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Crítica
16 de Junho de 2017   Metafísica

Realismo

Michael Dummett
Tradução de Nelson Gonçalves Gomes

Há indícios históricos de que realmente existiu um nobre chamado Rolando, que serviu sob Carlos Magno. Suponha, porém, que isso é equivocado e que não existiu uma pessoa como Rolando. Sob tal suposição, o que significa o nome “Rolando” se alguém, pretendendo formular um enunciado historicamente sério, diz “Foram os bascos que atacaram Rolando e não os muçulmanos”? Ele [o nome “Rolando”] refere-se a alguma pessoa possível, embora não real? Existem pessoas e objetos possíveis, embora não reais? Se elas não existem, então, presumivelmente, “Rolando” não se refere a nada nos lábios do falante. Nesse caso, porém, como pode ser dotado de significado aquilo que ele diz? (Este é o problema posto por Russell quando introduziu a sua teoria das descrições.)

Existem realmente as entidades da ciência como fótons e quarks? Ou serão elas entidades meramente hipotéticas, que formam parte de um mecanismo intelectual voltado para a previsão de resultados dos nossos experimentos de laboratório? Aquela primeira opinião é usualmente chamada de “realismo científico”; a outra é o “instrumentalismo”. Embora já seja passado, o passado retém alguma forma de existência que confira verdade ou falsidade aos nossos enunciados a seu respeito? Ou tais enunciados se tornam verdadeiros ou falsos (quando o são para um desses casos) apenas pelas nossas memórias e por traços de eventos passados a serem achados no presente? Enunciados a respeito do futuro são determinadamente verdadeiros ou falsos, de acordo com o que irá acontecer mais tarde? Ou enunciados no tempo futuro devem ser avaliados como verdadeiros ou falsos tão somente consoante a sua concordância frente às nossas intenções atuais e às nossas presentes tendências? Quando falamos sobre as emoções, imagens mentais e sensações de outras pessoas, ou sobre as suas intenções, atitudes e crenças, estamos nos referindo àquilo que ocorre no contexto do ambiente das suas mentes, mesmo que seja indiscernível por outro qualquer? Ou estamos meramente apondo interpretações aos seus comportamentos, tal como diria a teoria filosófica conhecida por “behaviorismo”? Enunciados matemáticos tornam-se verdadeiros ou falsos por referência às constituições de estruturas abstratas de objetos abstratos, relacionadas de maneiras particulares? Ou são as estruturas e os objetos matemáticos tão somente o produto das mentes dos matemáticos, nas quais habitariam, ao invés de situar-se num reino abstrato? Aquela primeira opinião é conhecida como platonismo e a outra como construtivismo. Há realmente um mundo exterior, mobiliado com objetos materiais que existem de modo independente: árvores, rios, montanhas, insetos, raposas, casas, estradas, o sol, a lua, estrelas e galáxias? Ou, como ensina a doutrina outrora muito popular conhecida por “fenomenismo” (“phenomenalism”), os objetos materiais são apenas constructos nossos, a partir de impressões (visuais, auditivas, tácteis, etc.) nos nossos sentidos, que postulamos para obtermos o domínio das regularidades exibidas por aquelas impressões?

Todas estas questões filosóficas altamente tradicionais são metafísicas: elas indagam acerca do que a realidade é composta. Além disso, todas elas são questões sobre um ou outro tipo de realismo: sobre objetos possíveis, sobre teoria científica, sobre passado e futuro, sobre estados mentais e eventos, sobre matemática, sobre objetos materiais. Apesar das diferenças temáticas, há fortes semelhanças entre argumentos empregados tanto na defesa quanto no ataque em cada um desses casos. Como podemos resolver qualquer destas disputas?

Cada uma das disputas tem a ver com a interpretação de certas classes de enunciados: o realista defende a tese de que tais enunciados devem ser assumidos pelo seu valor nominal; o oponente objeta que a verdade ou falsidade [dos enunciados] não resulta do modo sugerido pela sua composição, mas sim por algo diverso. Existem enunciados que contenham um nome próprio vazio ou outro termo acerca de um objeto possível por ele denotado, ou eles devem ser tidos como verdadeiros ou falsos (ou nem um nem outro) de acordo com a situação das coisas no mundo real? Os enunciados teóricos da ciência têm a ver com as entidades teóricas por eles referidas ou quantificadas, ou devem eles ser julgados consoante o seu êxito em possibilitar-nos previsões observáveis resultantes de experimentos? Enunciados no tempo pretérito relacionam-se a reino de realidade que retrocedeu para aquém da nossa observação, ou são eles formas disfarçadas de discurso sobre memórias atuais e traços presentes? Enunciados no tempo futuro relacionam-se a um reino da realidade que ainda não se nos apresentou, ou têm eles a ver com intenções e tendências atuais? Enunciados sobre eventos e estados mentais descrevem condições nos contextos de mundos privados para cada um de nós, ou são eles maneiras oblíquas de discurso acerca dos nossos comportamentos? Enunciados matemáticos captam o modo como as coisas estão num setor da especial da realidade, que não é físico nem modificável, ou eles têm a ver com construções que os matemáticos podem elaborar? Enunciados sobre o mundo externo e físico tornam-se verdadeiros ou falsos pela disposição de objetos materiais existentes independentemente de nós e do nosso conhecimento, ou são eles inteiramente baseados nas nossas impressões sensíveis?

Consequentemente, as respostas a questões metafísicas sobre esta ou aquela variedades de realismo voltam-se à interpretação correta de uma ou outra classe de enunciados. Nesses termos, a metafísica repousa sobre a semântica. Por quê? Wittgenstein abre o seu Tractatus Logico-Philosophicus declarando que o mundo é a totalidade dos fatos e não das coisas. A composição da realidade depende não apenas dos objetos nela contidos, mas sim de que fatos lhes são referentes. Fatos são proposições verdadeiras; logo, a noção fundamental da metafísica é a de verdade. Qualquer teoria semântica ou teoria do significado tem de produzir, e deve fazê-lo, um conceito de verdade. Isso não é o mesmo que dizer que cada teoria semântica deva usar a noção de verdade atribuindo significados às frases com as quais ela se defronte. A semântica clássica das condições de verdade procede dessa maneira: ela trata o significado de uma frase como sendo determinado pelas condições segundo as quais o proferimento [da frase] é verdadeiro. Mas a semântica dos mundos possíveis, quando usada em frases que envolvam modalidades como necessidade e possibilidade, não emprega a noção de ser verdadeiro simpliciter: bem ao contrário, ela usa o que podemos chamar de sua noção central, que é ser verdadeiro num mundo possível. A semântica intuicionista para enunciados matemáticos não usa sequer essa noção relativizada de verdade como sua noção central. Ela caracteriza o entendimento de um enunciado matemático como a habilidade de reconhecer a construção de uma prova para ele. Portanto, ela apresenta o significado de um enunciado desse tipo ao estabelecer o que conta como prova do enunciado, pressupondo já ser conhecido o que seja a prova de qualquer subenunciado que ele possa conter.

Uma teoria semântica, entretanto, precisa de um conceito de verdade por duas razões. A primeira é caracterizar [o que seja] inferência válida. Uma inferência dedutiva é válida se transmite das premissas à conclusão alguma propriedade desejável de enunciados. Seja lá qual for a propriedade escolhida por uma teoria semântica para desempenhar esse papel crucial, ela pode ser chamada de concepção de verdade peculiar a essa teoria.

Para entender a segunda razão pela qual uma teoria semântica tem de incorporar uma concepção de verdade, nós devemos distinguir dois componentes do significado de uma frase. Se uma frase é proferida assertoricamente de maneira independente (on its own), o ouvinte que a aceita como correta irá saber algo a respeito do mundo (ou, se a asserção não era correta, ele irá supor que aprendeu algo). O aspecto característico do significado de uma frase que determina o que tal ouvinte julga ter aprendido pode ser chamado de seu conteúdo assertórico. A asserção está correta se o falante está habilitado (was entitled) a fazê-la, ou, pelo menos, se tal habilitação existe; se ela não existe, a asserção não está correta. Sob certas circunstâncias, nós podemos dizer que o conteúdo assertórico de uma frase está satisfeito se o falante está correto em fazer a asserção proferindo-a de maneira independente. Porém, uma frase nem sempre é usada de maneira independente: ela pode ser jungida a um operador, como negação ou indicador temporal, ou, ela pode ser subfrase de uma frase complexa, como um condicional ou uma disjunção. Não é apenas o seu conteúdo assertórico que determina a contribuição de uma frase ao significado de outra frase formada de uma destas maneiras. Chamaremos de sentido ingrediente o componente do seu significado que determina isso. O que uma teoria semântica procura caracterizar é o sentido ingrediente de cada frase de uma linguagem. Duas frases podem ter o mesmo conteúdo assertórico, mas diferir quanto ao sentido ingrediente. Suponha que você esteja falando com alguém ao telefone e que ele diga “Está chovendo aqui” ou “Está chovendo onde eu estou”. Não importa qual das duas [é proferida], pois você aprenderá a mesma coisa, de vez que essas frases têm o mesmo conteúdo assertórico. Elas não têm, entretanto, o mesmo sentido ingrediente: se ambas forem jungidas ao operador “sempre”, nós obtemos duas frases — “Sempre está chovendo aqui” e “Sempre está chovendo onde eu estou” — sendo que estas têm significados bem diferentes. Podemos estipular que um enunciado é verdadeiro se o seu conteúdo assertórico é satisfeito. Nós precisamos dessa noção para explicar a significação de uma asserção feita quando uma frase é proferida por si mesma. Essa é a mesma noção que aquela referida quando se caracteriza a validade de uma inferência: tudo o que precisamos saber é que estamos habilitados a asserir a conclusão, se estamos habilitados a asserir as premissas.

Naturalmente, a concepção de verdade pertencente a uma teoria semântica qualquer será conectada à noção (seja qual for) que ela vier a tomar como central, no sentido atrás explicado. Teorias semânticas diferentes irão incorporar diferentes concepções de verdade. Por isso mesmo, os bicondicionais formados de acordo com o padrão “‘Rolando está morrendo’ é verdadeiro se, e somente se, Rolando está morrendo”, que, desde Frege, muitos filósofos analíticos tomam como constitutivos da noção de verdade, não se mantêm adequadamente sob quaisquer concepções de verdade. A partir da definição de conteúdo assertórico, segue-se que o conteúdo assertórico de “‘Rolando está morrendo’ é verdadeiro” deve ser o mesmo que o conteúdo assertórico de “Rolando está morrendo”. Porém, na frase bicondicional acima citada, a frase “Rolando está morrendo” é subfrase de outra mais complexa. Logo, o seu sentido ingrediente está envolvido, ao invés do seu conteúdo assertórico. O bicondicional implicará todos os outros bicondicionais nos quais ambos os lados do original tenham sido submetidos à mesma operação, tal como: “‘Rolando está morrendo’ não é verdadeiro se, e somente se, Rolando não está morrendo” e “‘Rolando está morrendo’ seria verdadeiro se, e somente se, Rolando estivesse morrendo”. Estas últimas, porém, não se mantêm sob quaisquer concepções de verdade.

A concepção de verdade que uma teoria semântica corporifica é também a sua relação com respeito à metafísica: é o ponto no qual uma visão metafísica brota de uma teoria do significado. Realmente, é em termos semânticos que nós podemos dizer com mais cuidado o que constitui uma interpretação de alguma dada classe de enunciados e, portanto, o que constitui o realismo com respeito a certos assuntos ou setores da realidade. Uma interpretação realista estrita de uma classe de enunciados é do tipo cuja semântica é tomada de maneira clássica condicional-veritativa, com dois valores de verdade, verdadeiro e falso, relativamente aos quais vale o princípio da bivalência, e os enunciados são interpretados pelo seu valor nominal, no sentido de que todas as expressões que neles ocorrem com a forma aparente de termos singulares são interpretadas como denotando objetos no contexto do domínio (ou universo do discurso, conforme a terminologia antiquada). Bivalência é o princípio de que todo enunciado é determinadamente ou verdadeiro ou falso, sem qualquer dependência do nosso conhecimento ou capacidade de conhecer. Nós chegamos ao realismo concernente a objetos possíveis graças à interpretação de todos os termos como tendo uma denotação, mesmo que não existam objetos reais a serem por eles denotados. O caminho de Russell para escapar dessa variedade de realismo consistiu em negar às descrições definidas e aos nomes próprios comuns o status de termos singulares genuínos. Frases nas quais eles ocorressem deveriam ser analisadas de maneira a que nenhum termo singular desse tipo viesse a restar.

Apenas leves desvios do realismo estrito resultam, a partir de modificações menores dessa semântica. [Tal é o caso], por exemplo, se admitirmos que enunciados tenham um (ou mais de um) valor intermediário, ou que não tenham valor de verdade nenhum, mas continuemos a exigir que todo enunciado tenha, determinadamente, um dentre aqueles valores de verdade, ou, então, que, determinadamente, deixe de ter um dentre eles. Tal foi o caminho trilhado por Frege para evitar o realismo sobre objetos possíveis: afirmar que a frase “Rolando soou a sua corneta” expressa um pensamento, ainda que sem valor de verdade, mesmo que não exista uma pessoa como Rolando. Um realismo modificado dessa maneira, usualmente, não admite bivalência, mas pode-se exigir que ele admita a lei do terceiro excluído, para ser ainda considerado como realismo. A lei do terceiro excluído estabelece que, para qualquer enunciado “A” dotado de valor de verdade, a disjunção “A ou não A” deve ser verdadeira. Essa lei pode valer mesmo se o princípio de bivalência não vale. Considere, por exemplo, uma semântica para alguma teoria matemática, como a teoria dos conjuntos, na qual a noção central é ser verdadeiro num modelo da teoria. Relativamente a cada modelo, a semântica tem dois valores. A noção adequada de verdade será aquela de ser verdadeira em qualquer modelo; a [correspondente noção] de falsidade [será aquela de ser] falsa em qualquer modelo. De maneira simples, se a teoria matemática tem modelos não isomórficos, o princípio de bivalência falhará. Porém, para cada enunciado da teoria, a lei do terceiro excluído será mantida, porquanto ela será mantida em cada modelo e, por conseguinte, será (absolutamente) verdadeira.

A maior parte das teorias, como o fenomenismo e o behaviorismo, por exemplo, vislumbradas pelos filósofos para resistir a uma ou outra forma de realismo têm sido viciadas por dois erros. Em primeiro lugar, os filósofos tentaram reduzir a enunciados de algum outro tipo aqueles enunciados de uma classe que eles não querem interpretar realisticamente. Isto é: [eles tentaram] traduzir uns nos outros. Tais tentativas de tradução falharam invariavelmente. Em segundo lugar, eles continuaram a manter uma lógica de dois valores, e mesmo o princípio de bivalência, para os enunciados que eles tentavam reduzir a outros, mesmo que qualquer justificação para eles tivesse evaporado. O primeiro passo na redução tem sido traduzir enunciados para os quais não haja indícios diretos do tipo favorecido para aquilo que se chama de “condicionais subjuntivos”. Um condicional, subjuntivo é um enunciado da forma “Se A fosse o caso, então B seria o caso”. Digamos que o oposto de um condicional assim é “Se E fosse o caso, então não B seria o caso”. Nesses termos, um fenomenista traduz um enunciado a respeito de objetos materiais não observados num outro da seguinte forma “Se um observador adequado estivesse em tal e tal posição, então ele teria tais e tais impressões visuais”. A correspondente negação seria traduzida em termos do oposto desse condicional. O behaviorista traduz em algo da seguinte forma o enunciado sobre disposições mentais ainda não manifestas: “Se o sujeito estivesse em tal e tal situação, ele iria comportar-se de tais e tais maneiras”. Analogamente, a correspondente negação seria traduzida no condicional oposto. Sob tais traduções, não há qualquer garantia (warrant) para manter bivalência com respeito ao enunciado original, pois não existe garantia geral nenhuma de que um ou outro de qualquer par de condicionais subjuntivos opostos deva vigorar aceitavelmente. Frequentemente, nós olhamos para trás sobre escolhas feitas em algum estágio das nossas vidas e cogitamos como as coisas teriam sido, se tivéssemos feito alguma opção diferente. Entretanto, não é preciso que haja alguma resposta para tal questão. Pode não existir nenhum condicional que nos dê uma resposta verdadeira.

Apenas uma única teoria tradicional repudia alguma variedade de realismo, evitando aqueles erros gêmeos. Ela é o intuicionismo, o programa instituído por L. E. J. Brouwer para remodelar o todo da matemática à base da rejeição de uma interpretação realista de enunciados matemáticos. O intuicionismo não tenta reduzir enunciados matemáticos a enunciados de algum outro tipo. Ele tampouco tenta explicar os seus significados (ou aqueles das constantes lógicas) em termos das condições para que um enunciado seja verdadeiro, ou, menos ainda, para que tenha algum valor de verdade intermediário. Ele os explica estabelecendo o que é a prova de um enunciado. Assim a prova de “A ou B” é um meio efetivo de encontrar a prova de “A” ou de “B”; a prova de “Se A, então B” deve ser um meio efetivo de transformar qualquer prova de “A” numa prova de “B”. O intuicionismo não pode aceitar nem o princípio do terceiro excluído nem o princípio da bivalência. Um enunciado do tipo “A ou não A” só pode ser asserido quando tivermos meios para provar ou refutar “A”. Se um enunciado é verdadeiro apenas se para ele existe uma prova, e se é falso tão somente se há uma prova para a sua negação, então não há garantia de que um enunciado arbitrário será verdadeiro ou falso. Por tal razão, a lógica da matemática intuicionista — o sistema de princípios que determina o quem conta como inferência dedutiva válida — é diferente da lógica clássica da matemática tradicional. A matemática intuicionista fornece um padrão para [que se estabeleça] como deve ser uma teoria não realista ou antirrealista.

Por que deveríamos querer construir uma teoria antirrealista? Que razão existe para repudiar o realismo? A razão é que a teoria condicional-veritativa do significado, de longe a mais popular entre os filósofos analíticos, é incoerente. Uma teoria do significado deve incorporar uma teoria do entendimento (understanding), pois entendimento é parte integral da prática de usar a linguagem: duas pessoas podem conversar numa língua que ambos conhecem somente porque cada uma delas entende o que o outro diz. Se o significado de um enunciado é fornecido pela condição para que ele seja verdadeiro, então o entendimento do enunciado deve consistir no conhecimento daquela condição. Mas em que consistirá tal conhecimento? Muitos dos enunciados que formulamos são assim que, em princípio, poderíamos decidir sobre sua verdade ou falsidade, se nos déssemos ao correspondente trabalho. No caso de enunciado do gênero, o conhecimento da condição para que seja ele verdadeiro pode ser considerado como a posse dos meios para decidir sobre o seu valor de verdade. Essa posse não carece ser manifesta por meio da habilidade de descrever o procedimento. Ela está suficientemente manifesta por meio da habilidade de levá-la a cabo.

A linguagem é uma rede tecida densamente. De maneira razoável e natural, tal habilidade pode ser atribuída a alguém que mostre a sua capacidade de decidir a verdade de outros enunciados que contenham as várias palavras presentes no enunciado com o qual estamos ocupados. Mas nem todo enunciado que fazemos, em princípio, pode ser decidido dessa maneira. O nosso entendimento de um enunciado que não é decidível desse modo consiste na nossa habilidade de reconhecer qualquer coisa que mostre ser ele verdadeiro, quando o temos presente mas carecemos, mesmo em princípio, de meios efetivos de nos pôr numa posição na qual possamos reconhecer o enunciado como verdadeiro ou falso. Existem várias operações linguísticas por meio das quais nós podemos compor tais enunciados. Uma delas é a quantificação sobre um domínio infinito, tal como quando quantificamos sobre tempo futuro indefinido, por meio de palavras do tipo “nunca”, “finalmente” e outras do gênero. Uma segunda é, precisamente, o condicional subjuntivo, usado quando explicamos o que é para um objeto ter alguma propriedade: dizemos que, sob tal e tal ambiente, ele reagiria de tal e tal maneira. Não apenas fenomenistas, mas também operacionalistas de linha dura valem-se deste tipo de explicação. Há controvérsia sobre se devemos adicionar àquelas duas operações [alguma] referência ao que é remoto à observação em termos de espaço e tempo.

Mas, numa teoria condicional-veritativa do significado, em que consiste o entendimento que o falante tem de um enunciado, se não temos meios efetivos de decisão? Não pode ser apenas a habilidade de reconhecer, sempre que o tiver presente, qualquer coisa que estabeleça [o enunciado] como verdadeiro ou falso. Isto mostra apenas que ele sabe a condição para que o enunciado seja reconhecidamente verdadeiro (ou falso). O que é para ele [o falante] saber o que é para o enunciado ser verdadeiro naquelas circunstâncias nas quais ele [o falante] não pode dizer se [o enunciado] é verdadeiro ou falso? Como, de acordo com o princípio da bivalência, [o enunciado] deve ser verdadeiro ou falso, não é possível pleitear a existência de circunstâncias sob as quais ele ou sua negação seja verdadeiro, mas não possa ser reconhecido como tal. Num tal caso, o conhecimento do falante a respeito da condição de verdade de um enunciado pode ser explicado apenas em termos de posse de uma concepção interior de tal condição. Deve-se ter em mente que toda a estratégia da filosofia analítica consistiu em dar uma explicação filosófica do pensamento fornecendo uma explicação filosófica sobre como a linguagem funciona. Não obstante, parece agora que o entendimento de uma frase por parte do falante há de ser explicado como consistindo na posse de um pensamento, vale dizer, a concepção da condição para a sua verdade. Toda essa explicação conduz a um círculo.

Este argumento é bastante abrangente e não diz respeito a nenhuma classe particular de enunciados. Ele põe em dúvida o realismo na sua forma mais geral. Por conseguinte, nós buscamos uma alternativa geral. Esta alternativa deve ser modelada na teoria intuicionista sobre o significado de enunciados matemáticos. A garantia de asserção de um enunciado matemático é a prova. Para um enunciado qualquer, a garantia pode ser chamada de “justificação”. Nesses termos, nós podemos usar a expressão “justificacionismo”, para tal generalização da teoria intuicionista do significado para todo o discurso. Sob tal teorização explicativa (account), o significado de um enunciado é dado pela sua mais direta justificação. A maioria dos enunciados não pode ser usada em termos de relatos de observação imediata, mas pode ser estabelecida tão somente por meio de inferências formuladas a partir daquilo que foi observado. Portanto, a justificação terá na grande maioria dos casos usuais um componente inferencial, o que ilustra a dependência dos significados de alguns enunciados relativamente a outros que lhe são conceptualmente anteriores. Porém, é importante que a inferência dedutiva não entra apenas em justificações diretas, pois fornece justificações indiretas, de vez que, como Frege afirmava, ela pode fazer avançar o nosso conhecimento. Numa teoria justificacionista do significado, uma inferência dedutiva é válida se, dado que as premissas estão justificadas, ela fornece um meio efetivo para obter a justificação direta da conclusão. Portanto, nós não precisamos empregar aqueles meios para ter garantia ao asserir a conclusão.

O justificacionismo baseia a sua concepção explicativa de significado no nosso uso da linguagem: primariamente, o que nós aprendemos quando aprendemos a linguagem é aquilo que conta para justificar o que dizemos sobre uma coisa ou outra. Nossas respostas àquilo que outros dizem estão baseadas no seguinte: nós aprendemos a tratar enunciados formulados por outros como se estivéssemos, nós mesmos, justificados em formulá-los. Daí [segue-se] fazer asserções baseadas em testemunho. Portanto, uma teoria justificacionista do significado está muito mais próxima da descrição das práticas linguísticas do que a teoria realista condicional-veritativa. [Uma teoria justificacionista do significado] não pode admitir o princípio da bivalência: para um enunciado, relativamente ao qual não temos meios efetivos para decidir, nós não dispomos de garantia de chegar à justificação do enunciado ou da sua negação. Por conseguinte, a teoria não pode validar o raciocínio clássico, mas apenas o raciocínio conforme a lógica intuicionista. A metafísica resultante é uma que admite a existência de lacunas na realidade. Um enunciado pode não ser verdadeiro nem falso, caso no qual não há fato sobre a questão de se é um ou outro. Porém, nós jamais podemos identificar nenhum enunciado específico como sendo nem verdadeiro nem falso. Nunca pode ser excluída a possibilidade de nós nos depararmos com algo que estabeleça [certo enunciado] como verdadeiro, ou que elimine tal caso.

Que concepção de verdade é apropriada para uma teoria justificacionista? Claramente, um enunciado é considerado verdadeiro precisamente no caso de existir um meio efetivo, em princípio, para encontrar-lhe uma justificação. Entretanto, isso deve ser entendido como significando que há um meio acessível a nós, tal como somos agora, com a nossa peculiar posição no tempo e no espaço, assim como com as nossas capacidades sensoriais e intelectuais de fato existentes? Ou isso deve ser interpretado de maneira mais liberal, de modo a significar que tais meios existem, existiram ou existirão para um observador adequadamente equipado, na posição certa no espaço, no tempo apropriado do presente, passado ou futuro? Várias considerações nos levam a tender na direção de uma dessas alternativas, enquanto que várias outras nos conduzem ao caminho diverso. Amplas consequências metafísicas dependem dessa escolha. Não tentarei resolver a questão aqui. Deixo que leitores sem realismo não arrependido a resolvam por si mesmos.

Michael Dummett
The Nature and Future of Philosophy (Nova Iorque: Columbia University Press, 2010), cap. 14, pp. 125–136. Este livro foi primeiramente publicado numa tradução italiana pela editora Il Nuovo Melangolo, em 2001.
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