-nos mais à experiência que se tem destes objectos. Formular estas distinções é uma tarefa distinta. A lista consiste portanto nas características indicadoras da arte considerada como uma categoria universal, transcultural. Com isto não afirmo que qualquer item na minha lista pertence exclusivamente à arte ou à experiência que dela temos. Muitos destes aspectos da arte coexistem com experiências e aptidões não artísticas; relembramos isto aqui entre parêntesis, na conclusão de cada entrada.
As características nesta lista estão subjacentes, individualmente e com maior frequência conjuntamente, em respostas à questão de, confrontados com um objecto, execução ou actividade que parecem arte, termos ou não justificação para lhe chamar “arte”. Como critérios de reconhecimento, identificam portanto as “características de superfície” mais comuns e facilmente captáveis da arte, as suas características tradicionais, costumeiras ou pré-teóricas; não estão incluídos elementos de análise técnica que com maior probabilidade serão usados por críticos e teorizadores. Neste aspecto, uma analogia química com a lista seria a enumeração das características definidoras de um líquido (incluindo características que ajudam em casos de fronteira), em vez das características definidoras do metanol (para o que é difícil imaginar casos de fronteira, visto que são normalmente excluídos pela própria definição, CH3OH). Por exemplo, a distinção entre forma e conteúdo foi produtivamente usada para analisar as artes desde os gregos (embora, como sabia Aristóteles, a distinção seja igualmente útil para analisar tijolos). Por muito comum que tal análise seja na crítica e em contextos teóricos acerca da arte, a distinção não serve normalmente para responder à questão de um dado objecto dúbio ser ou não arte. A pergunta “Será arte?” normalmente evoca pensamentos como “Mostra aptidão? Exprime emoção? Dá prazer ouvir?” A pergunta “Tem forma e conteúdo?” não é normalmente uma das primeiras que se faz para responder à questão de algo ser ou não arte. Podia-se defender algo semelhante a respeito da autenticidade: embora o conceito de autenticidade seja central para uma plena compreensão da arte, e tenha vindo a confundir durante muito tempo filósofos, historiadores de arte, coleccionadores, e advogados, a questão de algo ter ou não autenticidade não é a primeira a responder quando queremos saber se algo é uma obra de arte. A autenticidade é uma questão que surge na arte só depois de um objecto ou execução terem sido identificados como putativamente artísticos no tipo ou no propósito.
Mais uma vez, pode suceder um dia os neurofisiólogos descobrirem um novo método técnico de identificar as experiências artísticas (através de ressonâncias magnéticas ou algo semelhante) ou os físicos inventarem um tipo de análise molecular que lhes permita distinguir entre, digamos, obras de arte e artigos sanitários ou partes de automóveis. Uma especulação absurda, talvez, mas note-se que se a ciência alguma vez alcançasse tal método para identificar exemplos de arte ou de experiência artística, estará na condição de fazer corresponder as suas propriedades cientificamente determinadas com uma descrição da arte compreendida em termos dos critérios de reconhecimento na minha lista ou numa lista semelhante. Os critérios de reconhecimento dizem-nos o que já sabemos acerca da arte. Podem ser ajustados nas margens, subtraindo ou adicionando itens à lista, mas permanecerão em grande medida intactos no futuro previsível, regendo o que conta como investigação das artes por neurofisiólogos, filósofos, antropólogos, críticos ou historiadores.
É argumentável que outras características não técnicas podiam ter sido incluídas nesta lista. Na sua versão da lista, H. Gene Blocker, escrevendo sobre as artes tribais, considera importante os artistas serem “percepcionados não só como profissionais mas como inovadores, excêntricos, ou um tanto socialmente alienados”.9 Embora isto seja frequentemente verdade (Blocker observou-o em África e eu observei o mesmo na Nova Guiné) há no mundo demasiados artistas inovadores mas que não são socialmente alienados, bem como demasiados excêntricos que não são artistas, para que a característica de Blocker seja um modo útil de reconhecer a arte. O mesmo se podia dizer acerca de ser raro ou oneroso. Muitas obras de arte são raras, feitas de materiais onerosos, ou incorporam enormes custos de mão-de-obra, e isto é muitas vezes uma componente do seu interesse para o público. Muitas, todavia, nada têm destas características. A onerosidade é relevante para a arte, mas não é criterial. Embora ser oneroso e ter sido produzido por um excêntrico sejam frequentemente características da arte, nem uma nem outra são normalmente um meio de a reconhecermos.
A minha lista exclui também características de fundo que são pressupostas em praticamente todo o discurso acerca da arte. Estas incluem as condições necessárias de a) ser um artefacto e b) ser feito ou executado para um público. A artefactualidade foi tão exaustivamente abordada na bibliografia que não nos ocupará aqui: as obras de arte são objectos intencionais, mesmo que tenham um número indeterminado de significados não intencionados. Mesmo found objects — pedaços de madeira à deriva e coisas semelhantes — são transformados em objectos intencionais no processo de selecção e exibição. Ser feito para um público é um refinamento da artefactualidade e de importância substancial na compreensão da arte, mas é demasiado ténue para ser um complemento útil à lista, na medida em que também se aplica a inúmeros outros géneros de realidades humanas fora das artes. (Mais uma vez, o habitual caso limite do pedaço de madeira à deriva qualifica-se obviamente como arte, visto que o objecto é colocado diante de um público.)10
Foram intencionalmente omitidas da lista duas características complementares que alguns poderão insistir serem importantes para compreender a arte: ter propriedades estéticas e exprimir identidade cultural. Afirmar que a arte, pela sua natureza, tem propriedades estéticas levou os teorizadores a levantar questões importantes. Na história da estética moderna, de Kant em diante, as propriedades estéticas vieram a ser erroneamente consideradas uma classe particular de propriedades sensuais, as cores de uma pintura por contraste com o assunto da mesma. Este género de distinção encorajou alguns filósofos a defender, por exemplo, que as falsificações de arte excelentes exibirão as mesmas propriedades estéticas que as obras originais, não falsificadas, ainda que careçam de originalidade, que segundo este argumento não é uma propriedade estética. Rejeito esta perspectiva, e com ela a noção de que ter propriedades estéticas é algo que se possa acrescentar à lista. Pelo contrário, é a combinação dos outros itens na lista — virtuosismo, novidade, representação imaginativa, sentimento emocional, desafio intelectual, e aí por diante — que, combinados na experiência de uma obra de arte, consiste precisamente nas propriedades estéticas da obra, normalmente proporcionando o prazer descrito como item 1. Na ópera, por exemplo, as propriedades estéticas não são objecto de experiência paralelamente à aptidão vocal, cenários impressionantes, e direcção orquestral eficaz. Estes aspectos de que se tem experiência conjuntamente na totalidade unificada da execução de uma ópera são precisamente as propriedades estéticas da ópera.
A identidade cultural, outro potencial item para a lista, tem sido erroneamente exagerado pelos académicos, a meu ver, enquanto elemento determinante da arte. No sentido em que toda a arte surge numa cultura e é portanto um produto cultural, a afirmação é trivialmente verdadeira. Normalmente, todavia, os defensores desta posição querem extrair dela a ideia de que os artistas pretendem no seu trabalho, e que o público espera da sua experiência, afirmar a identidade cultural. Isto é tão verdade como afirmar, por exemplo, que os artistas pretendem ser pagos pelo seu trabalho, e que o público espera de algum modo pagar-lhes: por vezes é verdade, por vezes não. Sucede que o uso intencional da arte para afirmar a identidade cultural tende a ser característico da arte apenas em situações de oposição cultural e dúvida. É improvável que Cervantes, Rembrandt ou Mozart encarassem a afirmação da cultura espanhola, holandesa ou austríaca como uma função principal do seu trabalho (e isto apesar de cada um ser, respectivamente, um orgulhoso espanhol, holandês, e austríaco). O caso de Wagner, que se afirmou abertamente contra a música francesa e italiana, é diferente; ele via-se conscientemente como alguém que afirma uma identidade teutónica. É difícil ver a música indiana na sua terra natal como algo dirigido à afirmação da identidade indiana; vem a servir essa função quando os indianos emigram e se juntam a associações culturais indianas em Estugarda ou Chicago. As formas artísticas locais oferecidas ao seu público natural, local, raramente suscitam preocupações acerca de afirmar a identidade cultural; tal arte proporciona apenas beleza e entretenimento ao seu público mais próximo, natural. Em retrospectiva, e séculos mais tarde, podemos vir a considerar que Shakespeare afirma valores isabelinos, mas trata-se de uma construção que lhe impomos. A sua intenção era criar um entretenimento teatral adequado ao público do Globe. Afirmar a identidade cultural, por muito importante que possa ser, não é criterial para reconhecer exemplos de arte.
Uma abordagem à compreensão da arte baseada em critérios de reconhecimento não nos diz de antemão quantos dos critérios têm de estar presentes para justificar que se chame “arte” a um objecto. Não obstante, tal lista, na minha perspectiva, apresenta uma definição de arte. Ao afirmar que a minha lista equivale a uma definição, divirjo de Berys Gaut, que, além de sugerir a sua própria lista, elaborou uma defesa filosófica de listas deste género. Tomando de empréstimo uma expressão de John Searle, que a usou noutro contexto, Gaut chama à listagem desses critérios uma “teoria agregativa” da arte. Gaut insiste que a teoria agregativa da arte é, no seu núcleo, anti-essencialista.11 “Uma abordagem anti-essencialista aplica-se a um conceito só se há propriedades cuja instanciação por um objecto conta, por uma questão de necessidade conceptual, para ser subsumido no conceito”. Sendo assim, então a minha lista de critérios de reconhecimento não equivale a um conceito agregativo. A aptidão e o ser a imagem de algo estão na minha lista, mas só por si — como no acto de um canalizador hábil que desentope uma conduta, ou um instantâneo num passaporte que é uma fotografia — estes não contam no sentido de tornar tais actos ou objectos obras de arte. Estas características não tiram força a qualquer aplicação do conceito e, tomadas em conjunto com outros itens da lista, aumentam a probabilidade de um objecto ser uma obra de arte. O anti-essencialismo da lista resulta, segundo Gaut, do modo indefinido e aberto pelo qual as características na lista se podem combinar em qualquer exemplo particular de arte. Se nos deparássemos com um objecto peculiar que fosse arte e não satisfizesse qualquer dos nossos critérios, explica Gaut, a abertura do conceito agregativo permite-nos simplesmente adicionar outra característica à lista. Mesmo que isto demonstrasse a imperfeição de uma lista inicial, argumenta Gaut, preserva ainda a ideia de que um conceito agregativo é apropriado para compreender o conceito de arte. Na minha perspectiva, a abertura de Gaut a novos critérios é desnecessária: um objecto que não tivesse uma só característica na lista não seria uma obra de arte, ao passo que um objecto que tivesse todas as doze características certamente que o seria. Falar em acrescentar novos critérios para acomodar novos géneros de arte parece-me um gesto intelectualmente aberto mas vazio, a menos que se nos possa mostrar um exemplo concreto de um novo género de arte não abrangido pela lista.
Stephen Davies criticou a afirmação de Gaut, de que os critérios listados são anti-essencialistas, defendendo a noção de que os critérios listados ou agregados para a arte são na verdade definições.12 Davies concede que o número de disjuntos na lista suficiente para algo ser arte determinará um muito maior número de combinações potenciais: se, digamos, metade dos doze podem fazer uma obra de arte, haverá um conjunto de todos os doze elementos, doze conjuntos de onze, cento e trinta e dois conjuntos de dez elementos, e assim por diante até um número muito vasto de possibilidades. Isto pode ser complicado, argumenta Davies, mas nada há aqui que exclua uma lista de critérios de reconhecimento ou a formulação por Gaut de um conceito agregativo como “uma definição complexa, disjuntiva, mas de resto ortodoxa”. Mil ou mais modos de ser arte está ainda muito longe de um número infinito de modos de ser arte. “O resultado será intricado, sem dúvida”, afirma Davies, “mas nem por isso deixa de ser uma definição”. Na perspectiva de Davies, uma lista como estes critérios de reconhecimento capta realmente “princípios unificadores”, e não é meramente “uma lista arbitrária de características que se pode encontrar em qualquer obra de arte possível”. Tal abordagem merece ser levada a sério “precisamente porque proporciona uma descrição plausível dos géneros de coisas que podem fazer algo ser arte”. Uma abordagem como a de Gaut ou a minha, conclui Davies, “não sustenta o anti-essencialismo em estética”.
Além disso, o tipo de essencialismo que sustenta é, como Gaut convenientemente mostra, bastante útil para lidar com supostos casos de fronteira ou marginais de arte. Como indiquei na secção I, o problema com muitas teorias clássicas da arte é começarem com um paradigma particular (a tragédia grega, digamos, ou a música abstracta) e perdem gás à medida que se afastam do paradigma para tipos de arte mais remotos. Em oposição a este fracasso persistente, temos a teoria institucional da arte, concebida primariamente para lidar com casos difíceis ou duvidosos. O seu sucesso em lidar com as fronteiras tem o preço da sua incapacidade de nos dizer algo de interessante acerca do núcleo consensual da arte: a instituição ou mundo da arte proclama simplesmente que um objecto em disputa está ou não incluído. Os critérios de reconhecimento tornam a discussão dos casos de fronteira muito mais rica e gratificante. A culinária, aponta Gaut, não é simplesmente incluída ou excluída, mas analisada nos termos da lista. Usando a sua própria abordagem do conceito agregativo, Gaut afirma que enquanto a presença de alguns itens na lista (aptidão e produção de prazer, por exemplo) nos inclinam a incluir a culinária entre as artes, a ausência de outros (saturação emocional, desafio intelectual, ou uma capacidade de representação) fazem-nos resistir à sua inclusão. “A dificuldade do caso”, conclui Gaut, “é preservada”. Gaut tem toda a razão: não se trata de uma perda para a estética mas de um ganho.13 Criticar a lista por não distinguir decisivamente todos os casos difíceis é desejar que a estética não tenha de todo casos difíceis, marginais ou de fronteira. Dado que nunca assim será, a melhor teoria estética é uma teoria que o reconhece.
Como comecei por indicar na própria lista, alguns dos critérios que contém são mais centrais do que outros para uma definição de arte. Numa escala valorativa, por exemplo, consideraria o item 5, a crítica, menos importante, pelo menos como critério de reconhecimento, do que o item 2, a aptidão ou virtuosismo. Ao responder a Gaut, Thomas Adajian criticou a ideia de que uma lista não tem modo de classificar ou avaliar internamente os seus membros.14 Eu acrescentaria que descobrir as diferenças de relevância que os itens têm sobre o carácter artístico de qualquer objecto ou execução é exactamente o que a estética filosófica devia tentar alcançar. Não vejo como a avaliação diferencial conte contra a noção geral de conjugar critérios de reconhecimento. Na verdade, descobrir a classificação pode ser um exercício frutuoso para melhorar a nossa compreensão da arte. Como exemplo de um caso marginal curiosamente difícil, mencionado por Gaut e por estudantes e público de conferências ao longo dos anos, refiro-me ao fenómeno do futebol europeu. Este desporto, particularmente em jogos de campeonato, apresenta um espectáculo que pode incorporar grande aptidão, drama intenso, e muita emoção e gozo para o público. É posteriormente sujeito a um discurso crítico. O futebol parece já satisfazer os meus critérios para o item 1, prazer, item 2, aptidão, item 5, crítica, item 7, enfoque especial, talvez o item 9, saturação emocional. Gaut, não obstante, afirma que os jogos de futebol não são obras de arte ou execuções artísticas (o que não equivale a negar a arte de alguns jogadores virtuosos ou das suas jogadas individuais). Concordando com ele, especulo que a razão de muita gente resistir a chamar “obras de arte” aos jogos de futebol tem a ver com a ausência daquilo que temos de ponderar como um dos itens mais importantes da lista: o item 12, experiência imaginativa. Para o adepto desportivo comum que torce pela equipa da casa, quem efectivamente ganha o jogo, não na imaginação, mas na realidade, continua a ser a questão dominante. Para o adepto, quem será o vencedor é a questão decisiva, geradora de interesse. Ganhar e perder é a principal fonte de emoção, que não é expressa, como nas obras artísticas, mas incitada nas multidões por um resultado desportivo no mundo real. Fossem os adeptos do desporto autênticos estetas, segundo a minha especulação, pouco ou nada se importariam com as pontuações e resultados, mas apenas desfrutariam os jogos em termos de estilo e economia de movimento, aptidão e virtuosismo, e expressividade. No meu discernimento, portanto, um jogo de futebol não é essencialmente (ou não suficientemente, em todo o caso) uma “apresentação” kantiana, um evento faz-de-conta, oferecido à contemplação imaginativa, mas, ao invés, um evento do mundo real, mais como uma eleição ou batalha.15 O facto de o futebol poder ter tanto em comum com a arte reconhecida e no entanto não ser um exemplo dela é algo que a lista de critérios de reconhecimento nos pode ajudar a compreender. A possibilidade de uma análise como esta é outra vantagem ainda da minha lista.
Ideias e objectos como “raiz quadrada” ou “neutrão” vieram a ser entendidos juntamente com a emergência das teorias que lhes deram um lugar na compreensão. As artes, de maneiras rudimentares e precisas, foram criadas e directamente fruídas muito antes de virem a ser objecto de ruminação teórica. A arte não é uma área técnica regida e explicada por uma teoria, mas um domínio rico, disperso e variegado de prática e experiência humana que existia antes dos filósofos e teorizadores. É uma categoria natural, evoluída, o que significa que não devia surpreender seja quem for o poder ter uma definição tão ampla e comparativamente aberta. A este respeito, é como outros aspectos grandiosos, vagos, mas reais e persistentes da vida humana, como a religião, a família, a linguagem, a amizade, ou a guerra. Sejam quais forem as inflexões históricas e locais destes fenómenos humanos, têm suficiente em comum para serem tratados como um género de perspectiva natural ou forma comportamental. Apesar de muitos casos contestados e de fronteira, exemplos paradigmáticos são facilmente reconhecidos em diversas culturas e ao longo de milénios. Quanto ao receio anti-essencialista de que uma definição da arte em termos de critérios de reconhecimento possa restringir a própria imaginação criativa que observamos e encorajamos nas artes, faz tanto sentido como a preocupação de que uma definição de “livro” nos leve por derrapagem a censurar a literatura. As artes permanecem o que são, e serão. É a estética que tem de aperfeiçoar a sua melodia.16