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9 de Abril de 2006   Filosofia da ciência

Albert Einstein como filósofo da ciência

Don A. Howard
Tradução de Rui Vieira da Cunha

Hoje em dia, o compromisso explícito com a filosofia da ciência quase não tem lugar na preparação dos físicos ou na investigação física. O pouco que os estudantes aprendem sobre temas filosóficos é normalmente aprendido ao acaso, por uma espécie de osmose intelectual. Apanham-se ideias ou opiniões na sala de aulas, no laboratório, e em colaboração com o supervisor. A reflexão cuidada sobre ideias filosóficas é rara. Ainda mais rara é a instrução sistemática. Pior ainda, admitir publicamente um interesse pela filosofia da ciência é frequentemente tratado como um disparate social. Falando com justiça, não são poucos os físicos que pensam filosoficamente. Contudo, as abordagens explicitamente filosóficas da física são a excepção. As coisas não foram sempre assim.

“Independência de juízo”

Em Dezembro de 1944, Robert A. Thornton tinha um emprego novo: ensinar física na Universidade de Porto Rico. Tinha acabado de se formar pela Universidade do Minnesota, na qual tinha escrito a sua tese de doutoramento em “Medição, Formação de Conceitos e Princípios da Simplicidade: Um Estudo em Lógica e Metodologia da Física”, sob a orientação de Herbert Feigl, um conhecido filósofo da ciência. Querendo incorporar a filosofia da ciência no seu ensino de introdução à física, Thornton escreveu a Albert Einstein pedindo auxílio para convencer os seus colegas a aceitar essa inovação. Einstein respondeu:

Concordo plenamente consigo quanto à importância e ao valor educativo da metodologia e bem assim da história e da filosofia da ciência. Hoje, muitas pessoas — e mesmo cientistas profissionais — parecem-me alguém que viu milhares de árvores mas nunca uma floresta. Um conhecimento das bases históricas e filosóficas fornece aquele tipo de independência dos preconceitos da sua geração que afectam muitos cientistas. Esta independência criada pelo conhecimento filosófico é — na minha opinião — a marca de distinção entre um mero artesão ou especialista e um verdadeiro pesquisador da verdade.1

Einstein não estava simplesmente a ser educado: ele queria mesmo dizer isto. Andava a dizer a mesma coisa há cerca de 30 anos. Sabia pela sua experiência na vanguarda das revoluções da física no início do século XX que ter cultivado um hábito mental filosófico tinha feito dele um melhor físico.

Alguns anos após a sua carta a Thornton, numa contribuição para Albert Einstein: Filósofo-Cientista, Einstein escreveu: “A relação recíproca entre a epistemologia e a ciência é de uma espécie notável. Dependem uma da outra. A epistemologia sem contacto com a ciência torna-se um esquema vazio. A ciência sem epistemologia é — se sequer se puder pensar tal — primitiva e confusa”.2

Num artigo de 1936 intitulado “Física e Realidade”, Einstein explicou por que razão o físico não pode simplesmente condescender com o filósofo mas tem de ser ele próprio um filósofo:

Tem-se dito frequentemente, e certamente não sem justificação, que o homem de ciência é um fraco filósofo. Por que razão então não deveria ser a atitude certa do físico a de deixar o filosofar ao filósofo? Tal poderia de facto ser a atitude certa a tomar numa altura em que o físico acredita que tem à sua disposição um rígido sistema de conceitos fundamentais e leis fundamentais tão bem estabelecidas que ondas de dúvidas os não podem alcançar; mas não pode ser certo num momento em que os próprios fundamentos da física se tornaram problemáticos como o são agora. Num tempo como o presente, quando a experiência nos força a procurar um mais novo e mais sólido fundamento, o físico não pode simplesmente ceder ao filósofo a contemplação crítica dos fundamentos teóricos; pois ele próprio sabe melhor e sente mais seguramente onde a porca torce o rabo. Na busca de um novo fundamento, ele deve tentar tornar claro para si próprio até que ponto os conceitos que usa são justificados e necessários.3

Já em 1916, logo após ter completado a sua teoria geral da relatividade, Einstein tinha discutido a relação da filosofia com a física num obituário para o físico e filósofo Ernst Mach:

Como se dá que um bem dotado cientista natural se venha a preocupar com epistemologia? Não existe trabalho mais valioso a ser feito na sua especialidade? É o que eu ouço perguntar por muitos dos meus colegas e pressinto-o de muitos mais. Mas não posso partilhar este sentimento. Quando penso nos estudantes mais capazes que encontrei no meu ensino — isto é, aqueles que se distinguiam pela sua independência de juízo e não apenas pela sua rapidez de raciocínio — posso afirmar que tinham um interesse vigoroso pela epistemologia. Encetavam alegremente discussões sobre os objectivos e os métodos da ciência e demonstravam inequivocamente, através de uma defesa tenaz das suas opiniões, que o tema lhes parecia importante.4

Repare-se que o contributo da filosofia para a física não é uma parte específica de doutrina filosófica, como o empirismo antimetafísico defendido por Mach. É, pelo contrário, a “independência de juízo”. O hábito mental filosófico, argumentava Einstein, encoraja uma atitude crítica face às ideias recebidas:

Os conceitos que demonstraram a sua utilidade na ordenação das coisas facilmente atingem uma tal autoridade sobre nós que nos esquecemos das suas origens terrenas e os aceitamos como dados inalteráveis. Então vêm a ser marcados como “necessidades do pensamento”, “dados a priori”, etc. O caminho do progresso científico torna-se frequentemente intransitável por muito tempo graças a esses erros. Por conseguinte, não é de todo um jogo vão se nos tornarmos experimentados em analisar os conceitos há muito tidos como lugares-comuns e em mostrar as circunstâncias das quais depende a sua justificação e utilidade e como extravasaram, individualmente, dos dados da experiência. Assim, a sua excessiva autoridade será quebrada. Serão removidos se não puderem ser adequadamente legitimados, corrigidos se a sua correlação com as coisas dadas for demasiado supérflua ou substituídos se for possível estabelecer um novo sistema preferido por uma qualquer razão.

Aqui, Einstein está a descrever o tipo de análise conceptual histórico-crítica pela qual Mach era famoso. Este modo de análise encontra-se no coração da argumentação das teorias da relatividade geral e especial e de muitos outros trabalhos revolucionários de Einstein.5 Como se tornou ele esta espécie de físico filosófico? Ler Mach foi uma forma, mas não a única.

“Conhecimento precoce da filosofia”

Einstein era um exemplo típico da sua geração de físicos na seriedade e extensão do seu compromisso prematuro e duradouro com a filosofia. Aos 16 anos, tinha já lido todas as três grandes obras de Immanuel Kant, a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática e a Crítica da Faculdade do Juízo.6 Einstein leu Kant novamente quando estudava no Instituto Politécnico Federal Suíço em Zurique, onde frequentou as aulas de August Stadler sobre Kant no semestre de Verão de 1897. Stadler pertencia ao movimento neo-Kantiano de Marburgo, que se distinguiu pelos seus esforços para enquadrar os aspectos fundacionais e metodológicos da ciência actual no pensamento kantiano.7

Foi também na universidade que Einstein leu pela primeira vez a Mecânica (1883) de Mach e os seus Princípios da Teoria do Calor (1896), juntamente com Parerga e Paralipomena (1851) de Arthur Schopenhauer. Foi provavelmente também lá que leu pela primeira vez A História do Materialismo (1873) de Friedrich Albert Lange, a História Crítica dos Princípios da Mecânica (1887) de Eugen Dühring e Isaac Newton e os seus Princípios da Física (1895) de Ferdinand Rosenberger. Todos esses livros eram, no final do século, bem conhecidos dos jovens estudantes de física intelectualmente ambiciosos.

Um facto revelador do conhecimento de Einstein da filosofia na Universidade é a sua inscrição no curso de Stadler sobre a “Teoria do Pensamento Científico” no semestre de Inverno de 1897. O curso era de facto exigido a todos os estudantes da divisão de Einstein no Politécnico. Pense-se nisso: todos os estudantes de física no Politécnico, uma das universidades técnicas líderes na Europa, tinham de frequentar um curso sobre filosofia da ciência. Um requisito tão explícito não se encontrava em qualquer boa universidade, apesar de em 1896 Mach ter sido nomeado para a recém-criada cadeira de “Filosofia das Ciências Indutivas” na Universidade de Viena, e os estudantes que aprenderam física com Hermann von Helmholtz em Berlim também tiveram uma pesada dose de filosofia. Mesmo se nem todas as universidades tinham um requisito explícito em filosofia da ciência, o curriculum de Zurique diz-nos que os bons jovens físicos tinham de ter mais do que um conhecimento superficial de filosofia.

O interesse de Einstein pela filosofia continuou após a formatura. Pela mesma altura em que começou no seu emprego no registo de patentes em Berna em 1902, Einstein e alguns amigos recentes, Maurice Solovine e Conrad Habicht, formaram um grupo informal de debate semanal ao qual deram o grandiloquente nome de “Academia Olympia”. Graças a Solovine, sabemos o que eles leram.8 Eis uma lista parcial:

Richard Avenarius, Crítica da Experiência Pura (1888).
Richard Dedekind, O que São e o que Devem Ser os Números? (2.ª ed., 1893).
David Hume, Tratado da Natureza Humana (1739; tradução alemã 1895).
Ernest Mach, Análise das Sensações e da Relação entre o Físico e o Psíquico (2.ª ed., 1900).
John Stuart Mill, Sistema de Lógica (1872; tradução alemã 1887).
Karl Pearson, A Gramática da Ciência (1900).
Henri Poincaré, Ciência e Hipóteses (1902; tradução alemã 1904).

Estes são títulos que encontraríamos na estante de muitos brilhantes jovens físicos daquele tempo. Que Einstein e os amigos os lessem por prazer ou auto-aperfeiçoamento mostra quão comum era na cultura científica da época conhecer tais livros e as ideias neles sustentadas.

As sementes filosóficas plantadas no Politécnico e na Academia Olímpia iriam brevemente dar fruto no artigo de Einstein de 1905 sobre a teoria especial da relatividade e em muitos outros pontos do seu trabalho científico. Mas dariam um fruto adicional no facto de o próprio Einstein se tornar um importante filósofo da ciência.

Relações com filósofos

A formação filosófica de Einstein fez uma diferença profunda na sua forma de fazer física. Mas o seu interesse na filosofia da ciência foi mais além. Na década de 30 do século XX tinha-se tornado um participante activo do desenvolvimento da disciplina autónoma da filosofia da ciência. O seu papel evoluiu grandemente através das suas relações pessoais e profissionais com muitos dos mais importantes filósofos da altura, principalmente os fundadores da tradição conhecida como empirismo lógico.

A familiaridade pessoal de Einstein com proeminentes filósofos da ciência começou cedo e de forma algo acidental. Friedrich Adler era também um estudante de física em Zurique no fim da década de 90 do século XIX.9 Apesar de Adler ter estudado na Universidade de Zurique e não no Politécnico, ele e Einstein tornaram-se amigos. A amizade foi renovada em 1909 quando Einstein regressou a Zurique vindo de Berna, para o seu primeiro compromisso académico, na Universidade de Zurique, uma posição para a qual Adler tinha sido o outro finalista.

Por essa altura, Adler tinha-se tornado um célebre defensor do empirismo de Mach, especialmente após a árida crítica que Max Planck dirigiu a Mach numa conferência de 1908 sobre “A Unidade do Quadro do Mundo Físico”. A relação próxima com Mach levou Adler a publicar, em 1908, uma tradução alemã do influente livro de 1906 de Pierre Duhem, Objectivo e Estrutura da Teoria Física.

De Duhem, aprendeu Einstein uma versão do que é conhecido por convencionalismo. Henri Poincaré, outro célebre convencionalista, defendeu celebremente que a definição convencional dos geómetras do “segmento de linha recta” como “o caminho de um raio de luz” colocou a geometria euclidiana a salvo da refutação empírica directa, por exemplo pela triangulação na linha-de-visão de três picos de montanhas, porque qualquer um impressionado pela simplicidade da geometria euclidiana poderia salvá-la simplesmente mudando a definição de linha recta.

O convencionalismo de Duhem era algo diferente do de Poincaré. Defendeu que o que era convencional não era a escolha das definições individuais, mas antes a escolha de toda uma teoria. De acordo com Duhem, são sempre teorias como um todo e nunca afirmações científicas individuais que testamos. O convencionalismo “holista” de Duhem iria tornar-se profundamente embrenhado em Einstein, na sua perspectiva madura sobre a estrutura das teorias e o modo como são testadas.

Foi também em 1909 que a fama de Einstein possibilitou o seu primeiro encontro com Mach. Havia respeito mútuo dos dois lados. Quando Einstein deixou a Universidade Alemã de Praga em 1912, nomeou Philipp Frank seu sucessor. Frank era um discípulo de Mach que se viria a tornar um importante membro do chamado Círculo de Viena de empiristas lógicos. É bem conhecida a biografia de Einstein de 1947 por Frank.10

A mudança de Einstein para Berlim em 1914 expandiu ainda mais o seu círculo de colegas filosóficos. Nele se incluíam alguns neo-kantianos, como Ernst Cassirer, cujo livro de 1921, A Teoria da Relatividade de Einstein, era uma tentativa tecnicamente sofisticada e filosoficamente subtil de enquadrar a relatividade no pensamento kantiano. A relatividade geral colocava um desafio óbvio à famosa asserção de Kant de que a geometria euclidiana era verdadeira a priori, a forma necessária sob a qual organizamos a nossa experiência dos objectos externos.

Hans Reichenbach, um líder socialista estudantil em Berlim no fim da primeira guerra mundial, fundou o posto avançado do Círculo de Viena em Berlim e tornou-se, no empirismo lógico, o mais importante intérprete dos fundamentos filosóficos da relatividade, com livros como Filosofia do Espaço e do Tempo, de 1928. Tinha sido aluno de Einstein em Berlim, e este tinha ficado tão impressionado com as suas capacidades como filósofo da física que, quando o conservador departamento de filosofia de Berlim recusou a Reichenbach um lugar na faculdade em meados de 1920, Einstein maquinou para que se criasse para ele uma cadeira de filosofia da ciência no departamento de física da universidade, que era mais liberal.

O mais importante novo amigo filosófico que Einstein fez nos seus anos em Berlim foi, sem dúvida, Moritz Schlick, que começou por ser um físico que realizou o seu doutoramento sob a orientação de Planck em 1904. A mudança de Schlick para Viena, em 1922, para assumir a cadeira de filosofia da ciência antes ocupada por Mach e Ludwig Boltzmann, marca o nascimento do Círculo de Viena e a emergência do empirismo lógico como um movimento filosófico importante. Antes do trabalho de Reichenbach, a monografia de 1917 de Schlick, Espaço e Tempo na Física Contemporânea, era a mais lida introdução filosófica à relatividade, e a Teoria Geral do Conhecimento, de 1918, teve uma influência comparável no campo mais vasto da filosofia da ciência.11

Einstein e Schlick ficaram a conhecer-se primeiro por correspondência, em 1915, depois de Schlick ter publicado um perspicaz ensaio sobre a importância filosófica da relatividade. Durante os primeiros seis anos do seu relacionamento, Einstein demonstrou grande apreço pelo trabalho de Schlick, mas em 1922 a relação tinha começado a esmorecer. Einstein tinha sido desencorajado pela doutrina cada vez mais estridentemente antimetafísica do Círculo de Viena. O movimento rejeitava como metafísico qualquer elemento de teoria cuja conexão com a experiência não pudesse ser claramente demonstrada. Mas a discordância de Einstein com o Círculo de Viena era mais profunda. Envolvia questões fundamentais sobre a interpretação e o teste empíricos de teorias.

Schlick, Reichenbach e Einstein concordavam que o desafio dos filósofos empiristas da física era formular um novo empirismo capaz de defender a integridade da relatividade geral dos ataques dos neo-kantianos. A introdução, pela relatividade geral, de um espaço-tempo híbrido com curvatura variável era um importante desafio para o kantianismo. Alguns defensores de Kant afirmavam que a relatividade geral, sendo não euclidiana, era falsa a priori. Pensadores mais subtis e sofisticados, como Cassirer, defenderam que Kant estava errado ao reclamar o estatuto de a priori para a geometria euclidiana, mas certo ao sustentar que existe alguma forma espacial a priori matematicamente mais fraca, talvez apenas uma forma topológica.

A filosofia de Mach não estava à altura da tarefa. Não poderia reconhecer um papel cognitivo independente ao sujeito. Schlick, Reichenbach e Einstein, por outro lado, concordavam que os kantianos tinham razão ao insistir que a mente não é uma tábua rasa na qual a experiência se inscreve; que o conhecimento envolve alguma estruturação fornecida pelo sujeito. Mas como poderiam afirmar um tal papel activo do sujeito sem conceder demasiado a Kant? Eram, apesar de tudo, empiristas, acreditando que as razões para sustentar a relatividade geral eram, no fundo, empíricas. Mas em que sentido é o nosso raciocínio empírico se o nosso conhecimento tem uma estrutura a priori?

A resposta final de Schlick e Reichenbach baseava-se fundamentalmente na versão do convencionalismo de Poincaré. Defendiam que o sujeito contribui com as definições que ligam termos teóricos fundamentais como “segmento de linha recta” às noções empíricas ou físicas como “percurso de um raio de luz”. Mas, argumentavam, assim que tais definições são estipuladas por convenção, a verdade ou falsidade empírica de todas as outras asserções é fixada unicamente pela experiência. Mais ainda, uma vez que escolhemos livremente apenas as definições, as diferenças que resultam de tais escolhas não podem ser mais significativas do que expressar resultados de medida em unidades inglesas ou métricas.

Einstein também procurou uma resposta empírica aos kantianos, mas discordava profundamente de Schlick e Reichenbach. Desde logo, como Duhem, julgava impossível distinguir diversos tipos de proposições científicas apenas em princípio. Algumas proposições funcionam como definições, mas não existia qualquer razão filosófica clara para que uma qualquer dessas proposições tivesse de ser considerada como tal. O que para um cientista era uma definição poderia ser uma afirmação sintética, empírica, para outro.

Tal como usado pelos filósofos, “sintético”, por oposição a analítico, significa uma asserção que vai além do que já está implícito nos significados dos termos usados. Uma asserção analítica, por contraste, é uma afirmação cuja verdade depende apenas do significado ou da definição. Um princípio empirista central é o de que não há verdades sintéticas a priori.

Uma razão mais profunda da divergência de Einstein face a Schlick e Reichenbach era o seu receio de que a nova filosofia lógico-empirista tornasse a ciência demasiado parecida com a engenharia. Estava ausente do esquema empirista algo que Einstein considerava muito importante para a física teórica criativa, a saber, “invenções livres” do intelecto humano. Não que o teórico fosse livre de inventar um qualquer esquema. Teorizar estava limitado pelo requisito de adequação à experiência. Mas a própria experiência de Einstein tinha-lhe ensinado que o teorizar criativo não poderia ser substituído por um algoritmo para construir e testar teorias.

Como respondeu Einstein a Kant? Empregou o holismo de Duhem de uma nova maneira. Quando uma teoria é testada, algo tem de ser considerado fixo, de forma a que possamos dizer claramente o que a teoria nos diz acerca do mundo. Mas Einstein argumentou que precisamente por as teorias serem testadas como um todo, e não separadamente, o que escolhemos considerar fixo é arbitrário. Pode pensar-se, como Kant, que se fixa a geometria euclidiana e depois se testa uma física assim estruturada. Mas na verdade testamos a física e a geometria juntas. Por conseguinte, podíamos perfeitamente considerar fixa a física e testar a geometria. É melhor dizer simplesmente que estamos a testar as duas e que escolhemos, de entre as possíveis formas de interpretação dos resultados, perguntando qual delas fornece a teoria mais simples. Einstein preferiu a relatividade geral em relação a rivais igualmente consistentes com as provas porque a sua física mais a geometria espaço-tempo não-euclidiana era, como um todo, mais simples que as alternativas.

Tais questões podem parecer temas filosóficos arcaicos e excessivamente subtis, a deixar de lado. Mas vão ao cerne do que significa respeitar provas na prática da ciência, e são questões sobre as quais ainda debatemos. À medida que a física teórica se aprofunda em reinos menos firmemente ancorados na refutação empírica, à medida que a física experimental se torna cada vez mais difícil e abstrusa, as questões que Schlick, Reichenbach e Einstein debateram revelam-se mais e mais prementes.

Quando a teoria confronta a experiência, como repartir os louros ou a culpa pelo sucesso ou pelo fracasso? Pode a análise filosófica fornecer razões para centrar um teste num postulado individual ou devem o juízo e o gosto decidir o que a natureza nos está a dizer? Os empiristas lógicos procuravam um algoritmo para a escolha da teoria certa. Mas Einstein comparava aspectos cruciais da escolha à “pesagem de qualidades incomensuráveis”.12 Num certo sentido, Einstein perdeu o debate com Schlick e Reichenbach. Em meados do século, o empirismo lógico destes tinha-se tornado a ortodoxia. Mas a divergência de Einstein não passou despercebida, e hoje em dia tem nova vida enquanto desafio a outro renascimento de Kant.13

A filosofia na física de Einstein

De que forma o hábito mental filosófico de Einstein o levou a fazer física de forma diferente? E isso tornou-o, como ele pensava, um físico melhor?

A maioria dos leitores do artigo sobre relatividade especial de Einstein de 1905 repara no seu tom impressionantemente filosófico. O artigo começa com uma questão filosófica sobre uma assimetria na explicação convencional da indução electromagnética: um íman fixo produz uma corrente na bobina móvel através de uma força electromotriz induzida na bobina. Diz-se, por outro lado, que um íman móvel produz uma corrente numa bobina fixa através do campo electromagnético criado pelo movimento do íman. Mas se o movimento é relativo, por que deveria haver qualquer diferença? O artigo prossegue criticando a ideia de determinação objectiva da simultaneidade entre acontecimentos distantes por razões igualmente filosóficas; apenas a simultaneidade de acontecimentos imediatamente adjacentes é directamente observável. Precisamos por isso de estipular quais os acontecimentos distantes considerados simultâneos em relação a um dado observador. Mas essa estipulação tem de se basear numa suposição convencional sobre, digamos, as iguais velocidades de sinais de luz emitidas e recebidas.

Há uma disputa entre historiadores e filósofos da física sobre qual é exactamente a perspectiva filosófica aqui envolvida. Alguma linguagem explicitamente convencionalista no artigo sugere Poincaré como fonte. O próprio Einstein indicou principalmente Hume e secundariamente Mach. Em qualquer caso, o carácter impressionantemente filosófico do artigo de 1905 sobre a relatividade é inconfundível.

As fontes filosóficas de Einstein são menos obscuras no que respeita ao seu compromisso duradouro com o princípio da separabilidade espacial face à não localização da mecânica quântica. Sabemos que Einstein leu Schopenhauer quando era estudante no Politécnico de Zurique e regularmente desde então. Conhecia bem uma das doutrinas centrais de Schopenhauer, uma modificação da doutrina de Kant do espaço e do tempo enquanto formas necessárias a priori da intuição. Schopenhauer enfatizou o papel essencial e estruturante do espaço e do tempo na individuação de sistemas físicos e dos seus estados de desenvolvimento. Espaço e tempo, para ele, constituíam o principium individuationis, a base da individuação. Em linguagem mais explicitamente física, esta perspectiva implica que a diferença de localização é suficiente para fazer dois sistemas diferentes no sentido de que cada um tem o seu próprio estado físico real, independente do estado do outro. Para Schopenhauer, a independência mútua de sistemas espacialmente separados era uma verdade necessária a priori.

Esta forma de pensar fez alguma diferença na física de Einstein?14 Tome-se em consideração outro famoso artigo do seu annus mirabilis, o artigo de 1905 sobre a hipótese dos fotões, que explicou o efeito fotoeléctrico quantizando a forma como a energia electromagnética vive no espaço livre. Um fotoelectrão é emitido quando um quantum de energia electromagnética é absorvido por uma superfície de metal iluminada, sendo o ganho de energia do electrão proporcional à frequência da radiação incidente. O que mais impressionou Einstein no comportamento destes quanta energéticos foi que no chamado regime de Wien, perto da extremidade de energia elevada do espectro de um corpo negro, eles agem como corpúsculos mutuamente independentes em virtude de ocuparem diferentes partes do espaço.

Einstein defendeu que pressupor a validade do princípio da entropia de Boltzmann (S= k logW) para os campos de radiação no regime de Wien implica uma estrutura granular para essa radiação. Graças à forma logarítmica do princípio de Boltzmann, a aditividade da entropia S é equivalente à factorizabilidade da probabilidade conjunta W de dois constituintes espacialmente separados do campo de radiações ocuparem determinadas células de espaço fase. A factorizabilidade de uma probabilidade conjunta é uma expressão clássica da independência mútua de acontecimentos.

Mas havia um problema: o mesmo raciocínio que sugeria uma estrutura quantal da radiação no regime de Wien também implicava que, fora desse regime, a suposta independência mútua dos fotões teria de falhar. A suposição de fotões mutuamente independentes não produz uma derivação da fórmula completa de Planck para a densidade energética da radiação de um corpo negro. Einstein apercebeu-se desse facto, e durante cerca de vinte anos procurou compreender como podia isso ocorrer.

Já em 1909 Einstein se entretivera com a ideia de atribuir um campo de ondas a cada fotão de espécie corpuscular para explicar as interferências, uma falha óbvia da independência mútua. Foi aí que surgiu a ideia da dualidade onda-partícula. Apenas no final de 1924, quando Einstein leu pela primeira vez a nova derivação de Satyendra Bose da fórmula de radiação de Planck, é que percebeu que o que estava em causa era uma nova estatística quântica, na qual as partículas não são independentes não por uma qualquer exótica interacção mas porque a sua identidade as torna indistinguíveis.15

Graças a Bose, Einstein percebeu que o falhanço da independência mútua dos quanta de luz espacialmente separados seria uma característica duradoura da teoria quântica emergente. Mas Einstein tinha aprendido com Schopenhauer a ver a independência dos sistemas espacialmente separados praticamente como uma suposição necessária a priori. À medida que o novo formalismo quântico apareceu em meados da década de 1920, Einstein procurou ou interpretá-lo de maneira compatível com a separabilidade espacial ou demonstrar que se a mecânica quântica não pudesse ser interpretada desse modo estaria fatalmente errada. Em 1927, Einstein produziu uma interpretação de variáveis escondidas da mecânica de ondas de Erwin Schrödinger. Mas desistiu antes da publicação quando descobriu que mesmo a sua interpretação de variáveis escondidas envolvia o tipo de falhanço de separabilidade espacial que Schrödinger mais tarde baptizou como “emaranhamento”.

O mais famoso ataque de Einstein à teoria quântica foi o seu artigo “EPR” de 1935 com Boris Podolsky e Nathan Rosen, que procurava demonstrar que a mecânica quântica era uma teoria incompleta. Muitos leitores acham complicado o argumento de EPR. Poucos sabem que Einstein repudiou o artigo pouco depois da sua publicação, escrevendo a Schrödinger em Junho de 1935 para dizer que o artigo foi na realidade escrito por Podolsky “por razões de linguagem”, e que estava descontente com o resultado porque “o ponto principal estava enterrado por um formalismo excessivo”.

O argumento que Einstein pretendia parte de uma suposição a que chamou “princípio da separação”. Sistemas espacialmente separados têm realidades independentes e a localização relativística impede influências sobreluminais entre acontecimentos de medição espacialmente semelhantes mas separados. Por conseguinte, a mecânica quântica tem de ser incompleta, porque atribui diferentes funções de ondas, logo, diferentes estados, a um de dois sistemas previamente em interacção, dependendo do parâmetro que se escolhe medir no outro sistema. Por certo que uma teoria não pode atribuir dois ou mais estados diferentes à mesma e única realidade física, a não ser que esses estados teóricos sejam descrições incompletas dessa realidade.16

O ponto importante aqui é que Einstein considerava o seu princípio da separação, descendente do principium individuationis de Schopenhauer, quase como um axioma para qualquer física fundamental futura. Em escritos posteriores, Einstein explicou que a teoria de campo, tal como a entendia — segundo o modelo da relatividade geral, e não da teoria quântica de campo — era a expressão de separabilidade mais radical possível. Com efeito, tais teorias de campo clássicas tratam todos os acontecimentos pontuais no contínuo espaço-tempo como mutuamente independentes, sistemas separados dotados dos seus próprios estados físicos reais separados.

Em nenhum outro lugar está mais claramente expresso o profundo compromisso filosófico de Einstein com a separabilidade e a consequente inquietação vitalícia com a mecânica quântica do que numa longa nota que escreveu a Max Born em 1949. Pergunta Einstein “O que tem de ser uma característica essencial de qualquer física fundamental futura?”. A sua resposta surpreende muitos que esperam que ele diga “causalidade”.

Quero apenas explicar o que quero dizer quando digo que devemos tentar ater-nos à realidade física.

Todos temos [...] consciência da situação relativa ao que virão a ser os conceitos básicos fundacionais da física: o ponto-massa ou a partícula não estão certamente entre eles; o campo, no sentido de Faraday-Maxwell, pode vir a estar, mas sem certezas. Mas aquilo que concebemos como existente (“real”) deve de alguma forma estar localizado no tempo e no espaço. Isto é, o real numa parte do espaço, A, deve (em teoria) “existir” de alguma forma independentemente daquilo que é considerado real noutra parte do espaço, B. Se um sistema físico abrange A e B, então o que está presente em B deve de alguma forma ter uma existência independente do que está presente em A. O que está efectivamente presente em B não deveria por isso depender do tipo de medição levada a cabo na parte do espaço A; deveria também ser independente do facto de se fazer ou não uma medição em A.

Se se aderir a este programa, então dificilmente se pode encarar a descrição teórica quântica como uma descrição completa do que é fisicamente real. Se se tentar, ainda assim, encará-la como tal, então tem de se pressupor que o fisicamente real em B sofre uma mudança súbita por causa de uma medição feita em A. Os meus instintos físicos ficam eriçados perante tal sugestão.

No entanto, se se renunciar ao pressuposto de que o que está presente em diferentes partes do espaço tem uma existência independente real, então não vislumbro sequer o que a física deve supostamente descrever. Pois o que é supostamente “sistema” é, no fim de contas, apenas convencional, e não vejo como se pode esperar dividir o mundo objectivamente para se produzir afirmações sobre as partes.17

É assim que um físico-filósofo pensa e escreve.

Filosofia a mais?

Pode-se responder ao argumento de Einstein dizendo que ele demonstra o erro de importar demasiada filosofia para a física. Einstein estava provavelmente errado ao duvidar da completude da mecânica quântica. A confusão que tanto o incomodava revelou-se nas recentes décadas a principal novidade do reino quântico.

Mas tal reacção reflectiria um sério mal-entendido da história. Einstein estava errado, mas não por ser um dogmático filosófico. As suas razões eram científicas bem como filosóficas, sendo o sucesso empírico da relatividade geral uma de entre essas razões científicas. O que o hábito mental filosófico tornou possível foi que Einstein visse mais profundamente os fundamentos da mecânica quântica do que muitos dos seus mais ardentes defensores. E o tipo de questões críticas filosoficamente motivadas que ele levantou, mas não podia ainda responder, só iriam frutificar dez anos após a sua morte, quando foram retomadas por outro grande físico-filósofo, John Bell.

Don A. Howard
Physics Today (Dezembro de 2005)

Notas

  1. A. Einstein a R. A. Thornton, carta inédita datada de 7 de Dezembro de 1944 (EA 6-574), Arquivo Einstein, Universidade Hebraica, Jerusalém, citada com permissão.
  2. P. A. Schilpp, org., Albert Einstein: Philosopher-Scientist, The Library of Living Philosophers, Evanston, IL (1949), p. 684.
  3. A. Einstein, J. Franklin Inst., 221, 349 (1936).
  4. A. Einstein, Phys. Zeitschr. 17, 101 (1916).
  5. A. Pais, Subtil é o Senhor: Vida e Pensamento de Albert Einstein, Gradiva, Lisboa (1999), ainda é a melhor biografia intelectual de Einstein.
  6. Para pormenores sobre as primeiras leituras filosóficas de Einstein, ver D. Howard, “Einstein’s Philosophy of Science”, in The Stanford Encyclopedia of Philosophy, E.N.Zalta, org.
  7. M. Beller, in Einstein: The Formative Years, 1879-1909, D. Howard, J. Stachel, orgs., Birkhäuser, Boston (2000), p. 83; D. Howard, in Language, Logic, and the Structure of Scientific Theories, W. Salmon, G. Wolters, orgs., U. of Pittsburgh Press, Pittsburgh, PA (1994), p. 45.
  8. M. Solovine, org., Albert Einstein: Lettres à Maurice Solovine, Gauthier-Villars, Paris (1956).
  9. D. Howard, Synthese, 83, 363 (1990).
  10. P. Frank, Einstein: His Life and Times, Knopf, New York (1947).
  11. Ver D. Howard, Philosophia Naturalis 21, 616 (1984).
  12. A. Einstein, Autobiographical Notes: A Centennial Edition, P. A. Schilpp, trad. E org., Open Court, La Salle, IL (1979), p. 21.
  13. Um trabalho recente de renascimento kantiano amplamente discutido é M. Friedman, Dynamics of Reason, CSLI Publications, Stanford, CA (2001).
  14. D. Howard, in The Cosmos of Science, J. Earman, J. D. Norton, orgs. U. of Pittsburgh Press, Pittsburgh, PA (1997), p. 87.
  15. D. Howard, in Sixty-Two Years of Uncertainty, A. Miller, org., Plenum, New York (1990), p. 61.
  16. A. Einstein a E. Schrödinger, carta não publicada datada de 19 de Junho de 1935 (EA 22–047), Einstein Archive, Hebrew University, Jerusalem, citado com permissão; D. Howard, Stud. Hist. Phil. Sci. 16, 171 (1985); D. Howard, in Philosophical Consequences of Quantum Theory: Reflections on Bell’s Theorem, J. T. Cushing, E. McMullin, orgs., U. of Notre Dame Press, Notre Dame, IN (1989), p. 224.
  17. M. Born, org., Albert Einstein-Hedwig und Max Born. Briefwechsel 1916-55, Nymphenburger, Munich (1969), p. 223.
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ISSN 1749-8457