Será que a arte avant-garde tem uma importância especial para a filosofia da arte?1 Evidentemente, alguma arte avant-garde pode ser intrinsecamente interessante. Talvez os filósofos possam reflectir sobre o significado e valor dessas obras. Algumas podem mesmo levantar questões filosóficas. Contudo, muitos filósofos foram na peugada de Arthur Danto, pensando que há lições bastante gerais a retirar destas obras.2 Pensam que a arte avant-garde deve desempenhar um papel especial na teorização sobre a natureza da arte em geral. Com base neste género de exemplos, Danto tem sido influente em persuadir muitos filósofos da arte, particularmente nos Estados Unidos, a abordarem a filosofia da arte de um modo particular — um modo que sublinha o contexto social e artístico da arte e que se afasta das ambições estéticas do artista individual ao fazer a obra. Mas na verdade veremos que os exemplos não sustentam de modo algum esta mudança teórica. Podemos agarrar-nos às teorias estéticas da arte, mais antiquadas, que desde a década de 1960 permaneceram bastante populares no Reino Unido, saindo de moda nos Estados Unidos. No Reino Unido, os estetas não se deixaram impressionar tanto pela ideia de que a arte avant-garde tem esta importância geral. Há uma diferença transatlântica acerca desta questão. Não estou certo de qual será a situação na Europa e no resto do mundo. Simpatizo frequentemente com as atitudes americanas relativamente à filosofia. Mas na estética, a minha simpatia vai para os britânicos. Penso que o papel atribuído à arte avant-garde é exagerado; e penso que as teorias estéticas da arte pouco têm a recear de tais fenómenos.
Por que razão pensam Danto e outros estetas que a arte avant-garde é filosoficamente importante?
Danto pensa que o conteúdo filosófico desta arte reside na lição a retirar dos exemplos de réplicas indiscerníveis. Trata-se de exemplos de pares de coisas, imaginárias ou reais, intrinsecamente indiscerníveis, sendo uma delas arte ao passo que a outra não o é. Tais exemplos têm sido influentes, fazendo os filósofos adoptarem teorias do mundo da arte ou institucionais, ou teorias desse tipo geral. Mas o que mostram exactamente os exemplos de réplicas indiscerníveis? Mostram que ser arte é uma propriedade relacional. Mas isso deixa em aberto um âmbito vasto de teorias. Em particular, deixa em aberto a teoria estética da arte, de Monroe Beardsley.3 Danto e os seus seguidores inferem que o género de teoria relacional a que dão preferência é encorajado. Mas isto é inequivocamente um non sequitur.4
Alguns exemplos de réplicas indiscerníveis podem não só mostrar que ser uma obra de arte é relacional mas também que a relação relevante é um qualquer género de origem essencial. Assim uma peça de “arte do pântano”, que é exactamente como uma dada obra de arte, excepto que começou a existir depois de um raio atingir um pântano, não é arte, embora se assemelhe a coisas que são arte. Isto porque tem a origem errada. Que as obras de arte têm origens essenciais resulta de serem artefactos. As mesas do pântano não são mesas pela mesma razão. Os artefactos têm origem essencial em pensamentos. A possibilidade de casos de réplicas indiscerníveis envolvendo obras de arte segue-se da artefactualidade das obras de arte.
Há também exemplos de réplicas indiscerníveis de duas coisas que são obras de arte diferentes. Ernst Gombrich explorou isto em 1959 no seu livro Art and Illusion.5 Aí Gombrich torna explícita a posição antiformalista que estava implícita no título do seu livro de 1950, The Story of Art,6 que vendeu milhões de exemplares. Talvez uma teoria relacional da arte não seja muito controversa e não parece muito controverso afirmar que as obras de arte têm origem essencial em acções artísticas. Mas afirmar que têm também relações essenciais com outras obras de arte é muito mais controverso. É verdadeiro que muitas obras de arte têm essas propriedades relacionais essenciais; mas é plausível que algumas, talvez muitas, não tenham. A sua identidade não depende de relações com outras obras. É também plausível que tem de haver alguns casos em que a identidade artística não é relacional neste sentido, se é que há algo acerca do qual a história da arte o seja. Concedamos: há obras de arte que dependem de outras obras de arte. Mas só pode haver essas obras de arte porque há outras obras de arte que não dependem de outras.
Duvido portanto de que tenhamos muito a aprender com os exemplos de réplicas indiscerníveis. Estes não devem desempenhar o papel crucial na teorização geral da arte, como Danto imaginou.
Diz-se frequentemente haver um projecto a que se chama definir a arte, e está consagrado nas antologias e manuais de estética. Este projecto parece normalmente envolver a procura de “condições necessárias e suficientes” para ser arte. A arte avant-garde entra em palco como candidata a contra-exemplo de certas teorias. A imagem algo hegeliana que Danto insiste que aceitemos é a de que as teorias da arte procuram descrever a arte, mas entretanto a própria arte segue em frente e refuta as teorias. As teorias da arte dirigem-se a algo em movimento e mudança e tendem a descrever a arte como esta era mas já não é.
Normalmente, pensa-se que este projecto de “definição” nos dá o significado da palavra “arte” ou do conceito de arte. Mas é na verdade estranho que se procure fazer isto através de “condições necessárias e suficientes” para ser uma obra de arte. Pois apresentar condições necessárias e suficientes para ser X (uma equivalência modal) não é o mesmo que dar o significado de “X” (uma equivalência semântica). Ser água é necessário e suficiente para ser H2O, mas não há equivalência de significado entre “água” e “H2O”. Na verdade, o projecto de “definir a arte” claramente não é coerente; a expressão “definir a arte” não está bem formada. Pode-se definir “arte” mas não a própria arte. Será que quem procura uma “definição” está realmente à procura daquilo a que por vezes se chama uma “definição real”, a qual não é uma questão de significados? Suspeito que os praticantes da análise conceptual na filosofia da arte não se decidiram.
Suponhamos que o projecto que se procura levar a cabo é a análise do conceito de arte, e que se supõe que este conceito se aplica à pintura, escultura, arquitectura, literatura e música. Surgem então pelo menos quatro questões, que nos deixam de sobreaviso acerca da viabilidade da análise conceptual ou acerca dos seus frutos, mesmo que seja levada a cabo de modo bem-sucedido.
Pelo menos por estas quatro razões, a análise conceptual não é uma abordagem satisfatória à reflexão filosófica sobre a arte. Ou faz pressuposições duvidosas ou é demasiado limitada.
Mas se não estamos assim tão interessados no conceito de arte, ou se temos reservas acerca de “analisar” o conceito, a preocupação com contra-exemplos deixa de ser o mais importante. O projecto de análise conceptual na filosofia da arte consiste normalmente na procura de condições necessárias e suficientes para algo ser arte. Daí a procura de contra-exemplos — algo que é arte mas não satisfaz a definição, ou algo que satisfaz a definição mas não é arte. Mas com uma metodologia diferente, os contra-exemplos não têm de ter importância central. É por isso que o uso do avant-garde como fonte de putativos contra-exemplos às teorias estéticas da arte faz pressupostos questionáveis acerca de questões fundamentais na filosofia da arte.
Precisamos de colocar a metapergunta: como devemos avaliar as teorias da arte? Que critérios de adequação devemos usar? O método de definição e contra-exemplo, no seu todo, é questionável. O projecto de análise conceptual e a procura de adequação extensional são vulneráveis a uma metacrítica. Mesmo que uma teoria seja boa segundo tais critérios, pode não ser interessante nem iluminante. Em lugar de um critério de adequação extensional, proponho um critério de adequação explicativo. Queremos explicação: precisamos de explicar o consumo e produção de arte, e talvez também a preservação das obras de arte. Estas são grosso modo as três coisas que fazemos com a arte. E levantam perplexidades. Por que nos importamos com a arte? A filosofia da arte deve lidar com estas questões. Se não o faz, arrisca-se a ser imperfeita ou superficial.
A explicação que procuramos é uma explicação racional, ou envolve explicação racional. Precisamos de explicar por que a arte nos parece digna de ser feita, preservada e usada. O que vêem as pessoas na arte? Daqui não decorre que todas as obras de arte têm valor. George Dickie pensa injustamente que uma definição valorativa implica que não há má arte.8 Isto é lateral à questão. O importante é que às pessoas parece que muitas obras de arte têm valor. A má arte presumivelmente não é considerada má pelos seus criadores. Na República, Platão, curiosamente, apresentou uma explicação de por que parte daquilo a que chamamos “arte” parece ter valor, mas não tem. Este é o tipo certo de teoria.
Há quem diga que a teoria da arte pode ser uma teoria metafísica neutra acerca de questões valorativas.9 Visa-se assim duas teorias distintas: uma teoria valorativamente neutra da arte e uma teoria da sua avaliação. A ideia é que a teoria da arte pode ajustar-se a uma teoria mais ampla da avaliação, mas não tem ela própria de fornecer essa avaliação mais ampla. Mas isto não é viável. Só podia haver tal teoria valorativamente neutra da arte se a arte fosse uma categoria natural como o ouro. Mas as obras de arte são artefactos humanos com propósitos que resultam de intenções. E não há compreensão dos artefactos enquanto não os considerarmos inteligíveis — isto é, enquanto não virmos como é racional fazê-los e usá-los. Compreender um artefacto é compreender por que alguém poderia querer fazê-lo e usá-lo. Uma teoria da arte deve, ela própria, dar esta explicação, ou dar a base de tal explicação. Não pode ser uma história distinta ou completamente sem relação com isso. A teoria da arte tem de ser subsumida numa história explicativa racional geral. As perspectivas acerca da natureza da arte devem ser um subproduto de uma boa história explicativa racional.
Outros afirmam que se queremos explicar as actividades artísticas humanas devemos usar a psicologia ou sociologia empíricas. Mas penso que neste caminho se escondem perigos. Pois precisamos de uma teoria que explique diversas atitudes que temos e actividades a que nos entregamos, tornando-as inteligíveis ou mostrando como parecem valer a pena para os que as têm ou se entregam a elas. Precisamos de uma teoria que dê prioridade à perspectiva da primeira pessoa — uma teoria que invoque as razões que uma pessoa tem, e não apenas causas. Pelo que o tipo de explicação de que precisamos prioritariamente é a explicação causal racional. Outras explicações das nossas acções devem, na maioria dos casos, respeitar a compreensão que temos das nossas próprias acções e não de a substituir. Há evidentemente algumas áreas em que a compreensão que temos de nós próprios é delusória, mas em geral não é isso o que sucede.10 Isto não visa excluir a possibilidade do estudo psicológico empírico da arte ou de uma sociologia empírica da arte. Mas tais investigações empíricas têm de respeitar a concepção que temos de nós próprios, ou vindicando-a ou indo além dela e alargando-a. Os estudos psicológicos da arte ou a sociologia da arte sem uma sólida filosofia da arte — que dê ênfase à perspectiva da primeira pessoa — serão provavelmente inconclusivos, na melhor das hipóteses, e na pior das hipóteses serão irrelevantes.
Precisamos de compreender o mundo, incluindo nós próprios, e precisamos de conceitos que nos permitam fazer isso. O nosso conceito de arte não é sacrossanto. A questão não é: qual é o nosso conceito de arte? Mas antes: que conceito ou conceitos de arte devemos ter? Se uma teoria envolve a reforma dos conceitos comuns, em maior ou menor grau, seja; isso é algo que podemos ter de fazer para ter um ganho explicativo. Queremos uma teoria explicativa da nossa vida mental na medida em que envolve obras de arte. E devemos moldar conceitos que nos permitam obter isso.
Regressemos agora à arte avant-garde. Essa arte é controversa. Na verdade, pretende-se frequentemente que seja controversa. Em particular, o seu valor é controverso. Muitas pessoas pensam que a arte avant-garde não tem grande valor. Por exemplo, Brian Sewell, o popular crítico da arte anti-art-establishment, pensa que estas obras não são em geral dignas de serem produzidas, conservadas ou consumidas.11 Pelo que, dado o objectivo racional-explicativo de uma teoria da arte, não é seguramente boa ideia fazer dessas obras o centro da nossa filosofia da arte. Isto leva à abordagem oposta de muitos autores contemporâneos — a posição conservadora de que a prioridade é explicar os casos indisputáveis de arte valiosa. Que tal centrarmo-nos em Ucello e Cranach em vez de em Duchamp e Warhol?
Assim, quando os estetas objectam às teorias estéticas da arte com razões extensionais, perguntando “Então e tais e tais obras de arte que não têm ambições estéticas?”, a resposta é que não estamos a jogar o jogo extensional mas o jogo explicativo. Podemos conceder que uma teoria estética não se ajusta a este ou àquele caso. Por que razão é isso tão desastroso? A teoria estética dá-nos a essência de muitíssimas obras de arte. Diz-nos o que são e produz uma explicação do valor destas obras e do valor das nossas actividades artísticas. Isso é interessante. A questão de haver ou não outros fenómenos que não são explicados deste modo não diminui a explicação bem-sucedida dos muitos casos com que a teoria lida.
Precisamos de uma teoria da arte que explique o valor aparente da maioria das obras de arte. Alguém podia, na esteira de Platão, defender a tese radical de que o valor da maior parte dos casos centrais é meramente aparente e não real. Mas essa aparência tem ainda de ser explicada. Por contraste, onde o valor da arte é amplamente disputado — como o é o valor da arte avant-garde — não há aparência geral de valor a explicar. Essas obras diferem das obras convencionais na medida em que não há aceitação geral do seu valor aparente. Claro que os gostos diferem; as pessoas valorizam diferentemente as obras convencionais. Mas temos de pensar que, muito em geral, não é irracional fazer a maioria da arte e ter dela experiência. Por contraste, isto é exactamente o que muitas pessoas pensam de grande parte da arte avant-garde. Pelo que é um erro dar a esses casos centralidade na teoria da arte.
Uma teoria da arte tem de explicar as nossas atitudes artísticas e as nossas actividades artísticas. Deve explicar o valor que as pessoas vêem em fazer, preservar e percepcionar obras de arte. As teorias estéticas da arte têm uma grande vantagem sobre teorias que privilegiam os propósitos ideológicos ou cognitivos da arte. Pois as teorias estéticas apelam ao prazer; e o desejo e procura do prazer é familiar e compreensível. O tipo de prazer a que as teorias estéticas apelam é provavelmente um tipo especial de prazer, um prazer com maior valor do que tipos de prazer mais prosaicos. Não obstante, é prazer. E a procura do prazer é um passatempo inteligível e racional.12 Se as teorias estéticas apelam ao prazer, podem proporcionar, ou podem conjugar-se facilmente com, uma explicação particularmente persuasiva da aparência do valor das obras de arte e das nossas actividades artísticas. Portanto, as teorias estéticas da arte dão-nos uma explicação racional da grande maioria da arte e das actividades artísticas de todo o mundo nos últimos milénios. Isto é seguramente mais importante do que uma teoria poder ou não incluir um punhado de obras experimentais feitas em Nova Iorque na década de 1960.