A tradição filosófica ocidental que teve início na Grécia com uma série de pensadores freqüentemente denominados de “pré-socráticos” foi marcada por uma forte atitude crítica relativamente às próprias teorias filosóficas. Num contexto em que as teorias formuladas suscitavam divergências e discordâncias, estando sempre abertas à discussão, à reformulação e a correções, alguns filósofos — os céticos gregos — assumiram uma postura radical: colocaram em xeque as alegações de conhecimento de todas as doutrinas filosóficas, lançando dúvidas sobre que alternativa adotar e, com isso, sobre a nossa capacidade de obter um conhecimento indubitável sobre o mundo. O amplo e aparentemente infinito desacordo em relação às coisas levou os céticos a examinar e opor a cada explicação uma outra equivalente, e, em conseqüência do igual peso, ou eqüipolência, das explicações assim opostas, a suspender o juízo quanto àquilo que alguém deveria acreditar.
Embora seja possível apontar muitos precursores do ceticismo antigo, ou representantes de uma forma embrionária de ceticismo — tais como Demócrito de Abdera e os atomistas posteriores, como Metrodoro (século IV a.C); os mobilistas discípulos de Heráclito, como Crátilo; e os sofistas, sobretudo Protágoras — considera-se que o ceticismo foi fundado por Pirro de Élis (c. 360–270 a.C.). Sabemos alguma coisa sobre a filosofia de Pirro por meio de seu discípulo Tímon de Fliunte, de quem subsistiram alguns fragmentos, já que o próprio Pirro, segundo consta, nada escreveu. Pirro evitava comprometer-se com quaisquer opiniões sobre a natureza das coisas, pois, segundo ele, nem os sentidos nem a razão nos permitiriam conhecer as coisas tais como são. Dada a impossibilidade de conhecermos a natureza das coisas, deveríamos evitar assumir posições acerca disto e agir somente de acordo com as aparências.
Radicalização do exame crítico filosófico, a posição de Pirro posteriormente foi levada adiante por vários pensadores que elaboraram uma série de tropos ou formas de argumentos muito poderosos contrários às pretensões de verdade e conhecimento das demais teorias filosóficas. Ao perguntar em que elas eram baseadas ou o que elas realmente estabeleciam, os céticos colocaram em dúvida a adequação ou confiabilidade das alegações dogmáticas. Dada a relatividade e a diafonia das opiniões, eles questionaram nossa capacidade de decidir e, portanto, de saber se as afirmações dogmáticas sobre o mundo, sobre a natureza real das coisas, sobre o bem ou mal em si, etc., são indubitável ou necessariamente verdadeiras e recusaram todos os supostos fundamentos das suposições aceitas. Como conseqüência da singularidade e indeterminação próprias à filosofia, o ceticismo converteu-se, assim, numa das mais poderosas tradições da história da filosofia.
Num período de mais de seiscentos anos, entre os séculos IV a.C e o século II, os céticos gregos produziram uma grande quantidade de escritos. Apesar disso, infelizmente dispomos na atualidade de um número bastante reduzido de textos provenientes diretamente da tradição cética antiga. Quase tudo o que sabemos sobre o ceticismo antigo se deve a algumas poucas fontes e testemunhos e às obras tardias, tais como: Academica e De Natura Deorum, de Cícero (século I a.C.), Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, de Diógenes Laércio (século III), e especialmente às obras Hipotiposes Pirrônicas e Adversus Mathematicos, de Sexto Empírico (século I).
Esses textos sobre os céticos antigos exerceram pouca influência sobre o pensamento medieval posterior a Agostinho (século IV), e, na verdade, eles estiveram em grande medida inacessíveis até serem recuperados durante o Renascimento. Sua redescoberta, entretanto, contribui para o desenvolvimento do pensamento cético no início da filosofia moderna, como é evidente, por exemplo, nos Ensaios de Montaigne publicados no período de 1570 a 1592. A impressão que a leitura de Sexto Empírico causou em Montaigne foi tão forte que, além de retomar e desenvolver nos Ensaios os principais argumentos da tradição cética compilados por Sexto, ele fez gravar nas vigas de sua “biblioteca” várias sentenças extraídas das Hipotiposes e, numa medalha, a famosa divisa “Que sais-je?”, na qual figurava do outro lado uma balança com os dois pratos em equilíbrio, símbolo da suspensão do juízo e do tema central das Hipotiposes: a eqüipolência, ou igual peso, dos diferentes pontos de vista.
A “crise pirrônica” que Montaigne teve ao ler as Hipotiposes foi vivida por vários filósofos posteriores, inclusive por aqueles cujo objetivo explícito foi refutar o ceticismo, como Descartes (1596–1640) e Berkeley (1685–1753). A força e o impacto do ceticismo foram tão grandes que refutá-lo tornou-se um dos principais desafios da filosofia moderna. Devido a seu enfoque radical contrário às pretensões da metafísica e como resultado também das obras de David Hume (1711–1776), que levou a lógica dos argumentos céticos encontrados em Sexto e em Descartes a suas conclusões céticas extremas, o ceticismo tornou-se um desafio permanente para o pensamento filosófico dos séculos subseqüentes até os nossos dias.
O papel fundamental do ceticismo antigo na formação do pensamento moderno foi reconhecido desde o início da moderna historiografia, a começar por Pierre Bayle (1647–1706). Em seu famoso Dicionário Histórico e Crítico — uma fonte inestimável para o conhecimento dos argumentos céticos empregados no período moderno, tanto nas controvérsias teológicas quanto filosóficas — Bayle considerou Sexto Empírico, principal fonte do ceticismo antigo, o pai do pensamento moderno.
A partir desse tipo de reconhecimento, o interesse pelo ceticismo como objeto de estudos historiográficos cresceu e se refinou. De posse dos testemunhos e das principais fontes que haviam sido recuperadas, os historiadores da filosofia passaram, então, a restabelecer em detalhe as doutrinas dos céticos gregos.
Foi na segunda metade do século XIX, quando as pesquisas historiográficas e filológicas já haviam avançado muito e o corpus cético já havia sido muito bem estabelecido, que Victor Brochard empreendeu o seu famoso estudo: Os Céticos Gregos. É este importante trabalho que aqui apresentamos em tradução para o português.
Publicado em 1887, Os Céticos Gregos foi submetido, originalmente sob a forma de Memorial, em 1884, à Academia de Ciências Morais e Políticas, que lhe conferiu o prêmio Victor Cousin. O ensaio foi acolhido elogiosamente por seu contemporâneo Nietzsche que, na obra Ecce Homo, de 1888, escreveu:
“Aos períodos de trabalho e fecundidade sucede o tempo de distração: vinde a mim, livros agradáveis, livros inteligentes e espirituosos! Serão livros alemães?... Tenho de retroceder seis meses para me surpreender com um livro nas mãos. Mas qual era ele? — Um excelente estudo de Victor Brochard, Les sceptiques grecs, no qual também as minhas Laertiana são bem utilizadas. Os céticos, o único tipo respeitável entre essa gente cheia de duplicidade — de quintuplicidade — que são os filósofos!” (Friedrich Nietzsche, Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 40–41)
Em seu estudo, Brochard propõe uma divisão histórica do ceticismo, a qual lança luz sobre o desenvolvimento da filosofia cética num período de mais de seis séculos. Ele divide a história do ceticismo em quatro fases, cada uma delas abordada separadamente num dos quatro livros de que é composto o seu trabalho. Esses livros são precedidos de uma introdução, em que ele aborda os antecedentes do ceticismo, incluindo aí referências a filósofos pré-socráticos, ao próprio Sócrates e aos socráticos. O Livro 1 trata do ceticismo antigo de Pirro e Tímon de Fliunte (séculos IV e III a.C); o Livro 2 discorre sobre o ceticismo da Nova Academia, entre os séculos III e II a.C, cujos principais representantes foram Arcésilas, Carnéades e Clitômaco; o Livro 3 é dedicado ao ceticismo dialético, cujas principais figuras foram Enesidemo e Agrippa (século I a.C.); e, finalmente, o Livro 4 examina o ceticismo empírico dos médicos Menodoto, Teodás e Sexto Empírico (séculos II e III). As fases abordadas nos livros 1, 3 e 4 corresponderiam à tradição pirrônica, a fase abordada no livro 2, à tradição acadêmica.
São algumas das características centrais da formação da tradição cética — seu sentido, suas rupturas internas e suas ramificações — que são abordados nos quatro livros que compõe Os Céticos Gregos. Os estudos que Brochard dedica a cada uma de suas fases são em si mesmos inteiramente exemplares. Ele se vale da totalidade dos testemunhos disponíveis a fim de caracterizar e reconstituir o pensamento dos principais representantes das diversas fases da tradição cética antiga. Ele mostra, no Livro 1, que a posição de Pirro deriva de uma atitude prática, ao passo que, conforme mostra no Livro 3, a partir de Enesidemo e de Agrippa a radicalização da atitude cética deriva das disputas dialéticas. Ao tratar dos filósofos acadêmicos, no Livro 2, Brochard adota uma posição intermediária entre duas interpretações extremas: uma que os considera céticos radicais, outra que os considera dogmáticos dissimulados. Na reconstituição que faz da posição dos acadêmicos, ele confere credibilidade a seu “probabilismo”. Da mesma forma, ao tratar, no Livro 4, do ceticismo empírico dos médicos Menodoto, Teodás e Sexto Empírico, Brochard mostra que a posição deles comporta duas partes, uma “negativa ou destrutiva”, outra “positiva ou construtiva”. Enquanto a parte destrutiva seria simplesmente uma retomada do ceticismo dialético voltado contra as filosofias dogmáticas, a parte “positiva” representaria os ensinamentos e a prática do empirismo médico grego, que teria fundado uma “arte prática inteiramente análoga àquilo que na atualidade nós chamamos de ciência positiva” (p. 378), tendo com isso realizado um verdadeiro progresso e antecipado “o espírito moderno”.
Historiador meticuloso, Brochard não hesita também, sempre de maneira hábil e sem jamais incorrer em anacronismo, em estabelecer algumas comparações filosóficas entre Carnéades e Kant, entre Enesidemo e Hume, ou entre a medicina cética e o positivismo, estabelecendo, assim, pontos de contato entre as doutrinas céticas antigas e as filosofias da modernidade.
Mais de cem anos após sua publicação, e apesar das importantes contribuições que o estudo do ceticismo recebeu durante o século passado, especialmente nas últimas décadas, a abordagem apresentada por Brochard ainda não foi abalada. Mesmo que os historiadores da filosofia durante esse tempo tenham progredido muito na edição e interpretação dos textos antigos, na reconstituição das doutrinas dos diversos representantes do ceticismo antigo e que algumas interpretações aqui apresentadas tenham de ser completadas ou parcialmente revistas à luz dos estudos contemporâneos, esta obra permanece uma referência obrigatória para os estudiosos do ceticismo antigo.
Para entender melhor o ceticismo grego em suas várias formas e compreender as posições próprias de Pirro, Tímon, Carnéades, Clitômaco, Fílon de Larissa, Antíoco, Arcésilas, Enesidemo, Agripa, Menodoto, Sexto Empírico, dentre outros, um dos melhores guias continua sendo este estudo de Victor Brochard. É o exame histórico exaustivo das doutrinas céticas antigas que torna a presente obra uma referência aos interessados no tema. Ao retraçar as origens do ceticismo grego na riqueza de sua diversidade, ela ajuda a compreender melhor uma das grandes correntes do pensamento moderno, de Montaigne até os filósofos ingleses, cuja influência se faz presente na reflexão filosófica atual.
Jaimir Conte