“Memorandum. Há muito que recomendar e aplaudir na filosofia experimental”, afirmou Berkeley nos seus cadernos de anotações pessoais (C 498). Esta recomendação não era só de fachada. O interesse de Berkeley pela ciência experimental, ou filosofia experimental como a denominava, segundo o uso normal nos séculos XVII e XVII, foi intenso e genuíno. A sua grande admiração por Newton é manifestada inúmeras vezes nos seus escritos, e não somente os destinados a publicação. Berkeley havia estudado os Principia de Newton — uma obra muito difícil, que poucos poderiam pretender compreender com alguma facilidade — e provavelmente a Óptica. Nunca duvidou de que as descobertas experimentais de Newton eram, na sua maioria, verdadeiras e acréscimos valiosos ao conhecimento humano. Assim, no geral, Berkeley não desejava argumentar contra os cientistas experimentais; muitos dos seus esforços foram direcionados para mostrar que as descobertas da ciência poderiam e deveriam ser interpretadas de uma maneira que estivesse em perfeita consonância com a sua filosofia e não exigissem uma crença no mundo material independente. A crítica do trabalho experimental de Newton restringe-se quase inteiramente à pequena parte em que Newton afirma encontrar bases empíricas para afirmar a existência do espaço e movimento absolutos. Berkeley também criticou a matemática que Newton tinha desenvolvido para expor os seus argumentos, em especial a teoria dos fluxões, mas este tema será discutido num capítulo posterior. As partes mais importantes das obras de Berkeley a consultar sobre a filosofia experimental são os Princípios 101–117 e o ensaio De Motu (Sobre o Movimento), foi publicado originalmente em latim, mas do qual existem traduções disponíveis. Há também, como veremos, algumas observações importantes sobre o tema na obra tardia de Berkeley intrigantemente intitulada Siris: A Chain of Philosophical Reflexions and Inquiries Concerning the Virtues of Tar-Water [Siris: Uma Cadeia de Reflexões e Investigações Filosóficas Sobre as Virtudes da Água de Alcatrão].
O título completo da obra a que chamamos Princípios termina com a expressão: “na qual se investiga as principais causas dos erros e dificuldades nas ciências e os fundamentos do ceticismo, do ateísmo e da irreligião”. O ceticismo que Berkeley tinha em mente não era tanto a dúvida religiosa, a que na expressão acima chama irreligião, mas a dúvida sobre a possibilidade do conhecimento sobre o mundo, ou o ceticismo científico. O lugar mais óbvio para a dúvida é sobre a realidade do mundo físico. Berkeley alega que na sua perspectiva o mundo físico é imediatamente acessível aos sentidos, de modo que não existe motivo para duvidar da sua existência; mas se o mundo for uma matéria imperceptível e inimaginável, distinto das idéias que temos, então há motivo para duvidar da sua existência. Como vimos, a doutrina oficial de Locke de que “uma vez que a mente […] não tem objetos imediatos a não ser suas próprias idéias […] é evidente que nosso conhecimento diz respeito apenas a elas” é claramente incompatível com o conhecimento de uma realidade por trás de nossas idéias; quando no Livro IV, Capítulo 4 de seu Ensaio, intitulado “Da realidade do conhecimento humano”, Locke tenta responder à objeção de que segundo os seus princípios “o conhecimento colocado nas idéias pode ser apenas fantasia”, o argumento é notoriamente fraco, sendo pouco mais que a alegação de que as nossas simples idéias têm de ter alguma causa.
Além disso, se ignorarmos as dúvidas sobre a realidade da matéria, o próprio Locke insiste que o conhecimento, nas ciências físicas, é virtualmente impossível. Na opinião de Locke, a verdadeira natureza, ou essência real, das coisas físicas, depende da organização dos átomos básicos que as compõem; mas uma vez que não temos olhos microscópicos, como ele mesmo afirma, nunca podemos conhecer tal organização e, portanto, nunca sabemos por que os corpos são como são. E, continua, mesmo que pudéssemos observar estas partes insensíveis,
“estamos tão longe de conhecer que figura, tamanho ou movimento das partes produz uma cor amarela, um sabor doce ou um som agudo, que por nenhum meio podemos conceber como um tamanho, figura ou movimento de algumas partículas pode de algum modo produzir em nós a idéia de cor, sabor ou som qualquer. Não existe conexão concebível entre uma coisa e outra. Em vão, portanto, nos esforçaremos para descobrir por meio de nossas idéias (a única verdadeira via do conhecimento certo e universal) quais das outras idéias se encontrarão constantemente unidas com a nossa idéia complexa de qualquer substância”. (Locke, Ensaio, 4.3.14)
O primeiro ponto de Berkeley em defesa da sua concepção de ciência é, na verdade, um ataque preventivo ou destrutivo. Se o mundo físico for uma realidade transcendente inacessível à nossa investigação científica, o conhecimento é impossível. Uma vez que, na concepção de Berkeley, o mundo físico é diretamente acessível, a possibilidade de conhecimento sobre o mundo não enfrenta esses problemas básicos.
A teoria de Locke não apenas tornou a realidade física inacessível; também atribuiu poder causal a esta organização de partículas inacessível. Berkeley negou toda eficácia causal a seja o que for no mundo físico, o qual era, na sua análise, basicamente composto apenas de idéias. Os parágrafos 25 e 26 dos Princípios contêm a afirmação mais clara dos fundamentos que tinha para esta concepção, a qual é revelada nas seguintes citações desses parágrafos:
“Todas as nossas idéias […] são visivelmente inativas […] De tal sorte que uma idéia […] não pode produzir ou realizar qualquer alteração noutra idéia […] Pois, uma vez que estas e cada uma de suas partes existem somente na mente, é preciso concluir que nada existe nelas a não ser o que é percebido. Todavia, quem prestar atenção a idéias, seja as dos sentidos ou da reflexão, não perceberá nelas qualquer poder ou atividade; […] De onde se segue claramente que a extensão, forma e movimento não podem ser causas das nossas sensações […] Percebemos uma sucessão contínua de idéias”.
Uma vez que essas idéias não se causam entre si, têm de ser causadas pelo único tipo de agente que conhecemos: um espírito.
É interessante comparar esta afirmação com a opinião de Hume. Hume concorda com Berkeley que nada podemos encontrar na natureza além da sucessão; não existe na natureza qualquer relação causal além da sucessão. Mas enquanto Berkeley prossegue afirmando que temos, portanto, de localizar o verdadeiro poder causal noutra parte, nos espíritos, Hume toma uma direção diferente; uma vez que não podemos descobrir qualquer poder causal na natureza além da sucessão, devemos analisar a causalidade em termos de sucessão; a causalidade nada mais é do que a sucessão regular que observamos na natureza; a conjunção constante das idéias de que temos experiência produz uma expectativa inevitável, na nossa mente, de continuidade e regularidade, e transferimos isto de maneira inevitável para o domínio da natureza, por uma espécie de ilusão. Aqui, Hume está levando o curso da análise reducionista iniciado por Berkeley mais longe do que este (a quem Hume admirava muito) estava preparado para ir. Parte da explicação é que Hume negou a afirmação de Berkeley, vital para a sua metafísica, de que poderia distinguir uma genuína atividade nos espíritos indo além da mera sucessão; teremos de atentar neste problema com cuidado quando examinarmos cuidadosamente a explicação que Berkeley dá dos espíritos e seus poderes (Cap. 5).
A ciência, então, para Berkeley, não está investigando uma natureza além de nossas idéias ou descobrindo conexões causais, seja entre a matéria e a matéria, seja entre a matéria e as idéias, ou entre idéias e idéias. Qual então é o papel do cientista ou do filósofo experimental? A resposta básica de Berkeley é dada no parágrafo 105 dos Princípios:
“Portanto, se considerarmos a diferença existente entre os filósofos naturais e os demais homens no tocante ao seu conhecimento dos fenômenos, descobriremos que esta consiste não num conhecimento mais exato das causas eficientes que os produzem, pois pode não haver qualquer outra senão a vontade de um espírito, mas somente numa maior extensão da compreensão, por meio da qual descobrem analogias, harmonias e concordâncias nas obras da natureza, e explicam os efeitos particulares, ou seja, reduzem-nos a regras gerais”.
Neste ponto, devemos insistir mais uma vez na distinção entre as teorias analíticas de Berkeley e sua metafísica. Metafisicamente, a explicação de por que o mundo é como é, o agente causal que o mantém como é, o fundamento que nos permite perguntar por causas finais (para que existe?) na natureza, tem de ser um espírito, a quem Berkeley chama Deus. Metafisicamente, portanto, os cientistas estão investigando a obra de Deus, lendo a caligrafia divina, como Berkeley às vezes afirma, descobrindo os desígnios de Deus. Mas, dada essa base metafísica, temos de oferecer uma abordagem analítica diferente do que o cientista está fazendo. Metafisicamente, todos os cientistas estão investigando a atividade de Deus, mas a análise tem de permitir que um esteja investigando uma base e outro um ácido; metafisicamente, a explicação de cada fenômeno é Deus, mas temos de fornecer uma explicação analítica da ciência que permita que a explicação de um fenômeno natural, muitas vezes, seja muito diferente da explicação de outro.
Se pedirmos agora uma explicação da análise básica de Berkeley sobre a natureza da ciência empírica, a resposta é que o cientista está descobrindo regularidades na sucessão das nossas idéias. Ao fazê-lo, não está fazendo algo diferente em princípio do que todos os homens fazem quando aprendem com a experiência. Está simplesmente fazendo-o de uma maneira muito mais sistemática. Mas Berkeley também fornece uma abordagem analítica da explicação científica, que, em termos simples, é a redução a regras gerais. Podemos de maneira útil esclarecer e explicar essa doutrina com o uso de um dos próprios exemplos de Berkeley.
Que as maçãs, e não somente as maçãs, caem no chão, que as marés são influenciadas pela Lua, que a Lua gira em torno da Terra e que os planetas giram em torno do Sol — esses e outros fenômenos eram todos bem conhecidos e familiares aos homens antes de Newton. O que Newton fez não foi descobrir esses fenômenos, mas explicá-los. Explicou-os mostrando que todos eram casos especiais de uma única regularidade: a atração gravitacional. Ao contrário de Newton, mas como muitos dos primeiros e mais próximos discípulos de Newton, podemos ser tentados a considerar isso como explicação por referência a uma causa eficiente, uma força chamada força de gravidade. Mas, como causa eficiente, a força de gravidade seria uma coisa simples que não sabemos o quê é; dizer que as maçãs aceleram em direção à Terra a uma velocidade 32 pés/s² porque há uma força que as acelera a essa velocidade é discurso vazio, como seria dizer que a gasolina num motor de combustão interna se inflama porque tem um poder de combustão. O que Newton fez, para explicar estes e outros fenômenos relacionados, foi mostrar que eram todos casos de poucos princípios básicos. A atração gravitacional é um conceito que tem poder explicativo porque é uma maneira abreviada de se referir a uma característica comum revelada por todos esses fenômenos, e não porque nomeie uma causa eficiente deles. Assim, a explicação não é nem a apresentação de uma causa eficiente, nem a mera descrição, mas, nas palavras de Berkeley, a “redução a regras gerais”.
Se nos voltarmos para o De Motu, encontraremos uma amplificação desta análise da ciência, uma análise que nos últimos anos tem atraído mais atenção do que anteriormente, visto que os filósofos têm notado nela semelhanças com a análise positivista da natureza da ciência mecânica do filósofo e físico austríaco do século XIX, Mach. No De Motu, Berkeley está principalmente preocupado com a ciência da mecânica, a única parte da ciência que na sua época tinha conseguido uma formulação e sistematização matemática. Na mecânica usam-se constantemente termos como “força”, “massa”, “momento” e “energia”; diremos então que ilegítimo fazê-lo? Como podemos evitar fazê-lo, se começarmos a partir da base imaterialista de Berkeley? Dado que o De Motu não é tão facilmente acessível com os Princípios e os Diálogos, vejamos a solução de Berkeley até onde é possível numa tradução das suas próprias palavras.
“Força, gravidade, atração e outros termos deste gênero são úteis para raciocínios e cálculos relativos ao movimento e aos corpos em movimento, mas não para compreender a natureza simples do próprio movimento ou para designar tantas qualidades diferentes”. (M 17)
“Para determinar a verdadeira natureza do movimento, será de grande utilidade fazer uma distinção, em primeiro lugar, entre os modelos matemáticos e a natureza das coisas; em segundo lugar, abster-se de abstrações; em terceiro, considerar o movimento como algo sensível, ou pelo menos imaginável; e limitar-se às medidas relativas. Se o fizermos, todos os famosos teoremas da Filosofia Mecânica pelos quais os segredos da natureza são revelados e o sistema universal é reduzido ao cálculo humano, permanecerão intocados, e o estudo do movimento será libertado de mil pormenores, sutilezas e idéias abstratas”. (M 66)
“Todas as forças atribuídas aos corpos são hipóteses matemáticas, exatamente como as forças de atração dos planetas e do Sol. Além disso, as entidades matemáticas não têm essência firme na natureza das coisas, antes dependem da noção que tem quem as define. Por isso uma mesma coisa pode ser explicada de diferentes maneiras”. (M 67)
“Os princípios mecânicos e as leis universais do movimento, felizmente descobertos no século passado, tratados e aplicados com o auxílio da Geometria, introduziram uma extraordinária clareza na ciência. Mas os princípios metafísicos e as verdadeiras causas eficientes do movimento e da existência dos corpos ou das propriedades dos corpos não dizem respeito à mecânica ou ciência experimental”. (M 41)
Assim, encontramos Berkeley fornecendo uma análise completamente positivista da ciência, enquanto mantém uma explicação teísta a nível metafísico. Na medida em que a ciência está falando sobre fenômenos observados (idéias sensíveis) ou, pelo menos, de objetos da experiência possível (ou imagináveis), podemos tomá-la literalmente. Berkeley não deseja duvidar da existência de partículas diminutas, consideradas, da forma como ele considera todos os corpos, possibilidades permanentes de sensação. Mas na medida em que a ciência deseja falar de corpos inerentemente imperceptíveis, isso é legítimo para fins computacionais, mas não deve ser tomado literalmente.
O que Berkeley tem em mente quando fala de modelos ou hipóteses matemáticas que não têm existência real e que dependem, com relação ao seu conteúdo, da definição arbitrária do cientista, pode ser explicado por referência a um exemplo que ele próprio usa em Siris. Ptolomeu, na sua astronomia geocêntrica, explicou o movimento dos corpos celestes por meio de uma teoria dos ciclos e epiciclos (círculos girando ao redor de um círculo). Fê-lo de maneira tão bem-sucedida que os usuários da astronomia heliocêntrica não foram bem-sucedidos em explicar significativamente melhor os movimentos das estrelas, ou em calcular os seus cursos, até aproximadamente à época de Newton. Ora, a hipótese dos epiciclos pode ser indefinidamente aperfeiçoada para explicar com mais precisão os movimentos celestes. Será, então, correta a hipótese heliocêntrica ou a geocêntrica? Existem ou não existem epiciclos? A resposta de Berkeley a esta questão será que ambas as teorias são hipóteses matemáticas e, na medida em que respondem igualmente bem as questões empíricas sobre o que observaremos, não faz sentido perguntar qual é verdadeira. É legítimo falar de epiciclos, ou gravidade, desde que compreendamos que fazer isso é apenas adotar um quadro de referência de cálculo em vez de outro. Aqui estão as próprias palavras de Berkeley sobre este tema:
“Uma coisa é chegar às leis gerais da natureza a partir de uma contemplação dos fenômenos; outra é conceber uma hipótese, e a partir daí deduzir os fenômenos. Não se pode, portanto, considerar que quem supõe epiciclos, e por meio deles explica os movimentos e posições dos planetas, descobriu os princípios verdadeiros de fato e na natureza. E, embora possamos a partir de premissas inferir uma conclusão, não se segue que podemos argumentar reciprocamente, e a partir da conclusão inferir as premissas”. (S 228)
Há muita coisa interessante em Siris para o estudioso da filosofia da ciência de Berkeley, especialmente nos parágrafos 247 e seguintes.
Berkeley, então, pensou que poderia fornecer uma análise adequada da ciência em termos da sua visão fenomenalista básica. Esta análise tem de ser completada, segundo Berkeley, por uma metafísica. Como não há agente causal no interior da natureza, temos de explicar a regularidade e a própria existência do mundo da natureza por um agente situado fora dela, que é, segundo Berkeley, um espírito incomparavelmente poderoso a que chama Deus. A perspectiva de Berkeley sobre os espíritos e sobre o Espírito Infinito, da qual depende a sua explicação metafísica da possibilidade da ciência, será examinada em detalhe mais adiante (Cap. 5). Mas podemos considerar agora uma conseqüência desta metafísica: a defesa de Berkeley da busca de causas finais na ciência.
Platão e Aristóteles, e os seus seguidores medievais, tinham insistido sobre a importância das causas finais na ciência. Uma parte importante do entendimento, por exemplo, do coração ou do fígado, diriam, é entender para que servem. Até onde exatamente a explicação teleológica devia ser procurada não era claro; o próprio Aristóteles afirmou explicitamente que não havia explicação teleológica de fatos como a queda da chuva num lugar e tempo particulares. Mas, certamente, alguma explicação teleológica fazia parte da ciência. Que a explicação teleológica era possível, não foi posto em dúvida pelos filósofos cristãos e pelos cientistas do final do século XVII, mas o próprio devoto Boyle estabeleceu que não deveria haver qualquer referência a Deus na explicação dos fenômenos particulares. Deus criou a matéria que se comporta de acordo com leis imutáveis, e era ilegítimo explicar o comportamento de qualquer coisa em ciência exceto por referência à matéria e às leis universais do seu comportamento. Mas Berkeley não estava satisfeito com isso. Seria um behaviorista extremo quem rejeitasse a explicação teleológica da atividade humana inteligente. Perguntar para que fim você ou eu agimos de certa maneira parece obviamente justificado e uma resposta é certamente necessária se quisermos compreender tal ação. Mas se considerarmos que o mundo natural é a atividade direta e imediata de Deus, certamente a mesma questão teleológica será oportuna aqui, mesmo que nem sempre possamos encontrar a resposta. Por que o fato de Deus agir de uma maneira confiantemente previsível proibiria a questão? Não que Berkeley pretendesse que as questões sobre Deus fossem consideradas como parte da ciência natural; sabemos que não o pretendia. Mas pensava que a propriedade metafísica de falar dos propósitos de Deus significava que era apropriado perguntar no seio da ciência para que fim o fígado ou o coração funcionam tal como funcionam, e considerar possível responder a essas questões. O cientista moderno parece preconizar a doutrina de Boyle em vez da de Berkeley sobre este assunto; mas saber se algum dia deixaremos, de fato, de perguntar e responder a tais perguntas teleológicas sobre os fenômenos naturais, ou alguns deles, é outra questão.
Até aqui Berkeley apresentou sua interpretação das atividades de Newton, não as condenando. Censurou os seguidores de Newton por considerarem a atração uma entidade real para explicar o movimento, mas isentou explicitamente Newton desse erro. Mas opôs-se a algumas das doutrinas de Newton, e isto no que diz respeito a temas sobre os quais os cientistas modernos estão mais propensos a concordar com Berkeley do que com Newton. Em particular, Newton havia distinguido tempo e espaço absoluto de tempo e espaço relativo, num célebre escólio nos Principia:
“O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui sempre igual por si mesmo e por sua própria natureza, sem relação com coisa alguma externa […]
O espaço absoluto, pela sua própria natureza, sem qualquer relação com algo externo, permanece sempre semelhante e imóvel”. (Newton, Princípios, Definições, escólios I e II.)
Como pode sequer fazer sentido falar do tempo que flui com uma velocidade constante ou inconstante, Newton não nos diz. Mas não só afirma ser capaz de fazer a distinção conceitualmente entre, digamos, o nosso movimento relativo à Terra e o movimento da Terra através do espaço absoluto, como também apresenta o famoso experimento do balde como uma prova empírica da diferença entre ambos. Afirma que o comportamento variável da água num balde que é subitamente posto em movimento circular, em que a superfície gradualmente se torna côncava, tem de ser analisado por meio de uma distinção entre o movimento da água em relação ao balde e seu movimento absoluto.
Entre os cientistas, a autoridade de Newton era tão grande que estas distinções não foram contestadas até ao final do século XIX, quando Clerk Maxwell, Mach e depois Einstein as demoliram provavelmente para sempre. Leibniz atacou-as numa famosa correspondência com Clarke, um seguidor próximo de Newton, mas sem muito efeito. Berkeley também descobriu que tinha de atacar Newton sobre este ponto, pois um espaço real e absoluto, que Newton estava mesmo hereticamente disposto a chamar sensorium, ou órgão da percepção, de Deus, não poderia de modo algum ser incorporado na abordagem fenomenalista da ciência. O ataque de Berkeley encontra-se nos parágrafos 110–118 dos Princípios; e é o que se esperaria. Afirma que os conceitos de espaço e tempo absolutos são vazios, e que o que Newton considera como casos onde a distinção entre o absoluto e o relativo é necessária mostram-se casos em que temos espaço ou tempo relativos em relação a dois quadros de referência diferentes. Berkeley oferece a solução moderna para o experimento do balde de Newton, afirmando que aquilo que Newton denomina movimento absoluto é na verdade movimento relativo às chamadas estrelas fixas. É difícil não aceitar que Berkeley estava completamente certo sobre este ponto, e difícil entender por que os seus argumentos foram ignorados tanto tempo.
A filosofia da ciência de Berkeley era na sua época totalmente inédita. Poucos filósofos, se é que houve algum, concordaram com ele até à ascensão do positivismo, no final do século XIX, mas muitos filósofos e não poucos cientistas aceitaram posições não muito diferentes da sua no século XX. Quando a Física moderna começou a atribuir às suas partículas básicas um caráter cada vez mais diferente do de todos os objetos com os quais estamos familiarizados na experiência, tornou-se cada vez mais satisfatório dizer que, apesar de os cálculos matemáticos levarem a previsões corretas, não devemos pedir mais, e devemos considerar as desconcertantes descrições das partículas fundamentais como o resultado inevitável de tentar expressar não matematicamente o que só pode ser expresso em termos matemáticos. Não devemos considerar um modelo matemático uma descrição factual. Talvez esta seja uma visão mais simples que vê muito claro uma distinção entre modelo ou hipótese matemática e a mera descrição factual; mas certamente não podemos considerar as opiniões de Berkeley o sonho excêntrico de um metafísico louco.