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Crítica
17 de Maio de 2012   Filosofia política

Censura brasileira contemporânea

Aluízio Couto

O Brasil, durante 20 anos, foi uma ditadura militar. Como em toda ditadura, uma das primeiras liberdades cassadas no país foi a de imprensa. O procedimento era simples: os militares enviavam censores às redações dos principais jornais. Ao fim do expediente, o censor passava os olhos no jornal já pronto e cortava o que não era de interesse do regime. É difícil imaginar forma mais explícita de censura.

O processo de redemocratização resultou em uma nova constituição. A carta de 1988, ainda vigente, veda explicitamente a censura. Isso, no entanto, não significa que ela acabou. Atualmente, é sobretudo por meio do poder judiciário que se exerce a censura — prática que é conhecida como “censura judicial” ou “censura de toga”. Obviamente, isso não significa dizer que no Brasil de agora a situação é tão ruim quanto a vivida pelo país no período militar. É muito mais seguro publicar uma charge sobre uma política econômica destrambelhada no ano de 2012 do que o era em 1970.

O que pretendo aqui é informar o leitor — por meio de um exemplo real — de que no Brasil ainda existem interferências ilegítimas do poder na liberdade de imprensa, e não, como é claro, afirmar que a censura exercida por anos pelo executivo é igualmente grave àquela praticada hoje por meio do poder judiciário. A primeira é pior do que a segunda. No entanto, o problema ainda existe e vale a pena abordá-lo, tal como vale a pena abordar o problema da violência urbana mesmo ciente do fato de ela ser em geral menor do que já foi. E do mesmo modo como é bom que tentemos reduzir ainda mais os índices de violência urbana, também é bom que tentemos reduzir ao máximo os casos de interferências ilegítimas na liberdade de imprensa, mesmo que ocorram hoje em menor número.

Antes de prosseguir, vale a pena falar um pouco sobre a expressão “interferência”. Já que há tal coisa como interferência ilegítima, podemos falar em interferência legítima na liberdade de imprensa? O estado de coisas caótico e injusto que haveria se não houvesse qualquer interferência na liberdade de imprensa sugere que sim. O que quero dizer com isso é que há censura legítima. Imaginemos, por exemplo, que fosse permitido, a contar de hoje, a publicação em jornal de todos os detalhes acerca da vida pessoal de qualquer pessoa, incluindo senhas de banco. Não se precisa de muita reflexão para concluir que várias vidas seriam gravemente prejudicadas e algumas permanentemente destruídas. A qualidade da vida das pessoas importa, e o bem estar de cidadãos de bem que não querem muito mais do que viver a vida depende de certo grau de censura, tal como aquela que visa preservar a privacidade daquilo que não é da conta de ninguém.

É preciso não cometer o erro de pensar que uma vez que a censura é muitas vezes errada, o será sempre. Da mesma forma que embora matar seja muitas vezes errado, não significa que o será sempre. Separar com clareza os casos de censura legítima e ilegítima é importante. Embora eu não pretenda fazer isso aqui, podemos também dar exemplos de casos em que a censura, caso incidisse sobre eles, não seria legítima: sobre publicações em jornais acerca de políticos com patrimônio inconsistente com a renda declarada, uma vez que o que o modo como enriqueceram é tanto da conta daqueles que neles votaram quanto daqueles que não votaram, bem como da conta da justiça; sobre programas de TV que abordam a qualidade de produtos anunciados por comerciais, uma vez que é de legítimo interesse dos consumidores saber o que estão consumindo e sobre a rotina de trabalho de ministros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), pois a eficiência do judiciário é da conta de todos.

O que os exemplos acima têm em comum é o fato de serem de interesse público. Interesse público não porque toda a população resolveu de súbito querer saber tudo acerca da vida do pobre Epaminondas, que nada mais é do que um cidadão comum que teve o azar de cair no péssimo gosto voyeurista das pessoas. É interesse público porque é legitimamente da conta das pessoas. É da conta do consumidor saber o que está consumindo, mas não é da conta de ninguém o que o Epaminondas faz na cama. Divulgar informações sobre sua vida sexual não fará mais do que o constranger atoa.

Assim, penso que impedir a publicação do que é da conta apenas da vida pessoal do indivíduo (como os gostos sexuais heterodoxos do Epaminondas) é um caso bem-vindo de censura, ao passo que não será um caso bem-vindo de censura impedir a publicação de trabalhos que são, de fato, da conta das pessoas. Uma vez que determinado trabalho jornalístico é da conta das pessoas, por qual razão impedi-las de vê-lo? O exemplo real abaixo é, assim, é um caso ilegítimo de censura:

Porto Alegre, década de 1980. O jornalista Elmar Bones é dono do pequeno jornal “Já”. Bones e seu jornal terão, no futuro, uma história arrepiante para contar. Tudo começa com a fraude na construção de 11 subestações da Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul, que gerou um prejuízo ao patrimônio público de US$ 65 milhões. Em 1995 instalou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso. Dentre os acusados de envolvimento, constava Lindomar Rigotto, irmão de Gemano Rigotto, influente político do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), um dos maiores partidos do Brasil.

De acordo com depoentes na CPI, Lindomar era o responsável por gerenciar as operações fraudulentas. A posição que ele ocupava facilitava as coisas: lotado no cargo de “assistente da diretoria financeira” da estatal gaúcha de energia (cargo especialmente criado para ele), Lindomar ficou a vontade para violar os trâmites necessários para a execução da obra. Um exemplo disso, apontado pela CPI, foi o fato de a licitação não possuir laudo técnico que comprovasse a necessidade da obra. Também de acordo com a CPI, ele favoreceu determinadas empresas no processo licitatório, o que, obviamente, é crime.

Em 1989, porém, Lindomar decide se arriscar na iniciativa privada. Com um sócio, investe em clubes noturnos. Enquanto isso, sindicância interna da estatal gaúcha recomendava a revisão da papelada que havia passado pelas mãos de Lindomar. Já no governo seguinte, a recomendação caiu no colo da então secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul, a economista Dilma Rousseff. A agora presidente ficou arrepiada com o que viu e pediu nova investigação sobre o caso.

As autoridades, no entanto, preferiram esquecer o assunto em nome da velha governabilidade, que nada mais é, no Brasil, do que um acordo que visa a troca de favores. No caso gaúcho, o silêncio sobre a fraude no setor elétrico decorreu do fato de o então governador do estado precisar do apoio do PMDB para se eleger. E, como vimos, Lindomar Rigotto era irmão de Germano Rigotto. Não cairia bem expor como corrupto o irmão de um peemedebista influente. Isso é governabilidade: o governador se cala em troca de apoio e quem dá apoio não vê o irmão em apuros.

De volta a 1995, os resultados da CPI não paravam de sair e as evidências insistiam em comprometer Lindomar. A Assembléia Legislativa do estado, por fim, aprovou o indiciamento de Lindomar e de outras pessoas e empresas envolvidas na trama.

Três anos após a Assembléia aprovar o indiciamento de Lindomar, ele volta às manchetes por um fato bizarro. A prostituta Andréa Viviane Catarina despenca do 14º do apartamento cujo ocupante era Lindomar. No momento do acidente, ele estava em casa. A autópsia da vítima indicou que nela haviam feridas sem ligação com a queda, como lesões no rosto. O episódio rendeu a ele denúncias de homicídio culposo e omissão de socorro. Além disso, o delegado responsável pelo caso incluiu no relatório depoimento de uma testemunha que caracterizava Lindomar como usuário e traficante de cocaína.

Em 1999, é o próprio Lindomar que encontra a morte. Tentando alcançar assaltantes que haviam acabado de roubar uma de suas casas noturnas, ele é atingido por uma bala certeira vinda do cano da arma de um dos bandidos. Terminava ali a conturbada vida do irmão do futuro governador do Rio Grande do Sul. A morte de Lindomar encerrou os processos iniciados contra ele. Isso inclui os processos relativos às fraudes na estatal de energia e os gerados pela morte da prostituta.

Em um texto de quatro páginas datado de maio de 2001 o “Já” publicou reportagem com o título de “O Caso Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas”. A reportagem conta com riqueza de detalhes o que foi narrado acima. A repercussão foi tão boa que rendeu prêmios ao jornal, como o Prêmio Esso Regional. Após isso, abriram-se as portas do inferno.

Germano Rigotto, na época da publicação, preparava-se para sair candidato ao governo do estado pelo PMDB. Não demorou muito para que Bones e seu jornal fossem acionados na Justiça. Curiosamente, quem os processava era Julieta Rigotto, mãe de Germano e do falecido Lindomar. Tratava-se, na época, de uma senhora com cerca de 80 anos.

A mãe do candidato do PMDB processava Bones por calúnia e difamação: ela não tinha ficado satisfeita em ver o finado filho caracterizado como traficante. Já o processo contra o jornal pedia indenização por dano moral. É de se estranhar, no entanto, que dona Julieta tenha processado Bones e o “Já” por uma informação cuja responsabilidade era do delegado responsável pelas investigações da morte da prostituta.

Bones ganhou todos os processos e o jornal nada teve de pagar. O promotor Ubaldo Alexandre Licks Flores foi explícito em afirmar que o conteúdo da matéria veiculada no “Já”, além de não ofender a honra do falecido Lindomar Rigotto, era de claro interesse público. Após duas semanas, Bones recebeu sentença de absolvição pela juíza Isabel de Borba Luca, da 9ª Vara Criminal de Porto Alegre. Pouco tempo depois, dona Julieta entrou com recurso contestando a decisão. Mas o teve negado, em 2003, por desembargadores do Tribunal de Justiça. Era o fim do pesadelo de Bones na área criminal. Mas as coisas estavam prestes a irem mal na área cível (dona Julieta tinha processado o jornalista em ambas as áreas).

O ano era 2003 e Germano Rigotto já era governador do Rio Grande do Sul. Embora a mãe do governador tenha perdido os processos na área criminal, ela jamais os perdeu na área cível – vitórias que coincidem com a estadia de Germano Rigotto no palácio do governo. Com isso, Bones foi condenado a pagar a dona Julieta R$ 17 mil. Em 2005, novo golpe. Bones viu a Justiça penhorar os bens de sua empresa. Em 2009, quando ele já devia R$ 55 mil, um perito foi nomeado com a tarefa de bloquear 20% da receita bruta do jornal. Em 2010, veio o tiro de misericórdia: os advogados da mãe do governador conseguiram o bloqueio das contas pessoais de Bones.

Após tantos achaques, o jornal não resistiu. Bones e o “Já” perderam a batalha contra o poder. Além de não ter mais seu jornal, Bones certamente teria problemas se continuasse a vasculhar a família Rigotto. Jornalistas nessa situação ficam de fato impedidos de divulgar fatos incômodos ao poder por duas razões: a primeira é uma cautelosa autocensura, gerada pelo medo de sofrer nas mãos da Justiça em processos futuros. A segunda são os prejuízos materiais provenientes das perdas judiciais, os quais jogam assuntos mais urgentes no topo da lista de prioridades do jornalista, tais como colocar comida dentro de casa. Eis a censura de toga.

O caso do jornal “Já” é só mais um no Brasil. Em reportagem do dia 30 de julho de 2011, o “Estado de São Paulo” noticiou haver 17 casos de censura judicial no país. Dois casos célebres mostram, separadamente, dois elementos comuns nesse tipo de censura: intimidação e favorecimento dos poderosos por parte dos magistrados (aparentemente, Elmar Bones sofreu com ambos: além de toda a intimidação sofrida com condenações brutais, é de se imaginar que a mãe de Germano Rigotto não tivesse tido tantas vitórias no caso de o filho não ser o governador).

O primeiro caso é o da jornalista Elvira Lobato, que trabalhou na “Folha de São Paulo”. Em 2007, a jornalista publicou reportagem que apresenta indícios de irregularidades no crescimento empresarial de Edir Macedo, dono da Rede Record e da Igreja Universal do Reino de Deus. Após a publicação, a cúpula da igreja de Macedo orquestrou um conjunto de várias ações movidas contra a jornalista em diferentes partes do país. A intenção era fazer com que Elvira Lobato tivesse de começar a se deslocar para vários cantos do país para lidar com as tais ações. Isso, evidentemente, a tiraria de circulação, coisa que pouparia Edir Macedo de ler outras matérias sobre ele.

O segundo caso é protagonizado pelo jornal “O Estado de São Paulo”. EM 2006, Roseana Sarney era candidata ao governo do Maranhão pelo PMDB, partido do pai José Sarney. Nesse ínterim, a operação da Polícia Federal (PF) que recebeu o nome de “Boi Barrica” investigava transações financeiras suspeitas operadas pelo irmão de Roseana, Fernando Sarney. A operação se desdobrou em cinco inquéritos distintos, que tinham objetivo de apurar crimes como evasão de divisas, formação de quadrilha, tráfico de influência e lavagem de dinheiro.

Em 2009, no entanto, o desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), proibiu o jornal de publicar notícias sobre a operação. O recurso que impediu o jornal de continuar o trabalho foi apresentado pelo próprio Fernando Sarney, principal investigado. A liminar que beneficiou Fernando Sarney demorou menos de 24 horas para ser expedida. O desembargador é frequentador do círculo de José Sarney, pai do principal investigado da operação.

Portanto, ainda há censura no Brasil. Embora tenhamos a ventura de não vivermos mais nos tempos da ditadura militar, o fato de por vezes o judiciário ser usado para censurar é algo que merece a atenção não apenas de jornalistas e juristas, mas de todos.

Aluízio Couto

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ISSN 1749-8457