Início Menu
24 de Julho de 2022   Lógica

Condições necessárias e condições suficientes

Paulo Ruas

A linguagem vulgar é muitas vezes vaga, imprecisa e ambígua. No último caso, isto acontece quando os termos que utilizamos para comunicar admitem mais do que uma interpretação, podendo a mesma expressão assumir diferentes significados ou designar diferentes coisas (objectos, acontecimentos, etc.). A expressão “ser humano”, como é sabido, pode ser interpretada no sentido biológico para designar os membros da espécie Homo Sapiens, ou no sentido psicológico, relativo a pessoa. O conjunto de indivíduos a que nos referimos é, num caso e noutro, diferente: os dados disponíveis indicam que os Neandertais eram seres racionais e conscientes de si, embora com um genoma distinto do nosso. Os membros desta espécie teriam de ser considerados pessoas – de acordo com o significado que é habitual atribuir à palavra – mas não eram Homo Sapiens. Para clarificar o significado de um termo e identificar com precisão aquilo a que nos referimos ao usá-lo, é possível proceder de diferentes maneiras – por exemplo, apontando para um objecto que exemplifique a propriedade que se deseja evocar, ou definindo-o de uma maneira explícita. Nas considerações que se seguem, ocupar-me-ei apenas com a última destas circunstâncias.

Adoptemos como guia e modelo a palavra “triângulo”. Como qualquer outro termo genérico, é possível distinguir nela dois aspectos complementares: a sua intensão e a sua extensão. Por intensão, entende-se geralmente o significado do termo, i. e., o conceito ou propriedade que lhe está associado – p. ex., ser um polígono e ser constituído por três lados. Por extensão, entendemos o conjunto de objectos que exemplificam estas propriedades, i. e., toda e qualquer figura que tenha a propriedade de ser um polígono ou a de ter três lados. Fixar o significado de um termo através de uma definição explícita permite, portanto, identificar de forma não ambígua os objectos que fazem parte da sua extensão. É através do recurso ao significado de um termo que se lhe pode determinar a referência.

As definições explícitas fornecem-nos um conjunto de critérios (ou de condições) que nos permitirão decidir se um determinado objecto a pertence ou não à extensão de um termo. Como se viu acima, a definição de “triângulo” contempla duas condições que qualquer figura terá de satisfazer de maneira a ser considerada um triângulo – ou que deverá exemplificar no caso de pertencer à extensão deste conceito: 1) ser um polígono; 2) ser constituído por três lados. Estamos, pois, a exigir a satisfação de cada um destes critérios para incluir uma figura geométrica na extensão do conceito de triângulo. Isto significa, na prática, que cada uma das propriedades mediante as quais o conceito de triângulo é definido é uma condição necessária para a pertença de um objecto à extensão do conceito.

Ser um polígono é uma condição necessária para ser um triângulo porque todos os triângulos são polígonos. Ao adoptar esta condição como necessária, ficamos a saber que a definição de triângulo é exaustiva: não corremos o risco de deixar fora da sua extensão figuras que dela façam parte. Daí que para expressar este facto seja útil recorrer a uma condicional:

  1. Para todo o x, se x é um triângulo, então x é um polígono.

O mesmo acontece com a propriedade de ser constituído por três lados. Também neste caso sucede que ser constituído por três lados é uma condição necessária para ser um triângulo e, portanto, que, ao adoptar este critério, garantimos que a nossa definição inclui tudo o que queremos que ela inclua. Assim, expressamos este facto como ficou já indicado:

  1. Para todo o x, se x é um triângulo, então x tem três lados.

O que torna as condicionais 1 e 2 aptas para exprimir que ser um polígono e ser constituído por três lados são condições necessárias para alguma coisa ser um triângulo resulta das condições de verdade das condicionais do modo indicativo: se o antecedente for verdadeiro, uma vez que todos os triângulos são polígonos e possuem três lados, o mesmo terá sempre de acontecer com o consequente (de outra maneira, a condicional seria falsa.)

Sabemos que todos os triângulos são polígonos. No entanto, esta propriedade, por si só, não basta para determinar adequadamente a extensão do conceito de triângulo: todos os triângulos são polígonos, mas existem polígonos que não são triângulos – por exemplo, aqueles que têm quatro lados. Ora, quando se trata de estabelecer a extensão do conceito de triângulo, pretendemos incluir nela todos os triângulos e unicamente os triângulos. Embora cada uma destas condições seja necessária para uma figura ser um triângulo, nenhuma é, por si só, suficiente. Não basta ser um polígono ou ter três lados para ser um triângulo. Precisamos, para tal, de identificar uma propriedade ou conjunto de propriedades que estejam presentes em todos os triângulos e, em simultâneo, apenas nos triângulos. Com isso, ficamos a saber que a nossa definição é não apenas exaustiva como adequada.

A solução é a seguinte: embora ser um polígono ou ter três lados não sejam, por si sós, condições suficientes para alguma coisa ser um triângulo, o facto é que o são em conjunto: apenas os triângulos exemplificam, em simultâneo, as propriedades de serem polígonos e de serem constituídos por três lados. Assim, expressamos este facto através da condicional

  1. Para todo o x, se x é um polígono e x tem três lados, então x é um triângulo.

Dadas as condições de verdade das condicionais do modo indicativo, em conjunto com o facto de apenas os triângulos exemplificarem em simultâneo as propriedades de serem polígonos e de terem três lados, se o antecedente for verdadeiro, o consequente também o é. Por outras palavras: a verdade do antecedente é suficiente para a verdade do consequente.

Em resultado disto, para fixar o significado de um termo genérico e determinar a sua extensão de forma exaustiva e adequada, precisamos de condições necessárias e suficientes. Ora, dado que no caso da palavra “triângulo” estas duas propriedades são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes, a definição assume a forma da bicondicional:

  1. Para todo o x, x é um triângulo se e somente se x é um polígono e x é constituído por três lados.

Na definição acima (ou noutra semelhante), a expressão “se e somente se” deverá entender-se do seguinte modo: “se” refere-se às condições suficientes e à circunstância de estas ocorrerem como antecedente de uma condicional cujo consequente é o termo a definir; “somente se”, por sua vez, refere-se às condições necessárias e à circunstância de estas ocorrerem como consequente de uma condicional cujo antecedente é o termo a definir.

Estas considerações, a respeito da maneira de expressar condições necessárias e suficientes, aplicam-se, no entanto, a um âmbito mais vasto do que o sugerido. Podemos dizer, por exemplo, que ser português é uma condição necessária para ser açoriano, que ser amarelo é uma condição suficiente para ser colorido ou que ser livre é uma condição necessária e suficiente para ser responsável, embora em nenhum destes casos estejamos a definir seja o que for. No entanto, cada uma destas asserções deixa-se representar por uma condicional por razões antes expostas (decorrentes das condições de verdade das condicionais):

  1. Se alguém é açoriano, então é português.
  2. Se uma superfície é amarela, então é colorida.
  3. Uma pessoa é livre se e somente se é responsável.

No primeiro caso, dado que todos os açorianos são portugueses, estamos a excluir a eventualidade de alguém ser açoriano e não ser português; no segundo caso, dado que apenas uma superfície colorida pode ser amarela, excluímos a eventualidade de algo ser amarelo e não ser colorido; e, no terceiro caso, uma vez que todos os seres livres, e estes, respondem pelos seus actos, excluímos a eventualidade de alguém ser livre e não responder pelos seus actos ou a de alguém responder pelos seus actos e não ser livre.

Este resultado é generalizável para quaisquer outros casos do mesmo tipo.

Paulo Ruas

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457