Como afirmou o vosso presidente, o tema que irei versar esta noite é Por que não sou cristão.1 Convém, de início, procurar estabelecer o que se entende pela palavra cristão. Ela é usada nos nossos dias num sentido vago por um grande número de pessoas. Alguns aplicam-na a todo aquele que procura levar uma vida virtuosa. Nesse sentido, suponho que se encontrariam cristãos em todas as seitas e em todas as crenças, razão por que penso que não constitua o melhor significado para essa palavra, pois implicaria que todas as pessoas que não são cristãs — budistas, maometanas, confucionistas e outras — não pudessem levar uma vida virtuosa.
Não entendo por cristão quem procura viver de modo convincente e de harmonia com a razão. Penso que é necessária uma certa dose de determinada crença antes de ter o direito de se intitular cristão. De qualquer modo, a palavra não tem o rico sentido que possuía no tempo de Santo Agostinho e de S. Tomás de Aquino. Nessas épocas, se alguém se confessava cristão sabia-se o que isso significava. Aceitava-se todo um conjunto de crenças estabelecidas com grande precisão e a todas as palavras dessas crenças se associava uma fé inabalável.
Nos nossos dias não se passa o mesmo. É necessário ser-se um pouco mais vago no significado de “cristão”. Julgo, no entanto, que existem dois pontos necessários para todo aquele que se proclama como tal. O primeiro é de natureza dogmática — ou seja, que se deve acreditar em Deus e na imortalidade. A não acreditar nesses dois princípios, penso que ninguém se poderá proclamar cristão. Depois, como o nome implica, deverá possuir-se a crença da existência de Cristo. Os maometanos, por exemplo, crêem igualmente em Deus e na imortalidade, e no entanto não se proclamam cristãos. Dever-se-á ter como base fundamental a crença de que Cristo, a não ser de essência divina, é pelo menos o melhor e o mais sábio dos homens. Se não possuís, no mínimo, esta crença na existência de Cristo, não creio que tenhais o direito de vos intitulardes cristãos.
Sem dúvida, existe outro sentido que se pode encontrar no Whitaker’s Almanack ou nos livros de geografia, onde se declara que a população do globo se divide em cristãos, maometanos, budistas, adoradores de fetiches, etc.; e nesse sentido todos seremos cristãos. Os tratados de geografia englobam-nos a todos, mas esse é um critério puramente geográfico que, suponho, não deve ser considerado. De onde concluo que, quando pretendo expor por que não sou cristão, devo ater-me a outras duas ordens de razões: primeira, por que não creio em Deus e na imortalidade; segunda, por que não penso que Cristo tenha sido o melhor e mais sábio dos homens, ainda que lhe reconheça um grau elevado de virtude moral.
Sem os frutuosos esforços dos cépticos do passado, não me seria possível dar uma definição tão elástica de cristão. Como já afirmei, antigamente esta palavra possuía um sentido mais rico. Incluía, por exemplo, a crença no Inferno. A crença num fogo infernal, eterno, foi um princípio essencial da fé cristã até uma época relativamente recente. No nosso país, como deveis saber, deixou de constituir um princípio essencial depois da decisão do Privy Council, que os Arcebispos de Canterbury e de York não reconheceram; mas como no nosso país a religião é determinada pela lei do Parlamento, o Privy Council pôde sobrepor-se à opinião dos Arcebispos. Assim, a crença no Inferno deixou de ser necessária para se ser cristão, razão por que não insistirei nela.
Abordar a questão da existência de Deus, eis uma grande e séria questão, e se me determinasse tratá-la de modo adequado, seria necessário reter-vos aqui até à chegada do reino de Deus. Por isso, espero que me desculpareis por a tratar de um modo um tanto sumário. Sabeis, naturalmente, que a igreja católica erigiu em dogma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela via racional. É um dogma assaz curioso mas não deixa de o ser. Tornou-se necessário introduzi-lo porque em determinado momento os livre-pensadores adoptaram o hábito de declarar que existiam este e aquele argumentos racionais contra a existência de Deus e que a aceitação dessa existência era matéria de fé. Os argumentos e as razões foram expostos minuciosamente e a igreja católica entendeu que lhes devia pôr um ponto final. E adoptou mais esse princípio de que a existência de Deus pode ser demonstrada pela simples via racional, e ela própria estabeleceu o que considerava como argumentos dessa prova. São sem dúvida bastantes, mas contentar-me-ei em invocar alguns.
O argumento da causa primeira é talvez o mais simples e o de mais fácil compreensão. (Mantém que tudo o que existe no mundo tem uma causa, e que percorrendo a cadeia de causas se chegará fatalmente à causa primeira, a que se dá o nome de Deus). Este argumento, suponho, não pesa demasiado na nossa época, porque, entretanto, a noção de causa não é a mesma de outrora. Os filósofos e cientistas têm estudado esse conceito e ele não possui actualmente a força que se lhe atribuía; mas, no entanto, podereis verificar que o argumento da causa primeira é daqueles que não possui qualquer validade. Devo dizer-vos que, quando era jovem e debatia estes problemas muito seriamente comigo próprio, aceitei por largo tempo o argumento da causa primeira, até que um dia, pelos meus dezoito anos, lendo a Autobiografia de Stuart Mill, descobri esta frase: “Meu pai ensinou-me que a pergunta “Quem me criou?” não comporta qualquer resposta porque levantaria imediatamente outra interrogação: “Quem criou Deus?” Esta frase tão simples revelou-me, como ainda creio, a falácia do argumento da causa primeira. Se tudo tem de ter uma causa também Deus tem de a possuir; e se algo existe sem causa tanto pode ser o mundo como Deus — razão da inutilidade desse argumento. Ocorre-me a história do indiano que afirmava estar o mundo assente num elefante e este sobre uma tartaruga; e quando se pergunta: “E a tartaruga?” o indiano responde: “E se mudássemos de assunto?” Na verdade o argumento não tem mais valor do que este.
Não há razão para que o mundo não tenha nascido sem causa; nem, além disso, e por outro lado, que não tenha existido sempre. A ideia de que as coisas têm de ter um começo é uma opinião resultante da pobreza da nossa imaginação. Assim não me parece necessário ocupar mais tempo com o argumento da causa primeira.
A seguir, há o argumento muito conhecido da lei natural. Foi um argumento muito em voga ao longo do século XVIII, especialmente devido à influência de Isaac Newton e da sua cosmogonia. Observavam-se os planetas que giram à volta do Sol segundo a lei da gravitação, e pensava-se que Deus tinha dado ordem para se movimentarem nessa trajectória, razão por que a efectuavam. Essa era, naturalmente, uma explicação fácil e simples que evitava o trabalho de procurar uma explicação para a lei da gravitação.
Actualmente, explicamos a lei da gravitação de um modo um pouco mais complicado, de harmonia com o que Einstein nos ensinou. Não me proponho fazer uma conferência sobre a interpretação einsteiniana dessa lei porque nos ocuparia bastante tempo; em todo o caso, já se não aceita essa espécie de lei natural que fazia parte do sistema newtoniano, onde, por uma razão que se compreendia, a natureza se comportava de modo uniforme. Muitas coisas que considerávamos como leis naturais são actualmente demonstradas como constituindo puras convenções humanas. Sabeis que mesmo no mais longínquo ponto do espaço sideral uma jarda é igual a três pés. É, sem dúvida, um facto importante mas que dificilmente poderá ser classificado como lei da natureza. E quantas coisas mais, tidas como leis da natureza, são do mesmo género?
Por outro lado, até onde chega o nosso conhecimento real sobre os átomos, descobris que eles se encontram muito menos submetidos a leis do que se pensava, e que as leis estabelecidas são apenas médias estatísticas que lembram justamente aquelas que dependem do acaso. Existe, e todos nós a conhecemos, uma lei segundo a qual, no lançamento de dados, o doble de seis sai apenas uma vez sobre trinta e seis, sem que se conceba esse facto como prova de que essa combinação obedeça a qualquer projecto; ao contrário, se o doble de seis saísse sempre é que pensaríamos que se tratava de coisa determinada! A maior parte das leis da natureza são desse género. São médias estatísticas como aquelas leis que dependem do acaso, o que transforma todo este assunto das leis naturais numa coisa menos extraordinária do que anteriormente se pensava.
Além desta verificação, demonstrativa do carácter epocal da ciência, susceptível de mudança de rumo, a própria ideia segundo a qual as leis da natureza implicam um legislador, resulta duma confusão entre a chamada lei natural e a lei humana. Esta, ordena que vos conduzais de certo modo, embora possais conformar-vos com isso ou adoptar não o fazer; mas as leis naturais são uma descrição do modo como a realidade efectivamente se comporta, e pelo facto de serem uma simples descrição da sua acção real não torna necessário sustentar que tem de existir alguém que imponha essa prescrição. A ser necessário isso, teríamos então de responder à seguinte interrogação: Qual a razão por que Deus prescreveu precisamente estas leis naturais e não outras? Se dizeis que Ele assim fez porque quis, sem qualquer razão, passareis então a admitir que existe alguma coisa não submetida a leis, rompendo-se, então, o vosso encadeamento de leis naturais. Mas se afirmais, como o fazem os teólogos ortodoxos, que em todas as leis feitas por Ele havia uma razão para impor estas e não outras — razão que seria naturalmente a de criar o melhor dos mundos, ainda que isso nos pareça duvidoso — concluiremos, então, que há uma causa para as leis impostas por Deus. E Deus teria sido Ele próprio submetido a uma lei, não havendo qualquer vantagem em o ter introduzido como intermediário. Ter-se-á estabelecido uma lei exterior e anterior às ordens divinas, pelo que Deus não serve os propósitos de primeiro legislador. Em resumo: o argumento de lei natural não é tão consistente quanto se pretendia. Estou a tentar seguir uma ordem cronológica na revisão dos argumentos a favor da existência de Deus, dado que estes têm mudado de harmonia com os tempos. Foram de início argumentos difíceis, intelectuais, comportando determinados sofismas. A medida que nos aproximamos da época actual, tornam-se intelectualmente menos respeitáveis e cada vez mais afectados por uma espécie de imprecisão moralizante.
O degrau seguinte desta exposição leva-nos ao argumento do plano. Conheceis esse argumento: tudo no mundo está disposto de modo a nele podermos viver, e se o mundo fosse diferente, ainda que ligeiramente, não seria possível essa existência. Tal é o argumento do plano ou argumento teleológico. Ele assume por vezes uma forma bastante curiosa; por exemplo, sustenta-se que os coelhos têm a cauda branca para facilmente serem descobertos pelo caçador. Não sei o que os coelhos pensariam desta aplicação do argumento. Conheceis aquela reflexão de Voltaire de que o nariz foi visivelmente concebido de forma a poder segurar os óculos. Este género de paródia não estava longe do alvo, tanto quanto se podia pensar no século XVIII, porque depois de Darwin sabemos melhor por que os seres vivos se adaptam ao mundo que os cerca. Não foi o meio ambiente criado para se adaptar a eles, mas sim os seres que evoluíram de modo a ele se adaptarem — este, o fundamento da adaptação. A prova do plano não tem aplicação neste caso.
Quando se examina de perto este argumento do plano, é surpreendente verificar-se que alguém possa acreditar que este mundo, com tudo aquilo que encerra, com os seus defeitos, tenha de ser o melhor que um ser omnipotente e omnisciente tenha podido criar ao longo de milhões de anos. Não o posso aceitar. Imaginai que sois omnipotentes e omniscientes e vos são dados milhões de anos para aperfeiçoar o mundo — não vos seria possível criar nada de melhor do que a Ku-Klux-Klan ou o Fascismo? Além disso, se aceitais as leis ordinárias da ciência, deveis supor que a vida do homem, e a vida em geral, desaparecerá em devido tempo em todo este planeta: é uma etapa do declínio do sistema solar. Numa determinada fase do declínio, chegar-se-á a um conjunto de condições de temperatura e outras, inadequadas ao protoplasma e haverá vida por pouco tempo em todo o sistema solar. Vê-se na Lua o exemplo do que acontecerá na Terra — uma coisa morta, fria, desértica.
Dir-se-á que esta opinião é deprimente e que as pessoas seriam incapazes de continuar a viver se dela participassem. Não acredito nisso; é uma pura tolice. Ninguém se preocupará verdadeiramente pelo que acontecerá daqui a milhões de anos. Mesmo que o afirmem, enganam-se a si próprias. As razões dos seus cuidados são mais imediatas, ou resultam simplesmente duma má digestão; na verdade, ninguém ficará seriamente preocupado ao pensar num acontecimento que se produzirá neste mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por isso, ainda que seja lúgubre supor-se que a vida desaparecerá — suponho que se possa dizer isso, ainda que por vezes, quando considero o que as pessoas fazem da sua vida, chegue a pensar que isso constitui uma consolação — esse sentimento não é suficiente para tornar a vida miserável. Simplesmente, obriga a nossa atenção a voltar-se para outros assuntos.
Abordámos mais uma etapa daquilo a que poderia chamar o rebaixamento intelectual que os deístas mostraram nos seus argumentos e chegamos agora ao capítulo dos chamados argumentos intelectuais a favor da existência de Deus. Sabeis, naturalmente, que existem três argumentos intelectuais a favor da existência de Deus e que todos foram refutados por Kant na Crítica da Razão Pura; mas logo que os refutou inventou um novo, um argumento moral que acreditou ser inabalável. Agiu como muitos outros: no domínio da inteligência era um céptico, mas no campo da moral acreditou implicitamente em máximas que tinha bebido com o leite materno. O que ilustra uma particularidade a que os psicanalistas atribuem tanta importância: a influência exercida sobre nós pelas recordações da primeira infância é extraordinariamente mais forte do que as recordações mais recentes.
Kant, como disse, inventou um novo argumento moral a favor da existência de Deus que, sob formas diferentes foi extremamente usado ao longo do século XIX. Teve toda a espécie de formas. Uma delas consistia em afirmar que não haveria o mal ou o bem se Deus não existisse. De momento, não importa a questão de saber se há alguma diferença entre o bem e o mal, ou se não existe: este é outro problema. O que me interessa agora é que, a existir essa diferença, sereis colocados perante uma nova questão: essa distinção será ou não devida a um decreto de Deus? No caso afirmativo não haverá, para Deus, qualquer distinção entre o bem e o mal e, nesse caso, não constituirá declaração sensata o afirmar-se que Deus é bom. Se dizeis como os teólogos que Deus é bom, torna-se necessário que o bem e o mal tenham uma significação independente dum decreto de Deus, porque as leis de Deus serão boas e não más, independentemente do facto de serem ditadas por Ele. A ser assim, declarais implicitamente que não é pela intervenção de Deus que existem o bem e o mal, mas que as suas essências são logicamente anteriores a Deus. Podeis, sem dúvida, se o desejardes, afirmar que existe uma divindade superior que impôs ordens ao Deus que criou o mundo ou, seguindo o exemplo dos gnósticos2 — partido que muitas vezes tenho considerado como bastante plausível — afirmar que o mundo, tal e qual o conhecemos, foi criado por um demónio num momento em que Deus estava distraído. Isto poderia ser discutido longamente mas não estou interessado em refutar tal ponto de vista.
Existe ainda outra forma muito curiosa do argumento moral, que é: a existência de Deus é necessária para introduzir a justiça neste mundo. Nesta parte do universo que conhecemos reina uma grande injustiça: quantas vezes sofre o justo, prospera o mau, e mal se sabe qual destes dois casos é o mais perturbador; mas, se se pretende que a justiça reine no conjunto do universo, é necessário supor uma vida futura capaz de estabelecer o equilíbrio da existência cá na Terra. Portanto, diz-se, é necessário que exista um Deus, um paraíso e um inferno para que reine a justiça. É um argumento muito curioso. Se o considero dum ponto de vista científico, direi: “Afinal de contas, apenas conheço este mundo. Nada sei do resto do universo, mas na medida em que me é permitido raciocinar com base em probabilidades, direi que este mundo constitui um belo exemplo e que, se a injustiça reina nele, é quase certo que a injustiça reinará igualmente nos outros”. Suponhamos que recebeis um cabaz de laranjas e, ao abri-las, descobris que as de cima estão apodrecidas. Por certo que não direis: “Debaixo devem estar sãs para que o equilíbrio seja restabelecido”, mas sim: “É provável que tudo esteja estragado”. É exactamente assim que raciocinaria um cientista em face do universo. Diria: “Verificamos neste mundo uma quantidade de injustiças e essa é uma razão para se supor que a justiça o não governa; e, consequentemente, tanto quanto compreendo, isso constitui um argumento contra uma divindade e não a seu favor”. Sem dúvida, sei que este género de argumentos intelectuais não convence realmente as pessoas. O que as persuade a acreditar em Deus não é um argumento intelectual mas, geralmente, acredita-se porque se criou o hábito de o fazer desde criança.
E penso que a razão que imediatamente se segue é o desejo de segurança, uma espécie de aspiração à existência de um irmão mais velho que olhe por nós. Isto desempenha um papel muito profundo e leva as pessoas a desejarem acreditar em Deus.
Desejo agora dizer algumas palavras sobre um assunto que penso não ter sido tratado convenientemente pelos racionalistas. É o problema de saber se Cristo foi o melhor e o mais sábio dos homens. Geralmente admite-se que todos devemos estar de acordo com isso. Pela minha parte não o admito, embora existam muitos aspectos sobre os quais estou de acordo com Cristo e talvez em maior número do que os praticantes cristãos. Penso que não poderei segui-lo em tudo mas irei mais longe do que a maior parte dos cristãos. Recordais que Ele disse: “Tendes ouvido dizer: olho por olho e dente por dente. Eu porém digo-vos que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra”.3 Este não é um preceito ou um princípio novo. Foi usado por Lao-Tsé4 e Buda uns cinco ou seis séculos antes de Cristo, embora não seja um princípio a que os cristãos se submetam verdadeiramente. Não duvido que o actual primeiro-ministro,5 por exemplo, seja um cristão muito sincero, mas não aconselho nenhum dos presentes a dar-lhe uma bofetada. Estou certo que descobriria que ele apenas atribui a esse texto um significado simbólico.
Há uma outra máxima que tenho como excelente. Recordais que Cristo disse: “Não queirais julgar, para não serdes julgados”.6 Não acredito que encontreis este princípio nos tribunais das nações cristãs. Cristo disse também: “Dá a quem te pede e não te esquives ao que te pede emprestado”.7 É um bom princípio.
O nosso Presidente lembrou que não estamos aqui para falar de política, mas não posso deixar de observar a luta das últimas eleições gerais.
Há igualmente uma outra máxima de Cristo que me parece importante, mas que julgo não estar muito em voga entre os nossos amigos cristãos. Diz o seguinte: “Se queres ser perfeito, vende os teus bens, e dá-os aos pobres”.8 Eis uma excelente máxima mas que não é muito praticada! Todas são, ao que penso, excelentes — ainda que seja bem difícil viver de acordo com elas. Não pretendo segui-las, mas no fim de contas o caso é diferente para um cristão.
Depois de ter reconhecido a excelência dessas máximas, vejamos outros textos onde se não manifesta a extraordinária sabedoria e suprema bondade que os Evangelhos atribuem a Cristo, omissão feita ao problema da historicidade do personagem. Com efeito, é muito duvidoso que Cristo tenha existido e, se existiu, nada podemos afirmar da sua vida como certo, razão por que não estou interessado nessa difícil questão histórica. Reporto-me apenas ao Cristo tal qual aparece nos Evangelhos e aceito estes como nos são apresentados — e lá descobriremos afirmações que não nos parecem de grande sabedoria.
Entre outras coisas, Cristo pensava que o seu segundo advento se efectuaria entre nuvens de glória e ainda durante a vida dos seus contemporâneos. Existem inúmeros textos que o atestam. Diz ele, por exemplo: “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel, sem que o Filho do homem tenha chegado”.9 E adiante afirma: “Muitos dos que aqui estão não conhecerão a morte sem que vejam o Filho do homem voltar na majestade do seu reino”.10 Há muitas outras passagens onde é bem evidente que acreditou num segundo advento ainda em vida daqueles que o escutavam. De resto, essa era a crença dos seus primeiros discípulos e constituía a base de uma grande parte dos seus ensinamentos morais. Quando diz: “Não vos inquieteis com o dia de amanhã”11, e outras palavras do mesmo género, é porque tinha para breve esse segundo advento e, portanto, decretava o desinteresse pelos negócios terrenos. Conheci um padre que assustou as suas ovelhas ao afirmar que esse advento estaria eminente, mas sentiram-se mais confortadas quando o viram plantar árvores no seu jardim. Os primeiros cristãos, porque tomavam à letra este género de oráculos, abstiveram-se evidentemente de tais iniciativas porque Cristo os tinha persuadido de que era eminente essa segunda vinda.
Vamos versar agora os problemas morais. Quanto a mim há um sério defeito na moral de Cristo, que é a sua crença no inferno. Não posso admitir que uma pessoa profundamente humana possa acreditar num castigo eterno.
Ora Cristo, tal como o descrevem os Evangelhos, acreditava nesse castigo e descobrem-se muitas frases que testemunham um furor vingativo contra aqueles que não aceitavam a sua doutrina — atitude que pode estar de harmonia com um pregador mas que prejudicará a reputação dum ser a quem se atribui uma perfeição extraordinária. Se comparardes Jesus a Sócrates, por exemplo, verificareis que o filósofo era suave e cortês para quem se recusava a escutá-lo. Ao que penso, é muito mais próprio dum sage adoptar essa linha de conduta do que deixar-se dominar pela indignação. Recordem-se as palavras de Sócrates no momento da sua morte e aquelas que correntemente dirigia aos que estavam em desacordo consigo.
Nos Evangelhos ouvireis Cristo exprimir-se deste modo: “Serpentes, raça de víboras, como podereis escapar ao castigo do inferno?”12 Isto era dirigido às pessoas que não apreciavam as suas palavras. Infelizmente, são muitas as imprecações do mesmo estilo, no que se refere ao inferno, nesses textos sagrados. Especialmente, cito aquele que se aplica ao pecado cometido contra o Espírito Santo: “Todo aquele que fala contra o Espírito Santo, não terá perdão neste mundo ou no outro”13. Este texto tem provocado no mundo um número indizível de tormentos. Não aceito que um ser possuindo um grama de bondade natural fosse capaz de instaurar no mundo crenças e terrores deste género.
Cristo diz ainda: “O Filho do homem enviará os seus anjos que arrancarão do seu reino todos os escândalos e aqueles que cometerem o mal, lançando-os na fornalha de fogo, onde haverá choros e ranger de dentes”14. E obstina-se em falar de choros e ranger de dentes, versículo após versículo, parecendo evidente aos leitores que Cristo considerava tudo isso sem qualquer desgosto. Se tal não correspondesse à verdade, essas palavras não apareceriam tantas vezes. Por certo que estais recordados do episódio das ovelhas e das cabras. Aquando o segundo advento, Jesus separará as ovelhas das cabras e dirá a estas: “Afastai-vos de mim, malditas, e ide para o fogo eterno”15. E prossegue: “Se o teu pé é para ti uma oportunidade de pecado, corta-o; porque é melhor entrares na vida eterna coxo, do que, tendo os dois pés, seres lançado no fogo do inferno, o fogo que nunca será extinto; onde os vermes não morrem e o fogo jamais é extinto”16.
As repetições não cessam. Devo dizer que considero toda esta doutrina, segundo a qual o fogo do inferno é a punição do pecado, como a doutrina da crueldade, doutrina que introduziu a crueldade no mundo e tem justificado séculos de torturas. O Cristo dos Evangelhos, tal como os seus Apóstolos o apresentam, deve ser considerado como parcialmente responsável por esses acontecimentos.
Entre outros casos de menor importância há o dos porcos de Gadarena. Não é das atitudes mais gentis introduzir demónios nestes animais e fazê-los precipitar no mar, do alto de uma colina17]. Não era Jesus todo-poderoso e não podia simplesmente afastar os demónios? Mas preferiu alojá-los nos porcos.
Há também a curiosa história da figueira que não tem deixado de me intrigar. Sabeis o que aconteceu com a figueira. “E, ao outro dia, como saíssem de Bethânia, teve fome; e vendo ao longe uma figueira coberta de folhas avançou para ver se encontrava algum fruto. Aproximou-se então da árvore mas encontrou apenas folhas porque não era ainda a estação dos figos. E Jesus disse então para ela: que jamais alguém coma do teu fruto... e Pedro disse para Jesus: Mestre, olhai! A figueira que haveis amaldiçoado secou”18].
Esta é uma história muito curiosa, visto não ser a época própria dos figos e não ser possível responsabilizá-la. Penso que em matéria de sabedoria ou de virtude, Cristo não está tão alto como outras figuras históricas. Nesses aspectos colocarei acima dele Buda ou Sócrates.
Como já disse, não acredito que o motivo que leva as pessoas a aceitar uma religião tenha alguma coisa a ver com o raciocínio. Aceitam uma religião por motivos emocionais. Afirma-se muitas vezes que é prejudicial atacar uma religião, porque ela torna os homens virtuosos. Confesso que não estou convencido disso. Conheceis, por certo, a paródia que Samuel Butler fez deste argumento no seu livro Erewhon Revisited19]. Estais recordados de que um certo Higgs chegou a uma remota região onde passa algum tempo e depois se escapa num balão. Vinte anos depois, tendo aí regressado, ficou surpreendido ao deparar com um novo culto no qual ele próprio era adorado sob o nome de Filho do Sol. Recorde-se que, com efeito, ele subiu aos céus. Estava para breve a celebração da Festa da Ascensão, quando ouviu os prosélitos Hanky e Panky, altos dignitários da religião dos Filhos do Sol, confidenciar um ao outro que nunca tinham visto o chamado Higgs e que esperavam que jamais isso acontecesse. Cheio de indignação, aproximou-se e disse-lhes: “Vou esclarecer neste dia toda esta mistificação e dizer ao povo de Erewhon que eu, Higgs, sou apenas um homem como os outros e que, simplesmente, me servi dum balão para deixar o vosso país”. Responderam-lhe: “Não faças isso, porque todos os princípios morais deste povo estão ligados a esse mito, e se souberem que não subiste ao céu, transformar-se-ão todos em malfeitores”. Persuadido, abandonou o país silenciosamente.
Em face desse preceito, seremos todos pecadores se não observarmos os mandamentos da religião cristã. Parece-me que o povo que se sente seguro das suas crenças se torna muito mais perverso. Facto curioso: quanto mais fervorosa foi a religião numa determinada época e mais profundo o dogmatismo, tanto maior foi a crueldade e pior o estado do mundo. Nos séculos em que a fé foi mais viva e em que os homens aceitaram a religião cristã na sua integridade, tivemos a Inquisição e as torturas. Penso nos milhões de mulheres queimadas como sacrílegas e em todos os horrores de que a religião foi o pretexto.
Basta relembrar a história mundial para nos apercebermos que o progresso, em todos os domínios (humanização da guerra, brandura na escravatura, comportamento para com as pessoas de cor), foi constantemente contrariado pela oposição das igrejas, quaisquer que sejam. Eu afirmo, pesando bem as minhas palavras, que a religião cristã, tal qual é estabelecida nas suas igrejas, foi e continua a ser a principal inimiga do progresso moral do mundo.
Pode ser que penseis que sou demasiado ousado quando faço essa afirmação. Julgo que não. Tomemos um exemplo. Não será agradável referi-lo mas a atitude das pessoas religiosas obriga-nos a isso. Suponhamos que, neste mundo em que hoje vivemos, uma adolescente sem experiência se casa, sem o saber, com um sifilítico. Neste caso, a igreja proclama: “O casamento é um sacramento indissolúvel; obriga-vos a manter a união para toda a vida”. E esta mulher nada pode fazer para impedir que dela nasçam crianças sifilíticas. Tal é o ponto de vista da igreja católica. Ninguém poderá sustentar, a menos que tenha o coração absolutamente fechado ao sofrimento dos outros, que seja conveniente e justo que um tal estado de coisas se deva perpetuar.
Isto não é mais do que um exemplo. Existem ainda muitos outros domínios onde a Igreja, pelo controlo que exerce sobre aquilo a que lhe apraz chamar moralidade, impõe gratuitamente sofrimentos inúteis a um grande número de seres humanos. E sem dúvida, sabemo-lo, manifesta-se como adversária de todo o progresso quando se trata de diminuir o sofrimento neste mundo. Sob o nome de moralidade, etiquetou uma série de regras de conduta que brilham pela sua estreiteza e que nada têm a ver com a felicidade do homem; e quando se diz que é necessário fazer isto ou aquilo em vista à felicidade da humanidade, ela responde que nada tem a ver com o assunto: “A finalidade da moral não é a felicidade das pessoas”.
A religião é fundamentada primeiramente e sobretudo no temor. Por um lado é o terror perante o desconhecido, por outro o desejo de sentir uma espécie de irmão mais velho que esteja ao nosso lado quando nos sentimos receosos ou em dificuldades. O temor é a base deste problema — temor do misterioso, temor do malogro, temor da morte. E o temor engendra a crueldade, razão por que a vemos de mãos dadas com a religião. O temor está na base de uma e de outra. Neste mundo, começámos a compreender as coisas, a dominá-las um pouco com a ajuda da ciência — que vai abrindo caminho pouco a pouco apesar da oposição da religião cristã, das igrejas em geral e de todas as superstições. A ciência pode ajudar-nos a vencer esse covarde terror em que a humanidade tem vivido durante tantas gerações; a ciência pode ensinar-nos, e penso que o nosso próprio coração nos pode também ajudar, a não mais procurar apoios imaginários à nossa volta, a não mais forjar aliados nos céus, mas a concentrar todos os nossos esforços aqui na terra, a fim de fazer deste mundo um lugar onde se possa viver agradavelmente, ao contrário do que têm feito todas as igrejas ao longo dos séculos.
Devemo-nos manter de pé com os nossos próprios meios e olhar francamente para o mundo — ver os seus aspectos bons, seus aspectos maus, suas belezas e suas fealdades; olhar para o mundo tal qual ele é, sem pavor. Conquistar o mundo pela inteligência e não nos deixarmos subjugar como escravos do terror. Todo o conceito de Deus é tirado do velho despotismo oriental. É uma concepção absolutamente indigna de homens livres. Quando sei de pessoas que se curvam nas igrejas confessando-se miseráveis pecadoras, e tudo o mais, tenho isso como desprezível, incompatível com o respeito que devemos a nós próprios. Devemos, ao contrário, olhar o mundo francamente e no seu rosto. Devemos melhorar este mundo e, se ele não é tão bom quanto desejávamos, que ele seja melhor do que o construído no passado pelos outros. Um mundo à nossa medida exige saber, bondade e coragem; não exige uma intensa nostalgia do passado, nem o acorrentar da livre inteligência aos entraves impostos pelas fórmulas que os antigos ignorantes inventaram. O que uma perspectiva do futuro desligada do terror exige é uma visão clara das realidades. O que exige a esperança no futuro não é o refluxo constante a um passado morto, que, estamos certos, será em muito ultrapassado pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar.