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Crítica
16 de Abril de 2008   Filosofia política

Desejemos Voltaire

José Pedro Teixeira Fernandes
Uma Mulher Rebelde
de Ayaan Hirsi Ali
Tradução de Filipe Guerra
Lisboa: Presença, 2007, 355 pp.

Ayaan Hirsi (o nome original é Ayaan Hirsi Magan), nasceu em 1969, em Mogadíscio, no seio de uma família muçulmana importante da Somália, pertencente ao clã Osman Mahamud, um subclã dos Darod. Este livro é um obra autobiográfica e tremendamente humana. Relata uma experiência de vida simultaneamente dramática (pelas circunstâncias que teve de enfrentar) e fascinante (pela sua enorme coragem em superar a adversidade e refutar o papel de submissão que lhe estava destinado, como a tantas outras mulheres muçulmanas). A sua vida de infância e juventude, apesar de ter episódios felizes, foi passada em grande parte no exílio, entre a Arábia Saudita, a Etiópia e o Quénia, devido à oposição do seu pai — um membro proeminente da Frente Somali de Salvação Democrática —, ao regime ditatorial de inspiração soviética de Siad Barré. Ainda enquanto criança na Somália foi sujeita, por iniciativa da avó, à chamada circuncisão feminina, com a retirada do clítoris e dos pequenos lábios (uma prática destinada a garantir a virgindade da mulher até ao casamento). A maior parte da sua juventude decorreu no Quénia, onde frequentou a escola e tirou um curso técnico de secretariado. Aí sentiu a progressiva influência do islamismo radical dos Irmãos Muçulmanos, financiados pelo dinheiro do petróleo dos países árabes ricos do golfo, e os seus efeitos de radicalização do Islão, no Quénia e na Somália. Ela própria tornou-se muito mais rigorista no vestuário e nos hábitos religiosos diários e até tentou, ainda que sem sucesso, exercer proselitismo sobre as suas colegas na escola. Todavia, foi também no Quénia que teve, pela primeira vez, a oportunidade de contactar com culturas não muçulmanas e com a influência ocidental. Acabou, assim, por adquirir uma crescente consciência sobre a desigualdade e injustiça com que uma sociedade tradicional, baseada em valores islâmicos e pré-islâmicos, patriarcais e rigoristas, tratava as mulheres. Lentamente, Ayaan Hirsi, começou também a formar um pensamento crítico sobre a visão do mundo arcaica e hipócrita em que assentava essa ordem social. O facto de o seu pai, à maneira tradicional somali e muçulmana, lhe ter escolhido um marido dentro do clã — um homem que nunca tinha visto e residia no Canadá —, foi, segundo refere, a gota de água que a levou a ganhar coragem para alterar drasticamente o rumo da sua vida.

Em finais de 1992, após ter viajado para a Alemanha, e enquanto aguardava os documentos para se juntar ao seu “marido” no Canadá, Ayaan Hirsi decidiu fugir para a Holanda. Isto foi feito não só com a intenção de não se casar, como de quebrar os laços com o seu passado que lhe coarctavam a sua liberdade como pessoa e ser humano. Os seus primeiros tempos decorreram no centro de acolhimento de Zeewolde, onde, na multidão de refugiados, se encontravam também outros somalis. Decorrido algum tempo acabou por ser localizada pelo seu “marido” e família, e foi submetida ao veredicto de um “Tribunal dos Anciãos”, ironicamente nas instalações do próprio campo de refugiados de Zeewolde. Este tribunal improvisado, pretendia resolver a questão com base nos princípios tradicionais da Xária (Sharia) islâmica, pressionando-a a ir ter com o seu “marido” e a preservar a honra da família, que dependia do cumprimento da promessa de oferta da filha em casamento. Ao recusar-se a acatar o veredicto do “Tribunal dos Anciãos”, Ayaan Hirsi sabia que corria o risco de ser rejeitada pela sua própria família, que não iria aceitar esta decisão, o que de facto veio a acontecer, como mostra uma troca emotiva de cartas com o seu pai, reproduzida no livro (entre as páginas 160–161). Nos anos subsequentes, teve vários empregos, desde empregada de limpeza a tradutora de refugiados e emigrantes, acabando por conseguir frequentar o curso de Ciência Política na prestigiada Universidade de Leida. Entretanto, outra tragédia pessoal se abateu sobre a sua vida. A sua irmã Haweya, que também tinha fugido para a Holanda e vivia consigo, nunca se adaptou à sociedade holandesa. Já com uma história pessoal anterior complexa, foi afectada por uma doença psiquiátrica grave que a levou a regressar a casa da mãe, em Nairobi, no Quénia, sucumbindo à doença em inícios de 1998.

O principal momento de viragem de Ayaan Hirsi para um activismo político ocorreu quando, em 2001, o Instituto Wiardi Beckman ligado ao Partido Trabalhista, a contratou como investigadora (entretanto, já tinha obtido a nacionalidade holandesa e concluído o seu curso em Leida). Uma semana depois de ter iniciado o trabalho nessa instituição — a sua actividade consistia na participação em grupos de trabalho e em efectuar pesquisas sobre os problemas de integração das mulheres estrangeiras na sociedade holandesa —, ocorreram os atentados terroristas de 11 de Setembro. A conjugação destas duas circunstâncias teve um enorme impacto na vida de Ayaan Hirsi e acabou também por projectá-la como figura pública. A questão do terrorismo islâmico e das suas motivações acabou por absorver grande parte do seu pensamento e energias. Poucos meses depois do 11 de Setembro, num debate efectuado sob o título “O Islão e o Ocidente: Quem precisa de um Voltaire?” (e quando o público se inclinava sobretudo para concordar com aqueles que criticavam este ou aquele aspecto do mundo ocidental), fez uma intervenção contracorrente afirmando:

“Pensem na quantidade de Voltaires que o Ocidente já tem. Não nos negueis o direito de termos, também nós, um Voltaire. Olhem para as nossas mulheres e olhem para os nossos países. Vejam como somos tantos a fugir e a procurar refúgio aqui. E vejam essas pessoas que, na sua loucura, fazem despenhar aviões contra as vossas cidades. Permitam-nos que desejemos a chegada de um Voltaire, porque vivemos verdadeiramente na idade das trevas” (p. 276).

Após relatar esta sua primeira intervenção pública, Ayaan Hirsi comenta também no seu livro a ideologia multiculturalista da sociedade holandesa, e a sua visão idílica sobre a integração (que, ironicamente, funcionava até contra a própria vontade de integração de muitos muçulmanos):

“Na altura, especialmente nos círculos do Partido Trabalhista, toda a gente tinha uma opinião muito positiva do Islão. Se os muçulmanos exigiam mesquitas, cemitérios separados, matadouros rituais, construíam-lhos. Forneciam-lhes locais para os seus centros culturais, onde o fundamentalismo se poderia desenvolver à vontade [...] Pareciam esquecer-se de quanto tempo tinha sido necessário à Europa para se libertar do obscurantismo e da intolerância, e até que ponto a luta tinha sido encarniçada” (p. 277).

Pela sua própria experiência de vida, sabia bem como o idealismo ingénuo das elites holandesas, sobre as virtudes do multiculturalismo, abria a porta a interpretações retrógradas do Islão e à difusão da ideologia dos islamistas:

“O governo holandês precisava de parar urgentemente com a fundação das escolas corânicas, pensava eu. As escolas muçulmanas rejeitam os valores dos direitos humanos universais. Numa escola muçulmana as pessoas não são todas iguais, e as liberdades de expressão e de consciência são banidas. Estas escolas não deixam desenvolver a criatividade — a arte, o teatro, a música não são ensinados — e impedem as faculdades críticas que poderiam levar as crianças a questionar as suas crenças”. (p. 281)

Com este tipo de posições críticas do Islão mais rigorista e da ideologia islamista, Ayaan Hirsi granjeou rapidamente inimigos. Não só passou a receber ameaças, presumivelmente de islamistas radicais (o que a levou a estar permanentemente sob segurança), como, dentro do seu no seu próprio partido, foi olhada com desconfiança por colocar em causa a ideologia multiculturalista oficial. Isto levou-a a mudar-se para o Partido Liberal tendo sido eleita deputada ao parlamento holandês nas eleições de 2003. Em 2004, participou num filme de Theo van Gogh (sobrinho-neto do pintor Van Gogh), intitulado Submissão, que pretendia chamar à atenção do público holandês para a frequente situação de opressão em que viviam as mulheres na cultura islâmica. Nessa altura, a Holanda já estava abalada pelo assassinato de Pim Fortuyn às mãos de um militante de extrema esquerda pró-direitos dos animais, que ocorrera dois anos antes. Desta vez, a tragédia abateu-se sobre Theo van Gogh que, em finais de 2004, foi barbaramente assassinado nas ruas de Amesterdão por um muçulmano de nacionalidade holandesa e origem marroquina. (Ironicamente, na altura em que foi assassinado, trabalhava num filme sobre o assassínio de Pim Fortuyn). Nos anos seguintes, a vida atribulada de Ayaan Hirsi continuou a desenrolar-se. Em 2006, o programa de televisão Zembla divulgou, sensacionalistamente, que Ayaan mentira para obter o asilo e nacionalidade — algo que, segundo Ayaan Hirsi, já era do conhecimento público há vários anos. No entanto, para a zelosa ministra Rita Verdonk, isso foi motivo para lhe retirar a nacionalidade (alguns meses depois, o governo de Peter Balkenende acabou por voltar atrás na decisão). Esta situação delicada levou-a a demitir-se do parlamento e a viajar até aos EUA, a convite do American Enterprise Institute de Washington, um think tank conservador. Entretanto, terá regressado novamente à Holanda, sob protecção e anonimato, numa situação que faz lembrar a de Salman Rushdie. Depois de se ler este livro, percebe-se quanto se deve à extraordinária acção de Ayaan Hirsi e à sua luta corajosa pelos direitos das mulheres e pela preservação da tradição de liberdade, da Holanda e do Ocidente.

José Pedro Teixeira Fernandes

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ISSN 1749-8457