A religião é um fenómeno complexo, que tem simultaneamente um aspecto individual e um aspecto social. No início dos tempos históricos a religião era já uma coisa velha; e ao longo de toda a história, o crescimento da civilização tem sido correlato com uma diminuição da religiosidade. As religiões mais antigas de que temos conhecimento eram mais sociais que individuais: existiam espíritos poderosos que castigavam ou premiavam toda a tribo conforme os membros individuais da tribo tinham um comportamento ofensivo ou agradável. Os sentimentos de tais espíritos, quanto ao tipo de comportamento que consideravam ofensivo ou agradável, eram verificados por indução e registados na tradição sacerdotal. Se um terramoto ou uma pestilência destruía os habitantes de uma dada região, os homens prudentes inquiriam quais dos seus hábitos poderiam ser peculiares, e decidiam que tais hábitos deveriam ser evitados no futuro. Este ponto de vista ainda não está de modo algum extinto. Conheci pessoalmente um vigário da igreja anglicana que pensava honestamente que a derrota dos alemães na primeira guerra mundial se devera ao seu gosto pela crítica bíblica, uma vez que, segundo ele, o criador do universo sentia repulsa por essa actividade de exegese textual dos manuscritos hebraicos.
A religião, como os seus defensores estão no hábito de nos dizer, é a fonte do sentimento de obrigação social. Quando um homem fazia alguma coisa que desagradava aos deuses, estes tendiam a castigar, não apenas o indivíduo culposo, mas toda a tribo. Por conseguinte a sua conduta era uma questão de preocupação colectiva, uma vez que os vícios privados davam origem a calamidades públicas. Este ponto de vista ainda hoje domina o código penal. Há certas anormalidades sexuais pelas quais os homens são encarcerados, embora de um ponto de vista racional o seu comportamento apenas a eles diga respeito; se se quiser tentar qualquer justificação para o seu castigo, temos de nos basear no que aconteceu às Cidades da Planície, uma vez que só assim pode dizer-se que a sua conduta tem algo a ver com a comunidade. Facto curioso: as coisas que merecem a objecção dos deuses raramente são coisas que pudessem causar grandes danos se não desencadeassem a ira divina. Levantam objecções a que um indivíduo coma carne de porco, ou carne de vaca, ou case com a irmã da sua falecida mulher; nos tempos do rei David, Deus ofendeu-se com um censo, e matou tanta gente com uma peste que as estatísticas obtidas pelo rei David ficaram sem qualquer valor. Os deuses dos aztecas insistiam na prática de sacrifícios humanos e de canibalismo antes de se decidirem a mostrar a sua vontade para com os seus adoradores. Não obstante, embora os códigos morais resultantes da religião tenham sido, geralmente curiosos, temos de admitir que foi a religião que lhes deu origem. E se considerarmos que alguma moralidade, seja ela qual for, é melhor que nenhuma, então temos de admitir que a religião tem sido uma força benéfica.
Embora a religião tenha começado como um assunto tribal, breve desenvolveu também um aspecto puramente individual. A partir de cerca do século VI antes de Cristo, movimentos muito separados no espaço tiveram início no mundo antigo, que se preocupavam sobretudo com a alma individual e com aquilo a que os cristãos viriam a chamar salvação. O taoísmo, na China, o budismo, na índia, a religião órfica, na Grécia, e o profetismo hebraico, todos foram movimentos com esse carácter, e surgiram, por um lado, da percepção de que a vida natural é cheia de tristezas e, por outro, da busca de um modo de vida que permitisse aos homem furtar-se aos infortúnios ou, pelo, menos, tolerá-los. Numa época não muito ulterior, Parménides inaugurou a grande tradição da filosofia religiosa com a sua doutrina da irrealidade do tempo e da unidade de todas as coisas. É deste antepassado que derivam Platão, Plotino, os padres da igreja, Espinoza, Hegel, Bergson, e todos os filósofos do misticismo. Dos profetas hebraicos derivou o tipo de religião que se preocupa menos com a metafísica e mais com a rectidão do comportamento, que é o tipo de preocupação predominante no protestantismo. Em todas as variedades de cristianismo existe simultaneamente um elemento moral e um elemento metafísico, devido ao facto de o cristianismo ter nascido de um caldeamento muito íntimo de judaísmo e helenismo; mas, na generalidade, conforme o cristianismo se for deslocando para o ocidente, foi-se tornando menos metafísico e mais moral. No Islão, com excepção da Pérsia, o elemento metafísico sempre foi muito ligeiro, enquanto as religiões que dimanaram da índia foram sempre predominantemente filosóficas.
Desde que surgiu a religião individual, os elementos pessoal e institucional na vida religiosa sempre se mantiveram em guerra um com o outro. Geralmente, os elementos institucionais têm sido politicamente mais fortes, uma vez que eram apoiados por sacerdotes e tradições, assim como pelos governos e pela lei. A religião pessoal é um assunto privado, que não devia de modo algum preocupar a comunidade. Mas a religião institucional é um assunto de grande importância política. Onde quer que exista religião institucional, a propriedade está com ela relacionada, e é possível um homem ganhar a vida defendendo os seus dogmas, mas não é possível ganhar a vida (ou é extremamente difícil) opondo-se-lhes. A educação, na medida em que sofre influência da religião, sofre-a da religião institucionalizada, que controla muitas antigas fundações e, em muitos países, chega a controlar o estado. Nos nossos dias, na maioria dos países da Europa ocidental, a religião domina a educação dos ricos, e exerce muito menos influência sobre a educação das classes pobres. Isto é em larga medida um acidente político: onde nenhuma religião é suficientemente forte para se impor ao estado, as escolas estatais não podem ensinar as doutrinas de uma dada seita, mas os colégios mantidos pelas mensalidades pagas pelos alunos podem ensinar aquilo que os pais desses alunos achem que vale a pena pagar. Na Inglaterra e na França, em grande parte como resultado deste estado de coisas, os ricos são muito mais religiosos que as camadas pobres urbanas. Quando digo que são “religiosos”, estou a usar a palavra no seu sentido político; não quero de modo algum que se infira que são piedosos, nem sequer que dêem necessariamente o seu assentimento metafísico aos dogmas do cristianismo, mas apenas que apoiam a igreja, votam com ela em questões legislativas, e desejam que os seus filhos sejam entregues àqueles que aceitam os seus ensinamentos. É principalmente por esta razão que a igreja ainda hoje é importante.
Entre gente laica de mentalidade liberal não é raro encontrarmos o ponto de vista de que a igreja deixou de ser um factor com peso real na vida da comunidade. Ora isto representa, na minha opinião, um erro profundo. As leis do casamento e do divórcio, por exemplo, embora não sejam aquilo que a maioria dos eclesiásticos desejaria que fossem, conservam absurdidades e crueldades — como a recusa de conceder o divórcio com base na insanidade mental — que, não fora a influência das várias igrejas cristãs, não sobreviveriam nem uma semana. Os opositores declarados do cristianismo são prejudicados de muitas maneiras quando em concorrência com aqueles que são mais pios ou, pelo menos, mais discretos; na prática, há muitos postos de trabalho que não estão abertos a ateus declarados, os quais precisam de ter muito mais capacidade para alcançar êxito do que a capacidade exigida, para o mesmo êxito, a um indivíduo mais ortodoxo.
No nosso tempo, é no domínio da educação, mais que em qualquer outro, que a religião institucional conserva a sua importância. Na Inglaterra, todas as public schools e quase todas as preparatory schools são anglicanas ou católicas. Pais livre-pensadores que mandam os seus filhos para tais escolas dizem, muitas vezes, que a maioria das pessoas reage contra a educação que recebe, e que, por conseguinte, até é bom que se ensinem falsidades às crianças para que estas, ao reagir, acreditem no que é verdadeiro. Tal argumento é uma simples desculpa para uma convencionalidade tímida, que um momento de reflexão logo revela ser estatisticamente uma falácia. A imensa maioria dos adultos continua a acreditar, durante o resto da vida, naquilo que lhe ensinaram na infância. Os países mantêm-se protestantes, católicos, muçulmanos, ou lá o que forem, durante séculos, a fio, quando, se a tal doutrina da reacção fosse verdadeira, esses países deviam mudar de religião a cada geração. Mesmo aqueles que propõem um tal argumento para que os seus filhos aprendam a doutrina ortodoxa mostram, pela sua conduta, o pouco que eles mesmos reagiram. Se um homem acredita, em privado, que dois e dois são quatro, mas evita proclamar esta opinião, e mantém que o que está certo é que se gastem os dinheiros públicos a ensinar aos seus filhos e aos filhos dos outros que dois e dois são cinco, a opinião desse homem, de um ponto de vista social, é que dois e dois são cinco, e a sua convicção pessoal em contrário deixa de ter qualquer importância. Do mesmo modo, aqueles que, embora não sejam religiosos, acreditam que uma educação religiosa é desejável, não reagiram de modo eficaz contra a sua própria educação religiosa, por mais que afirmem o contrário.
Muitos daqueles que não dão qualquer assentimento intelectual aos dogmas da religião, mantêm, contudo, que a religião é, não obstante, inofensiva, e talvez até benéfica. Neste ponto encontro-me numa posição de concordância com os ortodoxos e em oposição àqueles a quem se chama pensadores “liberais”: parece-me que o problema de saber se existe Deus e se nós persistimos além da morte são problemas importantes e que se deve pensar tão rigorosamente quanto possível acerca dessas questões. Não posso aceitar a posição do político: mesmo que não exista Deus é desejável que a maioria das pessoas acredite que existe, uma vez que tal crença encorajará uma conduta virtuosa. No que diz respeito às crianças, muitos livre-pensadores adoptam esta atitude: como se pode ensinar às crianças a ser boas, perguntam, se não se lhes ensinar religião? Como se lhes pode ensinar a ser boas, respondo, se os adultos lhes mentem habitual e deliberadamente num assunto da maior importância? E como pode qualquer conduta que seja genuinamente desejável necessitar de crenças falsas como motivo? Se não existem argumentos válidos para aquilo que uma pessoa considera “boa” conduta, então a sua concepção de bem tem de ter falhas. E, em todo o caso, é a autoridade paternal mais do que a religião que influencia o comportamento das crianças. O que a religião principalmente lhes oferece são certas emoções, que nem sequer estão relacionadas muito intimamente com a acção, e que não são, na grande maioria, muito desejáveis. Indirectamente, sem dúvida, tais emoções têm efeitos sobre o comportamento, embora estes não sejam de modo algum os efeitos que os educadores religiosos professam desejar. Isto, contudo, é um assunto a que terei de voltar mais adiante.
Os efeitos nocivos da educação religiosa dependem, em parte, das doutrinas particulares que são ensinadas e, em parte, da simples insistência em que se sabe que são verdadeiras várias proposições muito duvidosas. Saber se tais proposições são, de facto, verdadeiras ou falsas, pode não ser verificável; mas ao tentar levar os jovens a considerá-las como certas, os educadores religiosos estão a ensinar uma falsidade, uma vez que, quer sejam de facto verdadeiras ou não, tais proposições são, enfaticamente, incertas. Tomemos, por exemplo, a vida futura. Nesta matéria todo o homem sensato confessa a sua ignorância: as provas são insuficientes e a única atitude racional é uma suspensão do juízo. Mas a religião Cristã pronunciou-se a favor da vida futura, e os jovens que são educados sob a sua influência aprendem a considerar a sobrevivência além da morte como uma certeza. “E que importância tem isso”, perguntará o leitor, “já que tal crença é reconfortante e não pode causar qualquer dano?”. Ora eu a isso responderia que causa grandes danos, e das seguintes maneiras.
Em primeiro lugar: todas as crianças excepcionalmente inteligentes que descubram, através da sua reflexão própria, que os argumentos em favor da imortalidade são inconcludentes, serão desencorajadas pelos professores, e talvez até punidas; e outras crianças que mostrem a menor inclinação para pensar dessa mesma maneira serão desencorajadas de conversar sobre tais assuntos e, se possível, proibidas de ler livros que possam vir a aumentar os seus conhecimentos e a sua capacidade de raciocínio.
Em segundo lugar: uma vez que a maioria das pessoas com inteligência bastante acima da média é hoje em dia aberta ou secretamente agnóstica, os professores de uma escola que insistem na religião têm de ser estúpidos ou hipócritas, a menos que pertençam àquela pequeníssimo grupo de homens que, devido a qualquer tara, têm a capacidade intelectual sem serem intelectualmente judiciosos. O que acontece, na prática, é que homens que tencionam seguir a profissão docente começam, bastante cedo na vida, a fechar os seus cérebros contra todos os pensamentos aventurosos; tornam-se tímidos e convencionais, primeiro em teologia, e depois, por uma transição natural, em tudo o resto; como a raposa que perdeu a cauda, acabam por instilar nos seus alunos que é bom ser tímido e convencional; depois de terem feito isto durante algum tempo, o seu mérito é observado pelas autoridades e acabam por ser promovidos a posições de poder. O tipo de homem capaz de conservar o seu lugar como professor e fazer da sua carreira um êxito fica assim em grande parte determinado pelo teste teológico, e outros, que, explícita ou implicitamente, limitam a escolha de professores, e que excluem da profissão docente a maioria daqueles que mais bem preparados estariam para estimular, intelectual e moralmente, os jovens.
Em terceiro lugar: é impossível instilar nos jovens o espírito científico enquanto algumas proposições forem consideradas sacrossantas e não abertas à inquirição. Faz parte da própria essência da atitude científica exigir provas para aquilo em que acreditar, e seguir essas provas seja qual for a direcção que apontem. Ora logo que surge um credo que é preciso manter, torna-se necessário rodeá-lo de emoções e de tabus, afirmar em tons vibrantes de patética vitalidade que contêm verdades “transcendentes”, estabelecer critérios de verdade diferentes dos da ciência, muito especialmente os sentimentos do coração e as certezas morais dos homens “bons”. Nos tempos de oiro da religião, quando os homens acreditavam, como acreditou Tomás de Aquino, que a razão pura podia demonstrar as proposições fundamentais da teologia cristã, o sentimento era desnecessário: a Summa de S. Tomás é uma obra tão fria e tão racional como as de David Hume. Mas esses dias passaram e o teólogo moderno permite-se utilizar palavras carregadas de emoção para produzir nos leitores um estado de espírito em que a relevância lógica de um argumento não seja esmiuçada muito de perto. Ora, a intromissão das emoções e do sentimentalismo é sempre sintoma de um argumento fraco. Imaginem-se os métodos dos apologistas da religião aplicados à proposição de que 2 + 2 = 4. O resultado seria algo de parecido com isto: “Esta verdade transcendente é igualmente reconhecida pelo enérgico homem de negócios no seu escritório, pelo estadista ocupado com o cálculo do rendimento nacional, pelo cobrador dos transportes ao esforçar-se por dar vazão aos problemas da chamada “hora de ponta”, pela criança inocente ao comprar chupa-chupas para mimosear o irmãozito mais pequeno, e até pelo humilde esquimó ao contar os peixes que apanhou nas margens geladas do oceano Árctico. Ora, poderá uma unanimidade tão ampla ter sido produzida por algo que não resulte de um íntimo reconhecimento pelos homens de uma profunda necessidade espiritual? Deveremos dar ouvidos ao céptico trocista que nos quer roubar esta ofuscante herança de sageza transmitida até nós dos tempos que estavam menos desligados do infinito que a nossa era do jazz? Não! Mil vezes não!” Mas pode-se duvidar que os rapazes aprendessem melhor a aritmética por este método do que pelos métodos correntemente utilizados.
Por razões tais como as que temos vindo a considerar, qualquer credo, seja ele qual for, será provavelmente maléfico em termos educativos quando for considerado isento da análise intelectual a que sujeitamos as nossas crenças mais científicas. Existem, contudo, várias objecções especiais a levantar ao tipo de instrução religiosa a que, nos países cristãos, está exposta grande percentagem das crianças.
Em primeiro lugar, a religião é sempre uma força conservadora, e tende a conservar muito do que há de pior no passado. Ainda na época da segunda guerra púnica os romanos ofereciam aos deuses sacrifícios humanos, numa altura em que, não fora a religião, já não fariam nada de tão bárbaro. De igual modo, nos nossos dias os homens fazem coisas, por motivos religiosos, que, não fora a religião, pareceriam intoleráveis e cruéis. A igreja católica ainda acredita na existência do inferno. A igreja anglicana, em resultado de uma decisão dos membros laicos do Conselho Privado contra a oposição dos arcebispos de Cantuária e de York, já não considera o inferno de fide; não obstante, a maioria dos clérigos anglicanos ainda acreditam no inferno. Ora todos os que acreditam no inferno, têm de considerar permissível a punição vingativa, e por conseguinte, dispõem de uma justificação teórica para métodos cruéis em educação e no tratamento de criminosos. A imensa maioria dos ministros das religiões apoiam a guerra onde quer que esta ocorra1], embora em tempo de paz sejam muitas vezes pacifistas; ao apoiarem a guerra afirmam enfaticamente acreditar que Deus está do seu lado, e dão suporte religioso à perseguição de homens que acham que tais matanças indiscriminadas são uma insensatez. Enquanto a escravatura existiu, encontravam-se argumentos religiosos para a apoiar; hoje, encontram-se argumentos semelhantes para suportar a exploração capitalista. Quase todas as crueldades e injustiças tradicionais tiveram o apoio da religião organizada até que o sentido moral da comunidade laica a obrigou a uma mudança de atitude.
Em segundo lugar, a religião cristã oferece, àqueles que a aceitam, confortos que é doloroso abandonar uma vez que a crença se desvanece. Uma crença em Deus e na vida eterna torna possível atravessar a vida com um grau menor de coragem estóica do que a que é necessária aos cépticos. Uma grande quantidade de gente jovem perde a fé nesses dogmas numa idade em que o desespero é fácil, e tem assim de enfrentar uma infelicidade muito mais intensa que aquela que cabe em sorte aos que nunca tiveram uma educação religiosa. O cristianismo oferece razões para não temer a morte ou o universo e, ao fazê-lo, não ensina adequadamente a virtude da coragem. Ora, como a sede de fé religiosa é, em larga medida, uma resultante do medo, os defensores da fé tendem a pensar que certos tipos de medo não são de lamentar. Ora, nisto, na minha opinião, enganam-se redondamente. Permitir-se a um homem adoptar crenças agradáveis como meio de evitar o medo não é, na minha opinião, viver da melhor maneira. A religião, na medida em que apela para o medo, contribui para um aviltamento da dignidade humana.
Em terceiro lugar, quando a religião é tomada realmente a sério, implica considerar este mundo em que vivemos como sem importância quando comparado com o próximo, levando por essa via à defesa de práticas que dão origem, aqui na Terra, a um grande saldo de infelicidade, com a desculpa de que isso levará a uma felicidade maior lá no céu. A melhor ilustração deste ponto de vista encontra-se nas questões relacionadas com o sexo, que considerarei mais especialmente no capítulo seguinte. Mas existe sem sombra de dúvida, naqueles que aceitam, genuína e profundamente, os ensinamentos do cristianismo, uma certa tendência para minimizar males como a pobreza e a doença, com a desculpa de que pertencem apenas a esta vida terrena. Tal doutrina corresponde muito convenientemente aos interesses dos ricos, e essa será talvez uma das razões pela qual a maioria dos principais plutocratas se mostram profundamente religiosos. Se existe uma vida eterna, e se o céu é uma recompensa para as misérias sofridas aqui na Terra, bem faremos em obstruir todas as tentativas para melhorar as condições de vida terrena, e devemos admirar o altruísmo desses grandes capitães de indústria que permitem aos outros que monopolizem os breves e lucrativos desgostos aqui na Terra. Mas se essa crença no além estiver enganada, teremos deitado fora a substância para nos agarrarmos à sombra, e teremos tão pouca sorte como aqueles que investem a poupança de uma vida em empresas que vão à falência.
Em quarto lugar, o efeito da instrução religiosa no domínio da moralidade é mau de várias maneiras. Tende a sapar a confiança em si mesmo, especialmente quando associada ao confessionário; ao ensinar aos jovens a encostarem-se à autoridade, torna-os muitas vezes incapazes de se dirigirem a si mesmos. Tenho conhecido homens que, tendo sido educados como católicos ao perderem a fé se comportaram de maneira que só pode ser considerada lamentável. Alguns poderão dizer que tais exemplos mostram a utilidade moral da religião, mas eu afirmaria exactamente o contrário, uma vez que a falta de força de vontade que revelam é um resultado directo da sua educação. Além disso, quando a religião é apresentada como único fundamento da moralidade, um homem que deixa de acreditar na religião tenderá a deixar de acreditar na moralidade. O herói do romance de Samuel Butler, The Way of all Flesh, violou a criada logo que deixou de ser cristão. Ora, há muitas razões excelentes para não praticar estupro com as criadas, mas é evidente que ninguém ensinara qualquer delas ao jovem em questão; apenas lhe haviam ensinado que tais actos desagradavam a Deus. Tendo em vista o facto de que, na nossa época, a perda da fé é uma ocorrência bastante provável, parece-me imprudente basear toda a moralidade, mesmo aquele mínimo indispensável, sobre alicerces tão atreitos a desmoronarem-se.
Outro aspecto moralmente indesejável da educação religiosa é subestimar as virtudes intelectuais. Considera-se que a imparcialidade intelectual, uma qualidade extremamente importante, é positivamente má; tentativas persistentes para compreender assuntos difíceis são vistas, na melhor das hipóteses, com tolerância. Os indivíduos que, nos nossos dias, são propostos à nossa admiração, só muito raramente são homens de grande inteligência; e quando o são, será apenas por alguma maluqueira que disseram ou fizeram num momento de distracção. Devido à identificação da religião com a virtude, juntamente com o facto de a maioria dos homens religiosos não serem os mais inteligentes, uma educação religiosa encoraja os estúpidos a resistir à autoridade dos mais cultos, como aconteceu, por exemplo, quando o ensino da doutrina na evolução foi declarado ilegal. Até onde me lembro, não há em todos os evangelhos uma única palavra em louvor da inteligência; e, a este respeito, os ministros da religião seguem a autoridade evangélica muito mais rigorosamente que em muitos outros aspectos. Ora, isto deve ser considerado um defeito muito sério da ética ensinada nos estabelecimentos educativos cristãos.
O defeito fundamental da ética cristã consiste no facto de classificar certas classes de actos como “pecados” e outros como “virtudes” com base em argumentos que nada têm a ver com as suas consequências sociais. Ora, uma ética que não seja derivada da superstição deve decidir, em primeiro lugar, qual o tipo de efeitos sociais que deseja alcançar e qual o tipo que deseja evitar. Depois terá de decidir, até onde os nossos conhecimentos o permitirem, que actos promoverão as consequências desejadas; e serão estes actos que louvará, reservando a sua condenação para aqueles que tiverem o efeito oposto. A ética primitiva não procede deste modo. Escolhem para censurar certos modos de comportamento, por razões que se perdem na obscuridade antropológica. Na generalidade, entre as nações mais bem-sucedidas, os actos condenados tendem a ser nocivos, e os actos louvados tendem a ser benéficos, mas não é nunca este o caso em relação a todos os pormenores. Há autores que mantêm que, originalmente, os animais foram domesticados por razões religiosas, e não utilitárias, mas que as tribos que tentaram domesticar o crocodilo ou o leão morreram, enquanto as que escolheram carneiros e vacas prosperaram. De igual modo, onde tribos com códigos éticos diferentes entraram em conflito, é de esperar que saísse vitoriosa aquela cujo código moral era menos absurdo. Mas nenhum código com origens supersticiosas pode deixar de conter sérias absurdidades. Tais absurdidades encontram-se no código cristão, embora menos hoje que em épocas transactas. A proibição do trabalho ao Domingo pode ser defendida racionalmente, mas a proibição de brincar e de se divertir já não pode. A proibição do roubo é, em geral, justa, mas, não quando é aplicada, como o foi pelas igrejas na Alemanha do pós-guerra, para impedir a apropriação pública das propriedades dos príncipes exilados. A origem supersticiosa da ética cristã é sobretudo evidente em questões de sexo; mas aí o assunto é tão vasto que requer um capítulo separado.