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Crítica
5 de Setembro de 2010   Metafísica

Concebibilidade e possibilidade

Matheus Martins Silva

O leitor tem uma tendência natural que todos temos: raciocinar a partir de situações que pode ou não conceber para determinar o que é ou não é possível. Se isto lhe parece muito abstrato, pense no seguinte: ao planejar uma mudança de móveis você pode conceber uma situação em que a mesa caberá na porta para concluir que é possível que ela caiba na porta. Inversamente, se você não pode conceber uma situação em que ela caiba na porta tenderá a pensar que é impossível que caiba na porta.

Essa linha de raciocínio do nosso cotidiano foi levada a sério pelos filósofos e se tornou influente na filosofia. Um argumento famoso é o argumento dos zumbis: os zumbis são réplicas físicas perfeitas dos seres humanos que aparentam fazer tudo o que um ser humano faz — eles mostram sentir raiva, felicidade, tédio e qualquer estado mental associado aos humanos. Só que os zumbis não têm de fato raiva, felicidade ou tédio, porque não têm qualquer atividade mental. Agora conceba uma situação em que esses seres existem e pense nas conseqüências: se pode concebê-lo, então isso é possível, e se é possível, a consciência terá de ser algo distinto de estados físicos, pois todos os fatos físicos nessa situação são os mesmos que existem atualmente — mas esses seres não têm consciência.

Outro argumento é o seguinte: conceba uma situação em que alguém tenha dor sem o seu correspondente neurofisiológico, digamos o disparo das fibras C. Se você consegue visualizar a situação, isto é possível. E se é possível sentir dores sem um estado físico correspondente, então os estados mentais como as dores são diferentes dos seus correspondentes neurofisiológicos e não podem ser reduzidos ao cérebro. Repare que esses argumentos não se limitam a partir de algo que sabemos acerca de dois eventos (que podemos conceber um sem o outro) para concluir algo acerca da própria natureza desses dois eventos (que é possível que um exista sem o outro): também sustentam a conclusão adicional de que os dois eventos são diferentes.

Estes argumentos têm em comum um pressuposto óbvio: o que é concebível é comumente possível. Um meio de explicar esta idéia é a seguinte analogia: assim como por meio dos sentidos podemos compreender um pouco de como as coisas efetivamente são, por meio da nossa capacidade de conceber situações podemos compreender um pouco de como as coisas podem ser. Esta analogia, contudo, é ligeiramente enganadora, pois ao sabermos mais sobre como as coisas podem ser, também sabemos mais sobre como as coisas efetivamente são — por exemplo, que a mente é diferente de estados físicos.

Mas será que o ato de conceber é uma fonte de indício confiável para determinar o que é possível? Há várias respostas negativas para esta pergunta. Uma delas é que não há qualquer indício independente, isto é, que não utilize próprio o ato de conceber sob questão, de que o ato de conceber é um guia confiável do que é possível. Esta objeção, contudo, peca por estabelecer critérios exigentes demais: também não temos indício independente de que a percepção é confiável e nem por isso deixamos de confiar na percepção. Uma objeção mais promissora consiste nos casos de impossibilidades que parecem possíveis: pense em verdades necessárias como a de que a água é H2O, por exemplo. Parece óbvio que podemos conceber uma situação em que a água não seja H2O, mas esta situação não é de fato possível, pois é uma verdade necessária, isto é, dadas todas as maneiras como as coisas podem ser, a água é H2O. Nesse caso, concebo e acredito numa impossibilidade: tenho uma ilusão de que algo é possível quando de fato não o é. Contra-exemplos como este parecem demonstrar de uma maneira devastadora que a nossa capacidade ou incapacidade de conceber é irrelevante para determinar a possibilidade ou impossibilidade.

Uma resposta para essas objeções é que as pessoas nunca podem realmente conceber impossibilidades e assim uma pessoa não pode realmente conceber que a água não seja H2O, pois isto é uma impossibilidade. Se uma pessoa diz ser capaz de conceber esta impossibilidade, devemos redescrever a sua crença, pois na verdade ela não está concebendo o que afirma conceber: tem uma ilusão. O que ela concebe é outra coisa. Contudo, é difícil não ter a suspeita de que esta resposta não funciona muito bem, pois apenas pressupõe o que está em causa: se o que se concebe não implica o que é possível, podemos conceber que a água não é H2O, pois não há ligação entre o que se pode conceber e o que é possível.

Um argumento melhor para sustentar a relação entre o que se concebe e acredita ser possível é o seguinte: uma pessoa que acredita conceber que a água poderia não ser H2O não concebe uma situação impossível, mas sim uma situação que podemos redescrever, em que há algo semelhante à água. Por exemplo, ela pode conceber uma situação em que exista um líquido transparente que sacia a sede e preenche os rios, mas não é H2O. O que esta pessoa concebe é uma situação em que um líquido similar à água exista e seja distinto de H2O e não uma situação em que a água é distinta de H2O, pois isto é impossível: a água é H2O.

Esta explicação é esclarecedora, mas tem alguns problemas: pense nos casos em que concebemos impossibilidades matemáticas — eu posso acreditar erradamente que 15 ao quadrado é 245, quando na verdade é 225. Este é um caso óbvio em que uma pessoa pode conceber erradamente uma impossibilidade como possível, tornando o recurso à capacidade de conceber suspeito. Se não for possível explicar por que a capacidade de conceber falha nesses casos de ilusão, não é possível manter a sua confiabilidade na prática. Várias tentativas de resolver esses problemas foram propostas. Uma delas é que se nos restringirmos aos meios relevantes de conceber, a capacidade de conceber será um guia confiável para a possibilidade — por exemplo, só o que concebemos de maneira clara e distinta é possível.

Qualquer que seja a resposta a esses problemas, é importante não perder de vista a nossa falibilidade: o nosso uso dos indícios acerca do que é ou não possível, tal como o nosso uso de qualquer outro indício, é falível. Se não descartamos o uso de outros indícios por serem falíveis, também não devemos descartar o uso da capacidade de conceber.

Matheus Martins Silva

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