George Berkeley (1685–1753) estudou no Trinity College, de Dublin, onde foi eleito Junior Fellow em 1707 e ao qual permaneceu ligado até ser nomeado Deão de Derry em 1724. Em 1734 foi nomeado Bispo de Cloyne. As suas principais obras filosóficas foram Ensaio para uma Nova Teoria da Visão (1709), Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710) e Três Diálogos entre Hylas e Filonous (1713), mas Alciphron (1732), Siris (1744) e várias pequenas obras são de interesse filosófico. Exerceu forte influência sobre Hume, Reid e Kant.
O “imaterialismo” de Berkeley é um sistema metafísico contrário à “filosofia moderna” de Descartes, Locke e outros mecanicistas, cuja explicação da matéria como substância independente Berkeley considerava instituir um rival de Deus. Os seus argumentos têm amplas implicações para a epistemologia. Hume descreve-os como “as melhores lições de ceticismo [...] seja entre os filósofos antigos, seja modernos”, mas a tese do próprio Berkeley é que os seus argumentos fecham ao ceticismo a porta que os “materialistas” deixaram aberta.
O objetivo central de Berkeley não é como popularmente se supõe colocar em dúvida a existência física dos objetos. O seu sistema é estruturado em torno do princípio de que os espíritos são os únicos seres independentes, ativos, ou, no sentido filosófico, “substâncias”. As coisas sensíveis ou corpos existem, mas como seres inertes dependentes de uma mente que os percepciona (Princípios I, 7, 89, etc.). O seu argumento reinterpreta radicalmente a noção tradicional de substância. De acordo com o lado lógico da doutrina aristotélica, a substância, independente, e o acidente, dependente, existem em diferentes níveis ontológicos, na verdade, em sentidos categoricamente diferentes de “existe”. Como sujeitos elementares da predicação, as substâncias são também os substratos da mudança: são princípios de atividade, e a mudança é entendida em termos das suas naturezas ou essências. Apesar de uma noção diferente de explicação causal, a teoria mecanicista da substância tem um perfil claramente semelhante. O argumento de Berkeley, conseqüentemente, tem dois aspectos, correspondendo à independência lógico-ontológica dos espíritos e à sua atividade. O primeiro envolve uma teoria radical da percepção, o segundo, uma igualmente radical filosofia da física.
Os espíritos berkelianos, como as substâncias aristotélicas, “existem em primeiro lugar e em sentido primeiro” (Siris, 263), enquanto o esse das coisas sensíveis é percipi (Princípios, 14). A noção de substância é derivada da teoria da predicação supostamente “infundada e ininteligível”, e o “na” de “os acidentes (ou qualidades) existem na substância”, é reinterpretado como o “na” de “a cor que na minha mente vejo que existe” (ibid, I, 49). Os espíritos são substâncias que “suportam” qualidades sensíveis ou idéias ao percepcioná-las (ibid. I. 7, 135). Falar de substância material “suportando” qualidades é uma metáfora vazia (ibid. I, 17). Esta identificação das “qualidades sensíveis” com as “idéias” torna-se compreensível se reconhecermos que, embora Berkeley freqüentemente use “idéia” alternadamente com “sensação” (ibid. I, 4), não quer com isso dizer um estado ou modificação da mente, mas algo mais parecido com a tradicional abordagem de Descartes da idéia de Sol como “o próprio Sol, tal como existe no entendimento”, i.e., como dele temos experiência ou como é concebido. Dado que (alega Berkeley), as qualidades sensíveis são idéias neste sentido, e “que é uma contradição manifesta que uma idéia exista numa coisa incapaz de percepção”, segue-se que “não existe qualquer outra substância além do espírito” (ibid, I, 7).
Berkeley está negando, como autocontraditório e absurdo, que por detrás dos corpos, tal como aparecem aos sentidos, exista os corpos tal como são em si, substâncias “impensantes” independentes: mais precisamente, Berkeley considerou que isso não negava a existência dos corpos, antes os tornava mais imediatamente acessíveis a nós. O ponto mais importante do argumento é a sua rejeição da noção de uma qualidade que não seja uma idéia, i.e., que seja não relativa. Não pode haver qualidades “reais” e independentes que são semelhantes a idéias, visto que “uma idéia não pode ser semelhante seja ao que for a não ser a outra idéia” (ibid, I, 8). Além disso, a nossa crença de que podemos conceber corpos como existentes absolutos, independentemente da percepção, é uma ilusão engendrada pela possibilidade de imaginar algo sem imaginar alguém que a percepcione: esquecemos que a estamos imaginando como nós mesmos a percepcionaríamos (ibid. I, 22; Diálogos, 1200). No entanto, estes argumentos gerais dependem do suporte de uma ampla investida contra a doutrina de acordo com a qual as “qualidades mecânicas “primárias” qualificam as coisas tal como são em si, enquanto as qualidades “secundárias”, como as cores e os cheiros, existem (pelo menos como “simples poderes”) apenas “na mente” como um produto das qualidades primárias de partes diminutas (cf. Locke, Ensaio, 2.8.7–17).
Um dos argumentos de Berkeley contra a distinção entre qualidades primárias e secundárias é que é impossível formar uma idéia de um corpo extenso, em movimento, sem lhe atribuir alguma cor ou outra qualidade dependente da mente: o que é inseparável daquilo que é dependente da mente tem de ser ele mesmo dependente da mente (Princípios I, 10). No entanto, este argumento parece fraco no caso das qualidades percepcionadas simultaneamente pela visão e pelo tato, pois o que é perceptível por um ou outro sentido apenas tem de ser separável do outro. Mais fundamental, conseqüentemente, é a negação por parte de Berkeley de que existam essas idéias de dois sentidos. Na Nova Teoria da Visão, Berkeley tira esta conclusão a partir de uma brilhante discussão de uma série de problemas em ótica, incluindo o “problema de Molineux”. Molineux e Locke argumentaram que um homem que nasceu cego e que passou a ver seria incapaz de distinguir a distância e a profundidade pela visão, pois “nunca descobriu pela Experiência que o que afeta o seu tato de um dado modo tem de afetar a sua visão de um dado modo” (Locke, Ensaio 2.9.8). Berkeley argumenta que as únicas conexões entre objetos da visão e do tato são essas correlações contingentes. Os primeiros são sinais dos segundos, mas em si são numérica e qualitativamente distintos (Nova Teoria da Visão 47–157).
Uma série adicional de argumentos destina-se a mostrar que determinado tamanho, forma e movimento são relativos aos sentidos. Por detrás destes argumentos está a idéia de que a extensão “externa”, considerada o objeto comum (digamos) da visão a olho nu e da visão através do microscópio, deve ser concebida como infinitamente divisível e, assim, ter um número infinito de partes, como se não tivesse qualquer tamanho ou forma determinada (Princípios, I, 11, 47; Diálogos I, 184–193). Berkeley sustenta que, em contraste com este absurdo, qualquer extensão percepcionada é determinada, composta de um número infinito de minima sensibilia (Nova Teoria da Visão 80–85).
Berkeley atribui muitos erros a uma fonte comum: a suposição de que aquilo que pode ser separado pela linguagem pode também ser abstraído em pensamento e separado na realidade. A existência de coisas sensíveis é falsamente considerada separável de serem percepcionadas, as qualidades primárias consideradas separáveis das secundárias, e a extensão considerada separável tanto da vista como do tato. A Introdução dos Princípios é, assim, dedicada a um ataque à teoria das idéias abstratas de Locke. Embora Locke seja mal interpretado, a própria abordagem de Berkeley do pensamento abstrato (na realidade, muito semelhante à de Locke), é uma importante expressão da visão nominalista segundo a qual ao raciocinarmos temos particulares em mente, concentrando-nos naqueles seus aspectos marcados pela linguagem que empregamos.
Berkeley reserva o termo “idéia” para objetos da “percepção”, i.e., sentidos e imaginação. O espírito é conhecido (em si) “imediatamente, ou intuitivamente”, “pela reflexão” (Diálogos III 23 ss.). Apesar da palavra “reflexão”, o seu modelo para esta autoconsciência imediata não foi o “sentido interior” de Locke, mas antes o cartesiano “intelecto puro”, um termo que Berkeley usa ocasionalmente (ibid. I; De motu, 53; Siris, 303). Por seu meio alcançamos uma “noção” de espírito que podemos empregar em nosso pensamento sobre Deus e outros espíritos finitos (Princípios, I, 135-40). Nenhuma idéia poderia representar o espírito porque as idéias são evidentemente passivas (não percepcionamos o poder), enquanto o espírito é uma substância ativa. É devido à consciência de nossa própria volição que temos noção da ação causal. É, portanto, uma contradição que uma coisa sensível ou impensante seja uma verdadeira causa (ibid. I, 271). Berkeley está aqui adaptando a doutrina cartesiana, desenvolvida por Malebranche, segundo a qual a matéria é objeto passivo da vontade de Deus.
Estes materiais fornecem um argumento a favor da existência de Deus e uma concepção das leis físicas como estritamente contingentes. Dado que todas as idéias requerem uma causa, e as idéias dos sentidos não são causadas por nós, tem de haver algum outro espírito que as produz em nós. Uma vez que ocorrem numa “cadeia ou série” de admirável conexão, são, evidentemente, obra de um sábio e benevolente espírito governante cuja vontade constitui a Lei da Natureza (ibid. I, 30–32). A tarefa dos cientistas não é, portanto, penetrar as essências desconhecidas das coisas, cujo conhecimento tornaria o mundo inteligível. Não existem essências por detrás das nossas generalizações contingentes. A ciência progride simplesmente através do estabelecimento de analogias entre os fenômenos, analogias estas que cabe aos termos teóricos, como “gravidade” e “atração”, assinalar (ibid. I, 101–109).
“As idéias impressas nos sentidos pelo autor da natureza são denominadas coisas reais”. Com esta interpretação da linguagem corrente, Berkeley antecipa-se à crítica de que, juntamente com os objetos independentes da mente, ele teria suprimido a distinção entre realidade e ilusão ou ficção. As idéias dos sentidos, involuntárias, distintas e regularmente conectadas, são as que contam para a ação (ibid. I, 30–36). Uma objeção proveniente da vivacidade dos sonhos é respondida com o princípio do reducionismo de Berkeley: o realista necessariamente concede tudo o que é preciso, uma vez que também tem de “distinguir coisas de quimeras [...] por meio de alguma diferença perceptível” (Diálogos III, 235). A objeção de que as “coisas reais” berkelianas deixam de existir quando não são percepcionadas leva, nos Princípios, à sugestão de que Deus as percepciona continuamente (I, 45). Nos Diálogos, além disso, argumenta-se que o caráter involuntário das idéias dos sentidos implica que elas (“ou seus arquétipos”) têm uma existência distinta das nossas mentes: a independência causal implica independência ontológica. Visto que elas (ou coisas como elas) são idéias, têm de existir noutra mente, a mente que as exibe para nós (II, 211–216). Podemos concluir que “existem durante os intervalos que medeiam entre a minha percepção delas” (ibid. III, 230 ss).
Os críticos têm-se queixado de que com esta concepção de uma ordem da natureza dependente, arquetípica, distante dos perceptores finitos, assim como na sua abordagem da nossa inferência a favor da existência de outras mentes, Berkeley não deixa menos espaço que o realista para o ceticismo. Contudo, Berkeley nunca argumenta simplesmente que o “materialismo” deixa espaço à dúvida, mas antes que postula algo contraditório, indeterminado, ou, em qualquer caso, ininteligível. São estas desvantagens da matéria, nenhuma das quais (defende Berkeley) afeta o espírito e as suas idéias, que, na sua concepção, encorajam o ceticismo (ibid. III, 231–234).