Com o Górgias deparamo-nos com uma das mais importantes obras de Platão e também uma das mais longas. (De todos os diálogos, só a República e as Leis são maiores). Em nenhum outro as componentes filosófica e dramática da arte de Platão são tão poderosamente combinadas como no confronto aqui encenado entre Sócrates e os seus sucessivos interlocutores. Platão retoma o antigo tema moral grego, que consiste na escolha entre dois tipos de vida e transforma-o num debate filosófico sobre os princípios da moralidade e a natureza da vida boa. E representa estes objectivos com uma intensidade inesquecível na forma como dá vida a Sócrates e aos seus adversários.
O Górgias é também um texto fundador de duas áreas da filosofia; é o seu maior livro de teoria ética e de teoria política. Alguns destes temas são discutidos no Críton1], no qual Sócrates apresenta as suas razões para não fugir da prisão. Então pode-se dizer que Platão fundou a teoria moral duas vezes: uma primeira vez no Críton e uma segunda vez no Górgias. Mas, evidentemente, Platão foi antecipado neste campo por Sócrates, de uma forma que não podemos determinar. E o poder do Górgias deriva em grande parte do facto de Sócrates neste diálogo representar tanto o indivíduo como a reflexão filosófica de Platão sobre o significado da vida e da morte de Sócrates.
O Críton exemplifica a filosofia moral demonstrando como se pode justificar uma importante decisão prática. O Sócrates do Críton […] sabe que o seu princípio — nunca se deve agir injustamente, nunca se deve fazer mal aos outros, nem mesmo como pagamento do mal que nos é feito — não é um princípio aceite pela maioria das pessoas. [Segundo este princípio, fugir da prisão] seria um acto de injustiça. Assim, Sócrates prefere aceitar a morte. “[…] viver não é o que deve ser mais importante, mas antes viver bem, e nisto consiste a vida nobre e justa” (Críton, 48 b). A injustiça é uma doença da alma e uma vida com a alma doente e corrompida não é uma vida que valha a pena viver (idem, 47 d-e). Se Sócrates é muito correctamente visto como o santo patrono da filosofia moral, isso não se deve somente ao facto de insistir na necessidade de uma reflexão crítica sobre o que se deve fazer, desenvolvendo essa reflexão numa argumentação cuidadosa. No Críton, demonstra também uma confiança incondicional na razão que o guia, enfrentando calmamente a morte, em harmonia com os princípios pelos quais viveu.
Na conversa com Críton, estas teses podem ser tomadas como garantidas, uma vez que são aceites por ambos. […] Assim, no Críton, podemos ver o talento literário de Platão ao serviço de um dos seus objectivos filosóficos centrais: justificar a confiança socrática numa vida de integridade moral. No Górgias, Platão tem o mesmo objectivo numa escala maior e num nível filosófico mais profundo. Aqui, Sócrates é confrontado com interlocutores prontos a pôr em questão as suas convicções mais fundamentais.
O primeiro interlocutor, Górgias, é o famoso escritor, orador e professor, que mostra o poder que a oratória pode alcançar, mas prefere abdicar da responsabilidade moral por qualquer uso que dela se possa fazer. O seu discípulo, Polo, é um admirador daqueles que ganham o poder político por meios imorais ou mesmo criminosos. Finalmente, Cálicles é um produto do novo Iluminismo, um jovem político ambicioso que pretende atacar a noção de justiça e moralidade tal como Sócrates a compreende. Na boca de Cálicles, Platão coloca “a mais eloquente afirmação da causa do imoralismo na literatura europeia”. Confrontado com estes opositores, Sócrates tem de defender não apenas os seus princípios morais mas todo o seu modo de vida.
No Críton, Sócrates exprime sérias dúvidas sobre a possibilidade de um debate racional com interlocutores que não partilhem a convicção de que se deve agir justamente. […] No Górgias, pelo contrário, Platão aceitou o desafio de defender os princípios básicos da moralidade socrática contra os ataques daqueles que defendem a mais drástica alternativa: a procura desenfreada do poder e do sucesso. O confronto que o Críton prevê é amplamente confirmado pelo modo rude, e pouco habitual, com que Sócrates responde a Polo […] (461 e, 463 e, 466 a, b, c) e na hostilidade de algumas partes do diálogo entre Sócrates e Cálicles. Se as paixões são tão intensas, é porque o que está em questão é de extrema importância. Trata-se não só de ganhar o argumento, mas de decidir como se deve viver a própria vida e, se necessário, morrer.
O Górgias relaciona-se directamente com a preocupação moral presente desde a Apologia e o Críton até à República, uma preocupação com a defesa da moralidade socrática face ao perigo radical do cinismo moral e do realismo político (Realpolitik) dos oradores. […] Somente o Górgias e a República expõem o paradoxo na sua versão explicitamente moral: que ninguém age voluntariamente de modo injusto. […].
O Górgias parece reflectir o período inicial do corte dramático de Platão com a política ateniense, marcado pela sua partida para a Sicília. […]
O Hípias Maior deixa-nos com um dilema por resolver. Ou ninguém faz o mal voluntariamente, ou, se alguém o faz, essa pessoa é melhor do que aquela que faz o mal involuntariamente. Uma vez que a segunda alternativa é moralmente falsa, a primeira tem de ser verdadeira. Mas como pode ser verdadeiro que, apesar das aparências em contrário, ninguém faz o mal voluntariamente? Defendo que Sócrates deixa Platão com este paradoxo e que os diálogos representam a resposta dada por Platão.
Uma das linhas de reflexão provocada pelo paradoxo socrático consiste na concepção platónica de uma techné moral, uma arte ou ciência que saiba o que é o bem e o mal, o certo e o errado […] que, no Górgias se baseia na analogia com as artes e ofícios [e que se opõe à retórica de Górgias].
Em todas as obras, Platão pressupõe o mesmo princípio que encontramos em Íon: uma arte ou uma ciência define-se pela referência ao seu objecto. Para cada objecto existe uma e só uma techné (Íon, 537d). Na primeira secção do nosso diálogo, Sócrates leva Górgias a especificar o objecto da retórica como “acerca do justo e do injusto” (454b); e mais tarde alarga-se a “o que é justo e injusto, feio e belo, mau e bom” (459d), em suma, todo o domínio moral. Além disso, Górgias concorda que o orador não ensina sobre o seu objecto, mas apenas persuade (455a). Mais tarde hesita acerca da questão de saber se o orador tem ou não esse mesmo conhecimento. É a sua prontidão em afirmar que o orador tem tal conhecimento que o conduz à aporia (460a). Polo, quando entra no diálogo em defesa de Górgias, começa por renunciar a esta afirmação (461b). Assim Sócrates pode basear a sua própria noção de retórica no pressuposto de que a retórica não é realmente uma techné, uma vez que não tem conhecimento nem ensina acerca do seu objecto.
Correspondendo, contudo, ao objecto em questão, nomeadamente, o domínio da moralidade, tem de haver uma techné genuína com esta competência. […] Esta é o que Sócrates chama politiké, a verdadeira arte da política, da qual a justiça constitui a parte principal. Segundo Sócrates, a retórica vulgar de Górgias é simplesmente a imagem e imitação desta arte [dentro da política] que é a justiça. […]
Assim, Sócrates declara, no fim do diálogo, “Creio ser dos poucos atenienses, para não dizer o único, que cultivam a verdadeira arte política e a põem em prática nos dias de hoje” (521d). Escusado será dizer que o Sócrates que assim aspira a uma tal techné não é mais o Sócrates ignorante da Apologia.
O que está implicado nesta concepção tinha sido dito de forma mais aprofundada na discussão precedente. A arte de que se fala fará à alma o mesmo que a ginástica e a medicina farão ao corpo. Tal arte investigou a natureza daquilo que trata e a explicação causal dos seus procedimentos, de modo a ser capaz de a ambos explicar racionalmente, tal como o médico que, tendo estudado a natureza do corpo e as causas da doença, consegue dar uma explicação para o tratamento (465a e 501a). E tal como os procedimentos do médico estão teleologicamente subordinados ao fim que é a saúde do corpo, também a teoria e a prática da arte política é estruturada racionalmente pela sua relação ao telos, a saúde moral dos cidadãos “fazendo nascer a justiça e a temperança nas suas almas”, tornado o seu pensamento tão nobre quanto possível (504e e 514a). Assim, tendo como objectivo aquilo que é bom para a alma, ou para a pessoa como um todo, a arte moral deve escolher que prazeres são bons e benéficos e evitar aqueles que são maus e prejudiciais (500a). Isto significa que deve satisfazer os desejos que tornam a pessoa melhor, mas não aqueles que a tornam pior (503c, 505b). De acordo com isto, deve mudar os desejos das pessoas, e não submeter-se a eles, usando a persuasão e até a força, se tal for necessário para melhorar os cidadãos (517b, cf. 512a), isto é, fazer nascer a justiça e a temperança e afastar a injustiça e intemperança (504e). Esta é a arte do verdadeiro homem de estado ou, como Platão diz algumas vezes, do orador bom e especializado (504d, cf. 503b). Mas, para fazer a selecção entre os bons e os maus prazeres, o especialista em questão deve saber o que é bom e o que é mau (500b).
Esta concepção de arte política em Platão presente no Górgias apresenta muitas características daquilo que constitui o pensamento político e moral de Platão ao longo da sua obra:
Em todos estes aspectos, o artista político prefigura o rei-filósofo da República. O technicós do Górgias é, obviamente, também o filósofo, uma vez que Sócrates é o único que pratica esta arte.
Podemos voltar agora ao paradoxo do Hípias Menor. Se a justiça é uma arte, por que razão aquele que a possui nunca abusa dela, não faz o mal voluntariamente? O Górgias contém uma dupla resposta. Em primeiro lugar, uma techné genuína é definida não somente pelo seu objecto mas também pelo seu objectivo: seja o que for que se faça, faz-se procurando algo bom: neste caso, o bem daqueles que a recebem. Em segundo lugar, uma vez que o artista em questão tem (por definição) o saber relevante, ele ou ela não pode errar. […] Agora, a fim de evitar cometer o erro, duas coisas são necessárias: primeiro, o desejo, segundo, a técnica ou a habilidade. Por hipótese, se alguém tem a arte, terá a técnica ou a habilidade. O desejo, pelo contrário, pode ser tomado como garantido: “ninguém quer fazer o mal, ao invés, todo aquele que faz o mal, fá-lo involuntariamente” (509e). […]
O paradoxo socrático é assim derivado de duas teses contra Polo: todas as acções são feitas em vista do bem, que é o que realmente se quer (467c-468b) e, uma vez que fazer o mal (agir injustamente) é o maior dos males (469b), não é algo que realmente se queira. Deste modo, todos os males têm de ser feitos involuntariamente, apenas por ignorância. Ninguém que tenha a arte da justiça e, consequentemente, saiba o que é justo, irá alguma vez agir injustamente: ninguém que saiba e tenha o desejo do bem faz o mal. Na condicional “Se alguém faz o mal voluntariamente, então…”, a antecedente nunca é preenchida. Assim se evita com sucesso a conclusão inaceitável do Hípias Menor.
Podemos também ver, a partir do paradoxo aqui formulado, como se passa facilmente à identificação da virtude com o conhecimento. Qual é o estado de espírito ou carácter que distingue um indivíduo virtuoso de um indivíduo imoral? Não pode residir na natureza do seu desejo profundo, se for verdadeiro que todos desejam a mesma coisa, nomeadamente o bem. Os indivíduos desejam praticar acções neutras ou instrumentais apenas se essas acções contribuirem para alcançar fins bons (468a). Deste modo, aqueles que cometem actos imorais ou criminosos fazem-no apenas com a crença errada de que estes actos são bons ou conduzirão ao bem. Se tivessem o conhecimento requerido daquilo que é bom e mau, evitariam essas acções e, em vez delas, agiriam virtuosamente. Assim, a posse de tal conhecimento seria uma condição suficiente para se ser virtuoso e agir virtuosamente.
A identificação da virtude com uma forma de conhecimento não é uma tese explícita do Górgias […]. Quando a unidade das virtudes é derivada da temperança, em 507a-c, a sabedoria está manifestamente ausente da lista de virtudes. […]
Por que razão o Górgias não caracteriza a virtude como conhecimento? […] Há também uma explicação interna à argumentação do Górgias. Na concepção da techné moral e política que é aqui articulada, a virtude surge como um telos, a boa condição das almas daqueles em que esta arte é praticada. O conhecimento moral ou techné é definido em parte pela referência ao seu produto, a excelência psíquica daqueles que são governados e/ou educados. Se a virtude, o produto desta arte ou techné, fosse identificada com a própria arte, esta identificação iria tornar obscura a sua estrutura teleológica. Mas no vocabulário de Platão os termos para arte, conhecimento e sabedoria podem ser usados uns em vez dos outros. Estes termos são aqui aplicados à competência técnica do artista político e não à virtude que ele deve gerar nas almas dos indivíduos. Deste modo, apesar de a virtude não ser, no Górgias, identificada com o conhecimento, encontram-se já a maioria das asserções requeridas para que esta identificação esteja já presente.
[…] [A] refutação socrática consiste mais em testar os indivíduos do que as proposições: Sócrates examina os interlocutores para ver se a sua vida está de acordo com os princípios que professam. As três sucessivas refutações de Górgias, Polo e Cálicles representam o mais brilhante retrato literário de Platão da refutação em acto, onde o carácter do interlocutor é parte essencial da sua derrota dialéctica.
Todas estas refutações são relacionadas primeiramente com problemas da ética normativa: o que torna uma vida boa, e se é sempre do nosso interesse agir de forma injusta. O primeiro diálogo com Górgias trata este tema obliquamente, mostrando que a procura do poder político por técnicas de persuasão de massas pode estar divorciada da questão da justiça e da responsabilidade moral. Com Polo, o problema é enfrentado com firmeza: é melhor cometer ou sofrer a injustiça? Pode o criminoso bem-sucedido levar uma vida boa? Mas é com Cálicles que o desafio à moralidade encontra a expressão mais radical. Para Cálicles, as restrições morais à procura do poder e do prazer são meras convenções que os fracos impõem àqueles que são os seus superiores naturais. Cálicles e Sócrates apresentam, assim, pontos de vista opostos sobre o que constitui a vida boa.
Contra Górgias, Sócrates mostra que alguém que forme os jovens para a liderança e o poder político não pode declinar a responsabilidade moral pelo uso que é feito desta formação. Ao conduzir habilidosamente Górgias a afirmar a omnipotência da técnica da persuasão, depois de este ter admitido que a retórica apenas pode produzir a crença sem conhecimento, Sócrates impede Górgias de rejeitar a responsabilidade moral. “De momento, vejamos primeiro se, relativamente ao justo e ao injusto, ao feio e ao belo, ao bom e ao mau, a situação do orador é a mesma que em relação à saúde e aos objectos das outras artes, ou seja, se, sem conhecer as coisas, sem saber, lhe basta imaginar um processo de persuasão a este respeito para, apesar de ignorante, parecer mais entendido que os entendidos aos olhos dos ignorantes, parecendo homens de bem sem o serem” (459d-e), ao que Górgias é obrigado a responder: “Penso, Sócrates, que quem, porventura, não conheça já essas coisas aprendê-las-á também comigo”. (460a).
A resposta de Górgias não é aparentemente sincera. Ménon diz-nos que Górgias nunca disse que ensinava a virtude, e ria-se daqueles que diziam que o faziam (Ménon, 95c). É, no entanto, forçado a dizê-lo porque (e Polo assinala isso) se envergonhou de admitir que o orador não precisa de saber “o que é justo e bom” e não ensina estas coisa ao aluno que é ignorante nestas matérias (461b). A sua vergonha diz respeito à sua preocupação pela opinião pública e à perigosa situação de ser um estrangeiro que educa os futuros políticos de Atenas. Não há contradição conceptual no modo de Górgias ver a retórica como um livre instrumento do poder político. Mas há uma incompatibilidade pessoal e social entre a expressão pública do seu ponto de vista e a sua posição como educador de uma elite.
A refutação de Polo por Sócrates é mais complexa. Polo afirma que cometer a injustiça é melhor do que sofrê-la, ainda que cometê-la seja mais feio2]. Sócrates defende a tese oposta numa forma deliberadamente paradoxal: “Estou convencido de que eu, tu, as outras pessoas, numa palavra, toda a gente considera pior praticar do que sofrer a injustiça e pior não ser castigado [por injustiça] do que suportar o castigo”(474b). O argumento do Sócrates consiste em mostrar que se cometer a injustiça é mais feio, então também tem de ser pior (mais vergonhoso). A validade do argumento de Sócrates foi muito discutida. O que aqui nos interessa não é a validade do argumento, mas a ênfase colocada no papel da vergonha. […] Segundo Cálicles, o erro de Polo foi o facto de ter admitido que cometer a injustiça é mais vergonhoso; foi refutado porque “se envergonhou de dizer o que pensava”, nomeadamente que a injustiça é realmente bela (admirável) (482e).
Polo é refutado porque não consegue conciliar a sua admiração pelo poder e riqueza, independentemente do modo como são obtidos, com o reconhecimento de que os actos injustos ou criminosos são geralmente olhados como desonrados ou “vergonhosos”. Não dá conta desta censura moral nos termos de prazer e utilidade, porque não tem noção do funcionamento moral da sociedade. Cálicles, pelo contrário, irá empregar os recursos teóricos do contraste familiar entre natureza (phusis) e convenção (nomos) para mostrar que a desonra associada aos actos injustos se baseia somente no nomos, as convenções morais estabelecidas pelos fracos no seu próprio interesse. Para os fortes, pelo contrário, o padrão de honra e desonra é estabelecido, não por convenção, mas por natureza, o que justifica o domínio dos fracos pelos fortes.
Sócrates concorda que os seus dois primeiros interlocutores foram derrotados devido ao seu excesso de vergonha: foi a vergonha que levou Górgias e Polo “a contradizerem-se perante tanta gente, em questões de tão grande importância” (487b). Cálicles aparece como o interlocutor ideal, porque não tem vergonha de falar francamente: ele dirá abertamente “o que os outros pensam, mas não quiseram dizer” (492d).
No entanto, a derrota de Cálicles será acelerada pelo seu sentido de vergonha. A refutação incide sobre a sua tese de que a vida feliz, a vida daqueles que são fortes e independentes de todas as inibições convencionais, consistirá em maximizar o prazer e em satisfazer todo e qualquer desejo. Sócrates começa por lhe perguntar se coçar-se quando se tem comichão é uma satisfação de um desejo, tal como beber quando se tem sede; e até que ponto uma vida vivida a coçar-se é uma vida feliz (494c). Quando Cálicles protesta contra a vulgaridade da questão, Sócrates aconselha-o a não ter vergonha, que foi a falha de Polo e Górgias. Assim, Cálicles responde francamente que alguém que passa a vida a coçar-se tem uma vida feliz e agradável — dependendo das partes do corpo que coça (494d). A próxima jogada de Sócrates é decisiva: pergunta a Cálicles o que pensa da vida dos kinaidos3], o que, falando grosseiramente, designa aquele que gosta de ser o parceiro passivo numa relação homossexual. A lei ática aparentemente trata este acto como prostituição masculina, sendo suficiente para privar a parte culpada dos direitos de cidadania. Cálicles, o político ambicioso que admira as virtudes viris, não pode seriamente descrever a vida do kinaidos como afortunada ou feliz, como Sócrates o incita a fazer. Só pode acusar Sócrates de não ter vergonha de ter levado o argumento até este ponto!
Perante este desafio, Cálicles, em busca da consistência, mantém a identidade entre o prazer e o bem (495a). Mas, de facto, foi derrotado por este primeiro argumento contra o hedonismo, e derrotado pelas consequências vergonhosas da sua tese (495b). Contudo, uma vez que Cálicles não admite a derrota, Sócrates elabora dois argumentos formais contra a equivalência do bem e do prazer. O segundo destes argumentos, aquele que finalmente leva Cálicles a abandonar a sua tese, mostra que, se o prazer e o bem não forem distintos, não haverá base para a superioridade moral dos homens corajosos sobre os cobardes, como Cálicles defende. Neste, tal como no primeiro argumento dos prazeres vergonhosos, não é certamente o hedonismo em abstracto que está a ser atacado, mas o hedonismo enquanto tese defendida por Cálicles. É porque Cálicles é um aristocrata orgulhoso e um político ambicioso que não pode ser um hedonista consistente. A tese, como tal, não é necessariamente inconsistente. É o vínculo entre o homem e a tese que se revela incoerente. É este o motivo pelo qual Sócrates pode afirmar que Cálicles rejeitará a sua tese quando “se examinar correctamente” (495e). Desde o princípio que Sócrates o avisara de que a sua posição o levaria à dissonância […] (482b-c)4].
Os resultados das três refutações são essencialmente negativos: revelam a incoerência entre a vida e a doutrina do interlocutor, uma incoerência que se reflecte na inconsistência entre os diferentes pontos de vista sustentados pelo mesmo homem. Mas como podemos relacionar estes resultados negativos com a doutrina moral positiva apresentada nos paradoxos contra Polo e defendida na secção final do diálogo depois da derrota de Cálicles? Não há dúvida que Sócrates considera a sua tese moral (que cometer a injustiça e escapar sem castigo é o pior dos males) foi estabelecida pelos argumentos refutativos usados para refutar Polo e Cálicles. ([…] 508e-509a)5].
As conclusões estabelecidas contra Polo são apresentadas igualmente como constringentes contra Cálicles e, na verdade, contra qualquer pessoa, de tal modo que ninguém as pode negar sem cair em contradição. Mas como podem argumentações tão personalizadas e, no caso central de Polo, argumentos tão complexos e duvidosos, justificar estas afirmações fortes e universais?
Sugiro que o papel importante atribuído à vergonha nestas três refutações é uma chave para a sua validade. A vergonha reflecte uma concepção platónica que corresponde à nossa noção de uma consciência moral inata, que Platão descreve como um desejo universal do bem. Esta é a tese apresentada no primeiro paradoxo contra Polo: que todos os homens desejam o bem e perseguem-no em todas as suas acções (468b-c, 499e; cf. República, VI, 505d). A vergonha opera neste diálogo como uma intuição obscura do bem por parte dos interlocutores de Sócrates. Talvez seja numa intuição deste tipo que Sócrates se baseia para dizer que Polo ou Cálicles estarão inevitavelmente de acordo com ele ou em desacordo consigo próprios. Porque (como Sócrates afirma) todos desejamos o bem. E o bem é, de facto, a areté6] socrática, a excelência moral e intelectual da alma. E é por isso que ninguém quer ser injusto ou agir injustamente.
A invulnerabilidade à contradição que Sócrates implica na sua tese fundamental — que a areté é o que nós realmente queremos, o nosso verdadeiro bem e felicidade — é reforçada pelo apelo dramático da caracterização de Sócrates como a encarnação da sua própria tese. A caracterização de Sócrates parece fornecer um complemento positivo aos resultados negativos da refutação. Aqui também a mestria de Platão reside na combinação que faz entre os elementos pessoais e doutrinários […] A fim de compreender o significado filosófico, do ponto de vista de Platão, deste enorme poder presente no retrato literário de Sócrates, devemos considerar algumas das implicações da sua afirmação de que todos somos motivados por um desejo racional do bem.
O primeiro paradoxo contra Polo (os oradores e políticos não têm poder, não fazem o que querem, mas apenas o que lhes parece melhor) assenta no pressuposto de que só queremos coisas boas ou só o bem e, assim, façamos o que fizermos, é procurando qualquer coisa boa (ou simplesmente pelo bem — 468b). Para Sócrates é bom aquilo que é bom em primeiro lugar para o espírito: uma acção é boa para mim apenas se melhorar a minha alma, tal como o acto justo o faz. Mas não é uma verdade privada: aquilo que é bom para mim é também para toda a gente. E toda a gente quer o que é bem para si. E, de facto, agir justamente é bom para eles. Assim, toda a gente quer agir justamente, quer o saibam quer não. Ninguém quer agir injustamente, porque (quer o saibam quer não) isso vai fazer-lhes mal, e ninguém quer ser magoado. Quem age injustamente fá-lo (akon) involuntariamente (porque não quer ser magoado) e sem sabê-lo (porque não tem consciência de que praticar aquela acção é prejudicial).
Esta leitura do argumento parece pressuposta no próprio resumo de Sócrates, em 509e: “Polo e eu tivemos ou não razão […] contra a sua vontade?” Isto implica que todos temos um grande e profundo desejo racional, se bem que inconsciente, uma espécie de desejo verdadeiro, de justiça e virtude, uma vez que o que é bom para nós (o nosso bem-estar ou felicidade) consiste na condição justa e virtuosa da alma. Mas se nos faltar o conhecimento ou a techné da justiça e da virtude, não sabemos qual o nosso bem: somos incapazes de identificar o objecto do nosso desejo (o bem intrínseco) e também de assegurar os meios para o atingir (o bem instrumental). […] É requerida uma tal techné tanto para reconhecer o verdadeiro objecto de desejo como para assegurar os meios de o atingir.
[…] Se alguém conseguir ver que a virtude é um bem (e portanto um bem para si) então irá desejá-la. A função da refutação, reforçada pela apresentação de Sócrates como um modelo de virtude, é trazida ao interlocutor e ao leitor até ao ponto em que consigam vê-la. E não é tanto a capacidade dialéctica de Sócrates que o leva a isso, mas a sua habilidade em apresentar aquele profundo desejo do bem que motiva qualquer agente racional, mesmo quando o próprio agente ignora a natureza do seu próprio desejo.
Se é esta a perspectiva de Platão, podemos compreender melhor a importância que o papel da vergonha tem nestas três refutações. Em cada caso, o sentimento de vergonha marca o facto de Sócrates trazer à cena as preocupações morais que o interlocutor tem de reconhecer, as quais, se correctamente compreendidas, o conduzirão a uma percepção correcta da areté como o bem que ele realmente deseja. Tal percepção não ocorre realmente durante o diálogo […].
O efeito no leitor reside fora do diálogo. O que temos no texto é o impacto nos interlocutores; Sócrates manipula o seu sentido de vergonha para os forçar a confrontar-se com a incoerência da sua própria posição e, assim, dar um passo no reconhecimento da ignorância, que é o princípio da sabedoria. […]
[…] Quando a vergonha […] leva Cálicles a reconhecer a incoerência entre uma vida dedicada simultaneamente ao poder político e à satisfação indiscriminada, ele é obrigado, com efeito, a abandonar a procura do “apetite” ou prazer a qualquer preço, a favor do princípio socrático […], segundo o qual tem de haver uma avaliação dos impulsos e da satisfação, segundo um padrão de bem. Assim, na refutação de Cálicles, encontramos, quer uma distinção fundamental entre duas concepções de desejo, quer a inadequação de uma dessas concepções como base de uma teoria coerente sobre a vida boa. Quando Cálicles admite que alguns prazeres são melhores e outros piores (499b), aceita essa tese socrática, ou seja, a escolha racional como critério decisivo da virtude e da felicidade […]. Voltamos imediatamente à noção do bem como objectivo e fim da acção (499e-500a) e, eventualmente, ao desejo racional de felicidade, o qual só pode ser realizado na prática das virtudes (509c e seg). Assim, “ninguém pratica voluntariamente a injustiça e que, portanto, os autores do mal o são sempre contra a sua vontade” (por ignorância) (509e). Como vimos, o desejo racional de bem pode não ser consciente, particularmente no caso de Cálicles. Mas é função da refutação trazer este desejo à consciência. […] [E a contradição resulta do facto] de que os seus desejos conscientes estão em desacordo com esse desejo mais profundo.
A refutação de Cálicles vai além da sua admissão de que alguns prazeres são melhores do que outros, em 499e, até à conclusão em 508b, que afirma a negação directa da sua tese moral: a disciplina7] e a moderação dos apetites é melhor para a alma do que a satisfação incontrolada. Esta conclusão é conseguida por um argumento que assenta fundamentalmente numa concepção das virtudes como ordem e harmonia da alma (taxis, kosmos). Esta concepção é aqui introduzida por meio de uma indução sistemática a partir das artes. Tal como na pintura, arquitectura ou construção de navios, um artista moral e político irá “olhar para a sua obra” de modo a dar-lhe uma forma (eidos) e uma ordem harmoniosa (taxis). Tal como uma casa ou um barco são caracterizados pela ordem e estrutura harmoniosa (kosmos), e também os nossos corpos, também assim será a alma: “não será a alma boa quando caracterizada pela ordem e harmonia, mais do que pela desordem?” Cálicles dá o seu assentimento: “As afirmações precedentes obrigam-nos a admitir a segunda hipótese” (504b).
A necessidade que conduz ao assentimento de Cálicles é estritamente a da analogia. E o mesmo é verdadeiro para o próximo passo, que identifica a ordem espiritual com as virtudes da justiça e da temperança, por analogia com a saúde concebida como o produto da ordem harmoniosa no corpo (504c-d). Assim, é inteiramente baseado nesta analogia com as artes que Sócrates estabelece a superioridade da disciplina moral sobre a satisfação desenfreada no final da refutação de Cálicles, em 505b.
Uma analogia ainda mais forte é introduzida em 508a como suporte da afirmação de que o homem bom é feliz e o mau infeliz (507c).8][…]
Cálicles não o percebeu porque não vira o grande poder da proporção geométrica entre os homens e os mortais.
Esta ideia de que a alma harmoniosa e bem ordenada é semelhante, por um lado, à ordem natural do cosmos e, por outro, às obras de arte bem conseguidas, é a última tentativa […] de assegurar um suporte teórico da convicção de que a vida de Sócrates é não só a melhor, mas também a mais feliz que um ser humano pode querer viver. Desta conclusão, que é “pela posse da justiça e da temperança que as pessoas felizes são felizes, e as pessoas infelizes são infelizes”, Sócrates não pode derivar os paradoxos previamente enunciados contra Polo e Górgias: que cometer a injustiça é pior do que sofrê-la e de que o orador tem de ser uma pessoa justa e conhecer o que é a justiça (508b-c). Estas conclusões são consideradas as mais fortes, estabelecidas por “razões de ferro e diamante”, [nas passagens 508e-509b].
O que torna estes argumentos tão fortes? Sabemos que o argumento contra Polo não é suficientemente forte para estabelecer as conclusões de Sócrates e custa a crer que Platão não estivesse plenamente ciente disso. O argumento positivo contra Cálicles baseia-se completamente na suposição de que o que torna uma coisa boa é o próprio kosmos; e a ordem própria da alma é a temperança e a justiça. Como vimos, esta tese baseia-se na analogia com os produtos da arte humana. […] [E toda a argumentação, à excepção do argumento dedutivo a favor da unidade das virtudes, em 507a] é baseada na analogia. [E Platão conhecia a crítica ao argumento por analogia]. Platão deve ter compreendido que os argumentos positivos do Górgias eram insatisfatórios. E foi para os tornar melhores que escreveu a República.
O que falta [ao Górgias], em primeiro lugar, é uma psicologia moral [tal como é descrita na República]. […]. E também uma teoria do conhecimento […] e uma teoria do objecto do conhecimento […]. Para passar deste technikos do Górgias ao filósofo-rei, necessitamos da doutrina das Formas. […] [E] também de uma teoria do eros […].
No entanto, o que o Górgias nos oferece não é de todo negligenciável. Nesta obra, temos o argumento mais convincente a favor da posição moral de Sócrates no completo colapso da alternativa de Cálicles, com um contraponto positivo no retrato do próprio Sócrates. A refutação mostra que os adversários de Sócrates não podem explicar o bem e o mal, o correcto e o incorrecto, a partir das suas próprias vidas e das suas próprias convicções. O ideal socrático da excelência espiritual é estabelecido pelo único suporte que a refutação pode dar: só no seu caso a sua vida e a sua morte estão em harmonia com as suas doutrinas. […]
O Górgias implica que esta harmonia entre a vida e a crença existe porque as doutrinas de Sócrates estão de acordo com o seu desejo racional de bem, ao contrário das teses dos seus adversários […].
No Górgias as coisas são mais simples, uma vez que o nosso desejo racional de bem está directamente relacionado, não com uma Forma transcendente, mas com o adorno da nossa alma com a virtude que torna uma vida admirável e amada. Aqui […], a vida e a morte de Sócrates são apresentadas como o suporte principal do seu ensino moral […]. Nenhuma teoria e argumento ou prova filosófica que ignore este desejo fundamental em procurar padrões de assentimento ou concordância pode explicar adequadamente a prática do filósofo tal como é retratada nos diálogos de Platão.