Em 1689 e 1690, logo após a revolução de 1688, escreveu Locke os dois Tratados do Governo, dos quais o segundo tem especial importância na história das ideias políticas.
O primeiro critica a doutrina do poder hereditário. É uma resposta ao Patriarca ou o Poder Natural dos Reis, de Sir Robert Filmer, publicado em 1680 mas escrito no tempo de Carlos I. Sir Robert Filmer, defensor do direito divino dos reis, teve a infelicidade de viver até 1653 e deve ter sofrido muito com a execução de Carlos I e a vitória de Cromwell. Mas Patriarca foi escrito antes desses factos mas não antes da guerra civil, e por isso mostra conhecimento da existência de doutrinas subversivas, que reconhece não serem novas em 1640. De facto, teólogos protestantes e católicos, em discussão com os respectivos monarcas, tinham afirmado vigorosamente o direito de os súbditos resistirem a príncipes tiranos, e esses escritos deram a Sir Robert abundante material de controvérsia. Sir Robert Filmer fora armado cavaleiro por Carlos I e diz-se que os parlamentaristas lhe saquearam dez vezes a casa. Não julga improvável que Noé tivesse percorrido o Mediterrâneo e dividido a Ásia, África e a Europa por Ham, Sem, e Japheth, respectivamente. Pensava que segundo a Constituição inglesa, os Lordes apenas podiam aconselhar o rei; e os Comuns tinham ainda menos poder; diz que só o rei faz as leis, expressão da sua vontade, e que é perfeitamente livre de controlo humano, não pode estar ligado a actos dos seus predecessores, nem mesmo aos seus, por “ser naturalmente impossível um homem dar lei a si próprio”.
Como se vê, Filmer pertencia à secção extrema do partido do direito divino.
Patriarca principia por combater a “opinião comum” de que “por natureza, a Humanidade nasce livre de qualquer sujeição, e com liberdade de escolher a forma de governo; e que o poder de um homem sobre outros foi primeiro outorgado segundo o critério da multidão”. “Este parecer”, diz ele, “foi primeiro fomentado nas escolas”. Mas a verdade é muito outra; originariamente, Deus conferiu poder real a Adão, de quem passou aos seus herdeiros e ultimamente aos reis modernos. Os reis agora “são ou devem ser considerados herdeiros daqueles progenitores, antepassados naturais de todo o povo”. O nosso primeiro pai, ao que parece, não apreciou bem o privilégio de monarca universal, porque “o desejo de liberdade foi causa primeira da queda de Adão”. Para Sir Robert Filmer o desejo de liberdade é sentimento ímpio.
As pretensões de Carlos I e seus defensores excediam o que tempos anteriores concederiam aos reis. Filmer conta que Parsons, jesuíta inglês, e Buchanan, calvinista escocês, adversários em quase tudo, concordavam em que os soberanos podem ser depostos pelo povo quando governem mal. Parsons pensava com certeza na rainha Isabel, protestante, e Buchanan na rainha Mary da Escócia, católica. A doutrina de Buchanan foi sancionada pelo êxito, a de Parsons contestada, pela execução do seu colega Campion.
Já antes da reforma os teólogos tendem a crer limitado o poder real, o que foi parte da luta entre o estado e a igreja que devastou a Europa durante a maior parte da idade média. Nessa luta o estado dependia da força armada, a igreja, da habilidade e da santidade. Enquanto reuniu os dois méritos, a igreja venceu; quando só teve o primeiro perdeu. Mas as ideias de homens eminentes e piedosos contra os reis permaneceram. Embora usados no interesse do papa podiam apoiar os direitos do povo a governar-se por si. “Os escolásticos subtis”, diz Filmer, “para poderem colocar o rei abaixo do papa pensaram que o melhor modo era levantar o povo acima do rei, de modo que o poder papal tomasse o lugar do real”. Cita o teólogo Belarmino que diz ser o poder secular conferido pelo povo (isto é, não por Deus) “e pertence ao povo, a não ser que ele o entregue a um príncipe”; assim, Belarmino, segundo Filmer, “faz de Deus autor imediato do estado democrático”, o que para ele é tão espantoso como para um plutocrata moderno seria dizer que Deus é autor imediato do bolchevismo.
Filmer deriva o poder político não de contrato ou considerações de bem público, mas só da autoridade paterna sobre os filhos: a fonte da autoridade real é a sujeição de filhos aos pais; os patriarcas no Génesis eram monarcas; os reis são ou devem considerar-se herdeiros de Adão; os direitos naturais de um rei são os de um pai; e por natureza os filhos nunca estão livres do poder paterno, ainda quando adultos, vendo o pai caído na segunda infância.
A teoria dificilmente pode tomá-la a sério um espírito moderno. Não nos afazemos a derivar direitos políticos da história de Adão e Eva. Para nós, o pátrio poder cessa aos vinte e um anos dos filhos, e muitas vezes é limitado já pelo estado, já pelo direito de iniciativa independente gradualmente adquirido pela mocidade. Reconhecemos à mãe direitos pelo menos iguais aos do pai. Mas além disso, ninguém hoje, fora do Japão, assimilaria o poder político ao poder paterno. No Japão, é certo, todos os professores e mestres de escola ensinaram teoria semelhante à de Filmer; o Mikado pode traçar a sua descendência da deusa do Sol, de quem é herdeiro; outros japoneses também descendem dela, mas pertencem a ramos cadetes da família. Portanto, o Mikado é divino, e opor-se-lhe seria ímpio. Esta teoria no essencial data de 1868, mas agora no Japão dizem-na tradicional desde a criação do mundo.
Querer impor doutrina semelhante à Europa — como tentou Filmer — foi um malogro. Não que repugne à natureza humana. Seguiram-na, além do Japão, os egípcios antigos, os mexicanos e os peruvianos antes da conquista espanhola. É natural em certa fase do desenvolvimento humano. A Inglaterra dos Stuarts passava essa fase; o Japão moderno, não.
A derrota das teorias do direito divino deveu-se na Inglaterra a duas causas: a multiplicidade de religiões, e a luta pelo poder entre monarquia, aristocracia, e alta burguesia. Quanto à religião, o rei, desde Henrique VIII, era chefe da igreja de Inglaterra, em oposição tanto a Roma, como à maioria das seitas protestantes. A igreja de Inglaterra vangloriou-se de ser um compromisso: o prefácio da versão autorizada começa: “Sabiamente, a igreja de Inglaterra, já desde a primeira compilação da sua liturgia pública, conservou o meio entre dois extremos”. No conjunto, este compromisso atraiu a maioria. A rainha Mary e o rei Jaime II tentaram arrastar o país para Roma, e os vencedores da guerra civil para Genebra, mas estas tentativas malograram-se, e desde 1688 o poder da igreja de Inglaterra não mudou. No entanto, os opositores sobreviveram. Em especial os não-conformistas eram homens fortes, numerosos entre os mercadores ricos e banqueiros cujo poder foi sempre aumentando.
A posição do rei era peculiar, por ser não só chefe da igreja inglesa mas da da Escócia. Na Inglaterra tinha de crer nos bispos e rejeitar o calvinismo; na Escócia, de rejeitar os bispos e crer no calvinismo. Os Stuarts tinham convicções religiosas genuínas que lhes tornavam impossível a atitude ambígua e originaram maior perturbação na Escócia do que na Inglaterra. Mas desde 1688 a conveniência política levou os reis a aquiescer em professar duas religiões ao mesmo tempo. O zelo era contrário e tornava difícil considerá-los divinos. De qualquer modo nem católicos nem conformistas podiam aceitar apoio religioso a favor da monarquia.
Os três partidos — do rei, da aristocracia, da classe média rica — combinavam-se diferentemente em várias épocas. Com Eduardo IV e Luís XI, rei e classe média ligaram-se contra a aristocracia; com Luís XIV, rei e aristocracia ligaram-se contra a classe média; na Inglaterra de 1688, aristocracia e classe média ligaram-se contra o rei. Quando o rei tinha a seu lado um deles, era forte; quando os dois se ligavam, era fraco.
Por estas e outras razões, Locke rebateu facilmente Filmer.
Pelo que toca ao raciocínio, o trabalho era simples. Mostra, quanto ao pátrio poder, que o da mãe deve ser igual ao do pai. Acentua a injustiça da primogenitura, inevitável se a hereditariedade for a base da monarquia. Ironiza o absurdo de supor os monarcas herdeiros de Adão. Adão pode ter apenas um herdeiro, mas ninguém o conhece. E pergunta se Filmer pensaria que uma vez descoberto esse herdeiro todos os monarcas existentes lhe deporiam a coroa aos pés. Se se aceitasse a base de Filmer, todos os monarcas, excepto no máximo um, seriam usurpadores, sem direito de exigir obediência aos seus súbditos de facto. Além disso — diz — o poder paterno é temporário e não abrange a vida nem a propriedade.
Por isso, além de outras razões mais fundamentais, é inaceitável, segundo Locke, a hereditariedade como base do poder político. O segundo Tratado procura base mais defensável.
O princípio da hereditariedade quase desapareceu da política. Durante a minha vida os imperadores do Brasil, China, Rússia, Alemanha e Áustria foram substituídos por ditadores que não aspiram a fundar dinastia hereditária. A aristocracia perdeu os privilégios na Europa, excepto na Inglaterra, onde pouco mais é do que forma histórica. Tudo isto é muito recente na maioria dos países e liga-se com o surto das ditaduras, desde que a base tradicional do poder foi posta de parte e o hábito de espírito para êxito da democracia ainda não teve tempo de desenvolver-se. Só há uma instituição que nunca teve elemento hereditário, a igreja Católica. Podemos esperar que as ditaduras, se sobreviverem, se desenvolvam analogamente ao governo da igreja. Isto já sucedeu no caso das grandes corporações da América que têm, ou tinham até Pearl Harbour, poderes quase iguais aos do governo.
É curioso que a rejeição do princípio hereditário em política quase não teve efeito na esfera económica nos países democráticos. (Nos estados totalitários o poder económico foi absorvido pelo político.) Ainda consideramos natural que um homem deixe a sua propriedade aos filhos aceitando assim o princípio hereditário no económico e rejeitando-o no político. Desapareceram as dinastias políticas mas sobrevivem as económicas. Não estou agora a argumentar pró ou contra; apenas a notar que o facto se dá e que a maioria dos homens não tem consciência de tal. Quando consideramos natural que o poder sobre vidas alheias resultante da grande riqueza seja hereditário, compreendemos melhor que homens como Sir Robert Filmer pensasse o mesmo do poder dos reis e como foi importante a inovação representada por homens que pensaram como Locke. Para compreender como pôde ser aceita a teoria de Filmer, e a de Locke pareceu revolucionária, basta lembrar que um reino era então considerado como é agora uma propriedade territorial. O proprietário tem vários direitos legais importantes, sendo o principal o de escolher quem estará na propriedade; a posse é transmissível por herança e sentimos que o herdeiro justamente reclama todos os privilégios legais. Por fim, a sua posição é a mesma dos monarcas defendida por Sir Robert Filmer. Há hoje na Califórnia vastas propriedades cujo título de posse deriva de reais ou alegadas concessões do rei de Espanha. Só ele podia fazê-lo: a) porque a Espanha tinha uma concepção semelhante à de Filmer, e b) porque os espanhóis podiam bater os índios. No entanto consideramos justos os títulos desses herdeiros. Talvez de futuro isto nos pareça tão fantástico como agora nos parece Filmer.
Locke inicia o segundo Tratado do Governo dizendo que, dada a impossibilidade de derivar a autoridade de um governo da de um pai, vai procurar a verdadeira origem.
Supõe um “estado de natureza” anterior a todo governo, em que a “lei da natureza” consiste na ordem divina, e não é imposta por legislador humano. Não é claro se para Locke se trata de hipótese exemplificativa, ou se supõe uma existência histórica; mas receio que tenha admitido uma fase de ocorrência real. O homem sai do estado de natureza por um contrato social que institui o governo civil. Também isto é considerado mais ou menos histórico. Mas por ora não nos interessa.
O que Locke diz do estado de natureza e lei natural é no essencial repetição de doutrina escolástica. Assim, diz São Tomás:
Toda a lei formulada pelo homem tem esse carácter na medida em que deriva de uma lei da natureza; se há conflito cessa logo de ser uma lei, é mera perversão da lei.1
Pensava-se na idade média que a lei da natureza condenava a “usura”. A propriedade eclesiástica era quase toda em terras, e os proprietários foram sempre devedores e não prestamistas. Mas com o protestantismo o apoio — em especial o do calvinismo — veio principalmente da classe média rica, mais emprestadora do que devedora. Por isso Calvino, depois outros protestantes, e por fim a igreja Católica, sancionavam a “usura”. Assim a lei natural foi diversamente concebida, mas ninguém deu por isso.
Muitas doutrinas que sobreviveram à crença da lei natural devem-lhe a origem. Por exemplo, o laissez faire e os direitos do homem, doutrinas conexas e ambas originadas no puritanismo. Duas citações de Tawney o mostrarão. Em 1604, uma comissão da Câmara dos Comuns estatuiu:
Todos os homens livres têm capacidade de herdar tanto a sua terra como o livre exercício da sua indústria, nos negócios a que se aplicam e pelos quais têm de viver.
E em 1656 Joseph Lee escreve:
É máxima incontestável que todos os homens, por luz natural e racional, farão o que lhes for mais vantajoso. O progresso dos particulares será útil à colectividade.
Excepto as palavras “luz natural e racional”, isto poderia ter sido escrito no século XIX.
Repito que na teoria de Locke pouco há de original. Nisto ele é como a maioria dos homens que adquiriram fama pelas suas ideias. Em regra, o homem que tem uma ideia nova está tanto além do seu tempo que o tomam por imbecil, de modo que fica obscuro e breve esquece. Depois, gradualmente, o mundo está preparado para a ideia, e o homem que a proclama em hora própria goza de todo o crédito. Assim foi, por exemplo, com Darwin; o pobre Lorde Monboddo foi objecto de riso.
Quanto ao estado de natureza Locke foi menos original do que Hobbes, que o considerava fase de guerra de todos contra todos, em que a vida era grosseira, brutal e breve. Mas Hobbes era tido por ateu. A concepção de Locke, recebida dos predecessores, não podia deixar de ter base teológica; onde sobreviveu sem ela, como no liberalismo moderno, é destituída de clara base lógica.
A crença num remoto “estado de natureza” da felicidade derivou em parte da narrativa bíblica da era dos patriarcas, em parte do mito clássico da idade de ouro. A crença geral na maldade do passado remoto só veio com a doutrina da evolução.
Em Locke o que mais se aproxima de definição do estado de natureza é o seguinte:
Homens que vivem de acordo com a razão, sem superior comum na terra com autoridade de julgá-los, tal é o estado de natureza.
Não é descrição da vida de selvagens, mas de uma comunidade imaginária de anarquistas virtuosos, sem necessidade de polícia ou tribunais, porque obedecem à “razão”, idêntica à “lei natural”, que por sua vez consiste nas leis de procedimento julgadas de origem divina. (Por exemplo: “Não matarás” faz parte da lei natural, as regras de trânsito, não.)
Outras citações esclarecerão o pensamento de Locke.
Para bem compreender o poder político e a sua origem devemos considerar qual o estado natural dos homens, que é o de liberdade total de ordenar as suas acções e dispor dos seus bens e pessoas como entenderem, dentro da lei da natureza, sem pedir licença e sem depender da vontade de qualquer outro homem.
Também um estado de igualdade onde o poder e a jurisdição são recíprocos, sem excesso a favor de alguém; nada é mais evidente do que deverem criaturas da mesma espécie, nascidas promiscuamente para as mesmas vantagens naturais ser iguais, sem subordinação ou sujeição. A não ser que o senhor de todas elas, por vontade manifesta, ponha uma acima de outra e lhe confira expressamente direito indubitável ao domínio e soberania.
Mas embora este (o estado de natureza) seja de liberdade, não é de licença; embora o homem possa livremente dispor de si e do seu, não pode destruir-se a si mesmo ou a qualquer criatura na sua posse, excepto onde algum uso mais nobre do que a pura preservação o ordena. O estado de natureza é governado por uma lei da natureza, obrigatória para todos; e a razão, que é essa lei, ensina a toda a humanidade que a consulte, que sendo todos iguais e independentes ninguém deve prejudicar outrem na sua vida, riqueza, liberdade ou haveres.2
Porque todos somos propriedade de Deus.3
Mas parece agora que onde a maior parte dos homens estiver no estado de natureza, pode no entanto haver alguns que não vivam segundo a lei natural e que esta mostra o que deve fazer-se para resistir a tais criminosos. No estado de natureza, diz-se-nos, cada homem deve defender-se, e ao que é seu. “Quem quer que derrame o sangue do homem verá o seu derramado pelo homem”, é parte da lei da natureza. Eu posso até matar um ladrão introduzido na minha propriedade, e esse direito permanece depois de instituído o governo, embora quando o há, se o ladrão foge, tenho de renunciar à vingança privada e recorrer à lei.
A grande objecção ao estado de natureza é cada um ser juiz da própria causa, porque só ele pode defender os seus direitos. Para este mal dá o governo remédio, mas não um remédio natural. O estado de natureza, segundo Locke, terminou por um pacto para criar um governo. Nenhum pacto termina o estado de natureza, excepto o de formar um corpo político. Os vários governos de estados independentes estão agora no estado de natureza uns para com os outros.
O estado de natureza, diz-se num passo talvez contra Hobbes, não é o mesmo que estado de guerra, mas mais próximo do seu contrário. Depois de explicar o direito de matar um ladrão por poder considerar-se em guerra contra mim, diz Locke:
Aqui se vê a diferença entre estado de natureza e estado de guerra, tão diversos como um estado de paz, boa vontade, mútua assistência, preservação, e um estado de inimizade, malícia, violência e destruição mútua.
Talvez a lei da natureza possa ter fim mais vasto do que o estado de natureza, pois a primeira ocupa-se de ladrões e assassinos ao passo que no segundo não há tais malfeitores. É uma clara inconsistência de Locke para quem ora tudo no estado de natureza é virtuoso, ora é preciso examinar o que deve fazer-se, no estado de natureza, para resistir a agressões dos maus.
Certas partes da lei natural de Locke surpreendem-nos. Por exemplo, os cativos em guerra justa são escravos por lei da natureza, que também dá a cada homem direito de punir, até pela morte, ataques a si ou à sua propriedade. Como não qualifica, parece que tenho o direito de atirar, segundo a lei da natureza, a uma pessoa que surpreenda numa pequena gatunice.
A propriedade é muito importante na filosofia política de Locke, que nela vê a razão principal para a instituição do governo civil.
O grande e principal fim de unir os homens em comunidades e dar-lhes um governo é a conservação da propriedade; para o que faltam muitas coisas no estado de natureza.
O conjunto desta teoria é claro em certo sentido e noutro enigmático. É claro o que Locke pensou, mas não como pode tê-lo pensado. A ética de Locke é utilitária, como vimos, mas na sua consideração dos “direitos” não entram reflexões utilitárias. Algo do género penetra na filosofia do direito como ensinam os legistas. O direito legal pode definir-se. Na generalidade um homem tem direito legal quando pode apelar para a lei para defender-se da injúria. Tem direito à sua propriedade, mas — por exemplo — se tem negócio ilícito de cocaína, não tem recurso legal contra um homem que a roube. Mas o legislador tem de decidir quais os direitos legais a criar, e recai na concepção de direitos “naturais” como asseguráveis por lei.
Tentei levar o mais longo possível a exposição de alguma coisa semelhante à teoria de Locke, em termos ateológicos. Se se admitir que a ética e a classificação de actos como “justos” e “injustos” é anterior à lei, torna-se possível restabelecer a teoria em termos que não envolvam história mítica. Para chegar à lei da natureza pode assim pôr-se a questão: na ausência de lei e governo, que espécie de actos de A contra B justificam a retaliação de B contra A e qual a espécie de retaliação que se justifica em diferentes casos? Admite-se em geral que ninguém pode ser censurado por defender-se contra um assassínio, mesmo que sendo necessário, mate o atacante. Pode também defender mulher e filhos e na verdade qualquer pessoa. Nesses casos a lei contra o assassínio é irrelevante, se, como é bem possível, o homem assaltado for morto antes de poder chamar a polícia; temos pois de regressar ao direito “natural”. Um homem tem também o direito de defender a sua propriedade, embora divirjam as opiniões sobre o castigo justo que pode infligir ao ladrão.
Nas relações entre estados, como nota Locke, o direito “natural” é relevante. Em que circunstâncias pode ser justa a guerra? Como não há governo internacional, a resposta só pode ser ética, não legal; tem de ser como a que se daria para um indivíduo em estado de anarquia.
A teoria legal há-de basear-se em que o estado protegerá os “direitos” do indivíduo. Quando um homem recebe injúria justificativa de retaliação segundo a lei natural, o direito positivo estabelecerá que ela deve ser feita pelo estado. Se um homem tenta matar o teu irmão, tens o direito de matá-lo, se de outro modo não podes salvar o teu irmão. Em estado de natureza — pelo menos assim pensa Locke — se alguém nos mata um irmão, temos direito de matá-lo. Mas onde existe a lei perde-se esse direito, que passa para o estado. E se alguém matar em defesa própria ou em defesa alheia tem de provar em tribunal a razão do acto.
Podemos então identificar “direito natural” com regras morais enquanto independentes de disposições legais positivas. Tem de haver tais regras para haver distinção entre leis boas e más. Para Locke, o caso é simples desde que as regras foram dadas por Deus e constam da Bíblia. Afastada essa base teológica a matéria é mais difícil. Mas enquanto se mantém que há distinção ética entre acções justas e injustas podemos dizer: o direito natural decide de acções eticamente justas e injustas numa comunidade sem governo, e o direito positivo deve quanto possível guiar-se e inspirar-se do direito natural.
Na sua forma absoluta, a doutrina de que um indivíduo tem certos direitos inalienáveis é incompatível com o utilitarismo, isto é, com a doutrina de que actos justos são os que promovem o bem-estar geral. Mas para uma doutrina ser base útil do direito não é necessário ser verdadeira em todos os casos possíveis, mas só na grande maioria. Podemos imaginar casos em que se justificasse o assassínio mas são raros e não constituem argumento contra a ilegalidade do assassínio. Semelhantemente, pode ser desejável — não digo que é — de um ponto de vista utilitário, reservar a cada indivíduo certa esfera de liberdade pessoal. Sendo assim, a doutrina dos Direitos do Homem será base útil para leis apropriadas, embora haja excepções a esses direitos. Um utilitarista deverá examinar a doutrina considerada base de leis do ponto de vista do efeito prático; não pode condená-la ab initio como contrária à sua ética.
Na especulação política do século XVII há dois tipos de teoria sobre a origem do governo. Um é o exemplificado em Sir Robert Filmer, de que o poder é confiado por Deus a certas pessoas ou seus herdeiros, governo legítimo contra o qual a revolta não é traição mas impiedade. Este sentimento é de imemorial antiguidade: em quase todas as civilizações primitivas o rei é sagrado. Os reis, naturalmente, achavam a teoria admirável. A aristocracia tinha motivo de apoio e de oposição. A favor estava o princípio de hereditariedade, que dava augusto reforço à resistência contra a ascensional classe mercantil. Onde a classe média foi mais temida e odiada que o rei, esses motivos prevaleceram. Onde se dava o contrário, em especial onde a aristocracia podia vir a obter o poder supremo, tendia a opor-se ao rei e portanto a rejeitar o direito divino.
O segundo tipo de teoria — que Locke representa — mantém que o governo civil é contratual e puramente humano. Certos escritores consideraram facto histórico o contrato social, outros uma ficção legal, para todos eles o importante era a origem terrestre da autoridade. O contrato é de facto alternativa única para a rejeição do direito divino. Com excepção dos rebeldes todos pensavam que devia achar-se alguma razão para obedecer aos governos, e para a maioria não bastava dizer que a autoridade do governo é conveniente. De qualquer modo ele deve ter direito à obediência e o de um contrato parece alternativa única da ordenação divina. Por isso a doutrina contratual popularizou-se praticamente entre todos os adversários do direito divino dos reis. Há uma sugestão de esta teoria em São Tomás de Aquino, mas Grócio foi quem primeiro a desenvolveu seriamente.
A doutrina do contrato pode ter formas que justifiquem a tirania. Hobbes, por exemplo, pensa que houve contrato entre os cidadãos para confiarem o poder a um soberano escolhido, mas como este não foi parte no contrato, a sua autoridade é ilimitada. Esta teoria, primeiro podia justificar o estado totalitário de Cromwell; depois da restauração justificou Carlos II. Mas na forma de Locke o governo é parte no contrato, e pode resistir-se-lhe se não cumprir a sua parte do ajuste. Na essência a doutrina de Locke é mais ou menos democrática, mas o elemento democrático é limitado pela ideia (implícita mais do que expressa) de quem não tem propriedade não é contado como cidadão.
Vejamos o que Locke nos diz sobre a nossa questão presente:
Primeiro uma definição do poder político:
Penso que o poder político é o direito de fazer leis, com pena de morte e consequentemente as menores, para regular e preservar a propriedade e empregar a força da comunidade na execução dessas leis e na defesa da comunidade contra injúria estrangeira, tudo isto para o bem público.
O governo é pois remédio para os inconvenientes de no estado de natureza cada homem ser juiz em causa própria. Mas onde o monarca é parte, não há remédio porque ele é juiz e queixoso. Isto leva à conclusão de que o governo não deve ser absoluto, e o Judicial deve ser independente do Executivo. Estes argumentos tinham futuro importante na Inglaterra e na América, mas agora não temos de tratar disso.
“Por natureza”, diz Locke, “qualquer homem pode punir ataque pessoal ou à sua propriedade, até pela morte. Há sociedade política onde e só onde os homens cometeram esse direito à sociedade ou à lei”.
A monarquia absoluta não é forma de governo por não haver autoridade neutral nas disputas contra monarca e súbditos; em relação a estes o monarca está no estado de natureza. Não é de esperar que ser rei torne virtuoso um homem violento.
Quem tiver sido injurioso e insultante nos bosques da América não deve ser melhor no trono, onde talvez a cultura e a religião justificarão quanto ele faça aos vassalos, e a espada fará calar quem ouse discutir.
A monarquia absoluta é como se os homens se defendessem de furões bravos e raposas, “e fossem contentes de estar salvos para serem devorados por leões”.
A sociedade civil segue a regra da maioria, a não ser que se concorde em exigir maior número. (Nos Estados Unidos, por exemplo, para modificar a Constituição ou ratificar um tratado.) Isto soa a democrático, mas lembremo-nos de que Locke exclui as mulheres e os pobres dos direitos de cidadania.
“O começo da sociedade civil depende do consentimento dos indivíduos”. Diz-se — um pouco indiferentemente — que deve alguma vez ter havido esse consenso, embora se admita que a origem do governo antecede a história, excepto entre os judeus.
O pacto civil de governo só liga os que o fizeram. O filho tem de renovar o pacto do pai. (Isto segue-se dos princípios de Locke, mas não é realista. Um americano que aos vinte e um anos declarasse rejeitar o contrato que inaugurou os Estados Unidos ver-se-ia em dificuldades.)
O poder do governo por contrato não pode, como vimos e citámos há pouco, ir além do bem comum. Não parece ter ocorrido a Locke perguntar quem seria juiz do bem comum. Claro que se for o governo, sempre decidirá em favor próprio. Provavelmente Locke pensou na maioria dos cidadãos para julgar. Mas muitas questões teriam de resolver-se depressa de mais para poder saber-se a opinião do eleitorado. As de paz e guerra são as mais importantes. O remédio único seria então conferir à opinião pública ou seus representantes certo poder — tal como acusação — de castigo ulterior de membros do executivo por actos que se averiguarem impopulares. Mas tal remédio é muitas vezes inadequado.
Citei antes uma afirmação que vou repetir:
O fim principal que une os homens em comunidade e sob um governo é preservar a propriedade.
Coerentemente, Locke declara que:
O poder supremo não pode tirar a qualquer homem qualquer parte da sua propriedade sem seu assentimento.
Ainda surpreende mais a afirmação de que embora os chefes militares tenham poder de vida e morte sobre os seus soldados, não têm poder de receber dinheiro. (Segue-se que num exército seria injusto punir pequenas falhas de disciplina por multa mas lícito puni-las por açoites. Tal o absurdo a que Locke é levado pelo seu culto da propriedade.)
O imposto apresenta dificuldades de que Locke não dá conta. Diz que a despesa do governo deve ser paga pelos cidadãos, mas com seu consentimento, isto é, da maioria. Mas pergunta-se: por que há-de bastar o consentimento da maioria? Vimos que o consentimento de todos os homens é necessário para justificar o governo de tomar-lhes uma parte da propriedade. Suponho que o consentimento tácito do imposto de acordo com a decisão majoritária, se entende estar envolvido na cidadania, que por sua vez se presume ser voluntária. Sem dúvida isto é muita vez contrário aos factos. A maioria dos homens não tem escolha livre do estado a que pertencerá, e ninguém hoje é livre de não pertencer a estado algum. Suponhamos o caso de um pacifista. Onde quer que viva o governo tomar-lhe-á parte da propriedade para fins de guerra. Com que justiça se submeterá ele à decisão? Posso imaginar muitas respostas, mas nenhuma consistente com os princípios de Locke. Ele insiste na regra da maioria inadequadamente, sem transição para ela das suas premissas individualistas, excepto o mítico contrato social, que neste sentido é mítico, ainda quando houve realmente um contrato criador de governo. É o caso dos Estados Unidos. Quando se adoptou a constituição, os homens tinham liberdade de escolha. Mas muitos votaram contra e portanto não foram parte no contrato. Podiam ter saído do país; mas ficando, ligaram-se por um contrato em que não tinham consentido. Mas na prática é difícil sair do próprio país. E no caso dos que nascem depois de adoptada a constituição o consentimento ainda é mais nebuloso.
É muito difícil a questão dos direitos do indivíduo contra o governo. Os democratas admitem com excessiva prontidão que se o governo representa a maioria tem direito de impor-se à minoria. De certo modo é verdadeiro porque a coacção é da essência do governo. Mas o direito divino das maiorias, se levado longe de mais torna-se tão tirânico como o direito divino dos reis. Locke pouco diz a este respeito no Ensaio sobre o Governo, mas alarga-se um tanto nas Cartas sobre a Tolerância, onde alega que nenhum crente em Deus deve ser punido pelas suas opiniões religiosas.
A teoria contratual do governo é decerto pré-evolucionista. O governo, como o cancro ou a tosse convulsa pode crescer gradualmente, embora possa como eles introduzir-se de súbito em regiões novas como as ilhas do mar do Sul. Antes de os homens terem estudado antropologia não tinham ideia dos mecanismos psicológicos implícitos no começo do governo, ou das razões fantásticas que os levaram a adoptar instituições e costumes de utilidade subsequente. Como ficção legal, para justificar o governo, a teoria contratual encerra alguma verdade.
Do que fica dito sobre a propriedade pareceria que Locke fosse campeão dos grandes capitalistas tanto contra os superiores como contra os inferiores sociais; mas isto seria só meia verdade. Há nele paralelamente inconciliadas doutrinas prefigurativas de capitalismo desenvolvido e doutrinas anunciadoras de uma concepção socialista. É fácil apreciá-lo erradamente por citações unilaterais neste como em outros tópicos.
Citarei pela ordem em que aparecem as principais proposições de Locke sobre a propriedade.
Em primeiro lugar todo o homem tem ou devia ter propriedade privada no produto do seu trabalho. Na fase pré-industrial isto não era tão fora da realidade como hoje. O artífice da produção urbana possuía a sua ferramenta e vendia os seus artefactos. Na produção agrícola, sustentava-se na escola a que Locke pertencia, que a propriedade do rústico seria o melhor sistema, devendo cada homem possuir a terra que pudesse cultivar e nada mais. Parece docemente incônscio de que em toda a Europa tal programa só seria possível por meio de uma revolução sangrenta. O primeiro sistema prevaleceu em França, na Itália, depois na Inglaterra. No Extremo Oriente, Rússia e Prússia o trabalhador era servo, trabalhava para o proprietário, e virtualmente não tinha direitos. O velho sistema terminara em França com a revolução, na Itália Norte e Alemanha Oeste com as conquistas dos exércitos revolucionários; a servidão findou na Prússia em virtude da vitória napoleónica; na Rússia, devido à derrota na Crimeia. Mas em ambos os países os aristocratas conservaram as suas terras. Na Prússia Leste, o sistema, embora drasticamente controlado pelos nazis, conservou-se até hoje. Na Rússia e nas actuais Lituânia, Letónia e Estónia, a Revolução desapossou os aristocratas. Na Hungria e Polónia sobreviveram; na Polónia Leste foram “liquidados” pelo governo soviético em 1940. Mas esse governo fez quanto podia para substituir na Rússia a propriedade rústica pela cultura colectiva.
Na Inglaterra o caminho foi mais complexo. No tempo de Locke a posição do trabalhador rural era suavizada pela existência de baldios sobre que tinha importantes direitos que lhe permitiam obter parte da sua alimentação. Era uma sobrevivência da idade média, desaprovada pelo homem moderno, que a considerava prejudicial à produção. Houve por isso um movimento para vedação dos baldios, começado com Henrique VIII e continuado no tempo de Cromwell, mas que só veio a ser forte cerca de 1750. Desde então e por noventa anos os baldios foram encerrados e entregues a proprietários locais. Cada encerramento exigia uma autorização parlamentar, e os aristocratas dominantes nas duas casas do Parlamento usavam do seu poder legislativo para enriquecer-se, lançando cruelmente na fome o trabalhador agrícola. Gradualmente com o progresso da indústria a posição do agricultor melhorou, porque de outro modo teria de emigrar para as cidades. Hoje, em resultado do imposto introduzido por Lloyd George, os aristocratas tiveram de dividir a maior parte da sua propriedade rural. Mas os que tinham também propriedade urbana ou industrial conservam as suas terras. Não houve revolução brusca mas transição gradual ainda em progresso. Os aristocratas ainda hoje ricos devem-no à sua propriedade industrial ou urbana.
Este longo processo foi considerado, excepto na Rússia, de acordo com os princípios de Locke. O singular é ter ele anunciado doutrinas que exigiram tão grande revolução antes de virem a realizar-se e não mostram que ele julgasse injusto o sistema do seu tempo ou tivesse consciência de que diferia do sistema defendido por ele.
A teoria laborista do valor — a de que o valor do produto depende do trabalho para obtê-lo, atribuída por uns a Karl Marx por outros a Ricardo, encontra-se em Locke e foi sugerida por uma linha de predecessores que vai a Tomás de Aquino. Tawney resume assim a doutrina escolástica:
A essência do argumento é que a paga pertence ao trabalhador que produz os bens ou ao mercador que os transporta, porque ambos servem a necessidade comum. Pecado imperdoável é o do especulador ou intermediário, que lucra explorando a necessidade pública. O verdadeiro descendente das doutrinas de Aquino é a teoria laborista do valor. O último escolástico é Karl Marx.
A teoria laborista do valor tem dois aspectos: ético e económico. Pode dizer-se que o valor de um produto deve ser proporcional ao trabalho gasto, ou que de facto o trabalho regula o preço. O último é só aproximadamente verdadeiro, como Locke reconhece. Nove décimos do valor, diz ele, devem-se ao trabalho; mas nada diz do outro décimo. O trabalho — diz — dá a diferença do valor das coisas; e exemplifica com a terra americana ocupada pelos índios, que por inculta quase não tem valor. Não vê que o valor pode vir desde que o homem queira trabalhar a terra e antes de fazê-lo. Se em terra deserta alguém descobrir petróleo poderá vendê-la cara sem ter trabalhado. Locke não previa tais casos e só pensava na agricultura. O direito de propriedade rústica, que ele favorece, é inaplicável por exemplo à exploração mineira, vasta de maquinaria cara e muitos trabalhadores.
O princípio de que um homem tem direito ao produto do seu trabalho não serve em uma civilização industrial. Suponhamos um operário da fábrica de carros Ford; como avaliar a proporção de rendimento devida ao seu trabalho? Ou um empregado de uma empresa de transportes por via férrea; como determinar o que lhe cabe na produção dos bens? Estas considerações levam a pôr de parte o princípio do direito ao produto do trabalho em favor de método mais socialista de organizar a produção e a distribuição.
A teoria laborista do valor foi ordinariamente defendida contra alguma classe tida como exploradora. Os escolásticos usavam-na contra os usurários, pela maior parte judeus. Ricardo contra os proprietários. Marx contra os capitalistas. Mas Locke parece não ter tido hostilidade a classe alguma, excepto aos monarcas, o que nada tem com o valor.
Algumas opiniões de Locke são tão singulares que não sei como apresentá-las. Diz que um homem não deve ter tantas ameixas que se estraguem antes dele e a família as comerem; mas pode ter todo o ouro e diamantes legalmente permitidos, porque não se estragam. Não lhe ocorre que o homem das ameixas pode vendê-las antes de apodrecerem.
Ocupa-se muito do carácter incorruptível dos metais preciosos, que — diz ele — são origem da moeda e da desigualdade de fortuna. Parece lamentar, académica e abstractamente, a desigualdade económica, mas decerto não julga prudente tentar meios de preveni-la. Sem dúvida o impressionava, como a todos os homens do seu tempo, deverem-se os lucros da civilização aos homens ricos, principalmente aos patronos da arte e das letras. O mesmo se dá na América moderna, onde ciência e arte dependem largamente da generosidade de homens muito ricos. De certo modo a civilização é impelida pela injustiça social, facto que é base do que há mais respeitável no conservantismo.
A doutrina da separação das funções legislativa, executiva e judicial do governo caracteriza o liberalismo; nasceu na Inglaterra com a resistência aos Stuarts; Locke formulou-a claramente pelo menos quanto às duas primeiras, para evitar — diz ele — abuso do poder. Deve entender-se, é claro, que por legislatura ele entende o Parlamento, e por executivo, o rei; pelo menos assim é emotivamente, fosse qual fosse o significado lógico. Por isso considera a legislatura virtuosa, e o executivo perverso.
O legislativo — diz ele — deve ser o mais alto mas renovável pela comunidade. O que implica votação periódica popular, como a da Câmara dos Comuns. Esta condição, cumprida a sério, condena a parte do rei e dos Lordes no poder legislativo admitida na Constituição inglesa do tempo de Locke.
Em todo governo bem estruturado — diz Locke — estão separados o legislativo e o executivo. E quando houver conflito? Se o executivo deixa de notificar o legislativo quando deve, está em guerra com o povo e pode ser destituído pela força. Claro que isto é sugerido pelo que aconteceu a Carlos I. De 1628 a 1640 tentou governar sem parlamento, o que, segundo Locke, deve evitar-se mesmo pela guerra civil.
“A força”, diz ele, “não se opõe senão à força injusta e ilegal”. Na prática o princípio é vão, a não ser que haja um corpo com direito legal de declarar quando a força é “ilegal e injusta”. A tentativa de Carlos I de colectar os navios sem consentimento parlamentar foi para os seus adversários “ilegal e injusta” e para ele justa e legal. O mesmo sucedeu na guerra civil americana. Tinham os estados direito de separar-se? Só a vitória do Norte decidiu a questão legal. É crença de Locke e de muitos escritores do seu tempo, que um homem honesto sabe o que é justo e legal ou é compensado pela força das tendências de um e outro lado ou pela dificuldade de estabelecer um tribunal que exteriormente ou na consciência dos homens possa ter autoridade nas questões debatidas. Na prática essas questões, quando importantes, decidem-se pelo poder, não por justiça e direito.
De certo modo, mas veladamente, Locke reconhece o facto. Diz que na disputa entre legislativo e executivo, só o Céu pode às vezes ser juiz. Como o Céu não se pronuncia só há o recurso do combate, admitindo que o Céu dá a vitória à melhor causa. Tal concepção é essencial a qualquer doutrina de divisão do poder, e quando incorporada na constituição a única forma de evitar a guerra civil é praticar o compromisso e o bom senso; mas esses são hábito do espírito e não podem figurar em constituição escrita.
Admira que Locke não fale do judicial, questão candente no seu tempo. Até à Revolução os juizes podiam ser demitidos pelo rei; por isso condenavam-lhe os inimigos e absolviam os amigos. Depois da Revolução eram inamovíveis excepto por decisão das duas casas do Parlamento. Pensou-se em fazer com isto que as decisões fossem guiadas só pelo direito; de facto, onde havia espírito de partido apenas se substituiu o preconceito do rei pelo dos juizes. Seja como for, onde o princípio prevaleceu o judicial ficou sendo terceiro ramo independente do governo como o executivo e o legislativo. O exemplo mais notório é o Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
A história da doutrina foi interessante.
Na Inglaterra, seu país de origem, destinava-se a limitar o poder do rei que até à Revolução controlava totalmente o executivo. Mas gradualmente o executivo dependeu do parlamento, porque era impossível a um ministro prosseguir sem maioria nos Comuns. O executivo ficou assim não na forma mas de facto, uma comissão escolhida pelo parlamento, de modo que legislativo e executivo se separavam cada vez menos. Nos últimos cinquenta anos aproximadamente deu-se ao primeiro-ministro poder de dissolução e aumentou a solidez da disciplina partidária. A maioria do parlamento decide agora qual o partido que estará no poder mas depois nada mais decide. A legislação proposta dificilmente se efectua se não for apresentada pelo governo. Assim o governo é legislativo e executivo e só a necessidade de eleições gerais ocasionais lhe limita o poder. O sistema é totalmente contrário aos princípios de Locke.
Em França, onde Montesquieu defendeu calorosamente a doutrina, ela foi acolhida pela facção moderada da Revolução Francesa, mas temporariamente esquecida com a vitória dos jacobinos. Napoleão, naturalmente, não a adoptou, mas reviveu na Restauração, para desaparecer de novo com Napoleão III. Renasceu em 1871 pela Constituição em que o poder do presidente era pequeno e o governo não podia dissolver as Câmaras. O resultado foi dar grande poder à Câmara dos Deputados, tanto contra o governo como contra o eleitorado. Havia maior divisão de poderes do que na Inglaterra moderna, mas havia menor do que segundo os princípios de Locke porque o legislativo dominava o executivo. O que será a Constituição francesa depois desta guerra é imprevisível.
O país onde o princípio da divisão de poderes, de Locke, teve maior aplicação foi nos Estados Unidos, onde o presidente e o Congresso são independentes entre si e o Supremo Tribunal independente de ambos. Inadvertidamente, a Constituição fez do Supremo Tribunal ramo do legislativo, porque nada é lei se ele disser que não. O facto de esses poderes serem nominalmente apenas interpretativos aumenta-os na realidade, porque dificulta a crítica do que se supõe decisão puramente legal. Dá relevo à sagacidade política dos americanos o facto de esta Constituição só uma vez ter produzido conflito armado.
Em conjunto a filosofia política de Locke foi adequada e útil até à revolução industrial. Desde então cada vez menos podia atacar problemas importantes. As funções do estado — por exemplo, na educação — aumentaram enormemente. O nacionalismo trouxe a aliança, por vezes a amálgama de poder económico e político, tornando a guerra o principal meio de competição. O cidadão em separado já não tem o poder e a independência que tinha nas especulações de Locke. A nossa era é de organização e os conflitos dão-se entre organizações, e não entre indivíduos. O estado de natureza, como diz Locke, ainda existe entre os estados. É necessário novo contrato social internacional antes de podermos gozar os prometidos benefícios do governo. Quando venha a criar-se um governo internacional, a filosofia política de Locke será de novo aplicável, mas não no que respeita à propriedade privada.