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Crítica
29 de Março de 2011   Ética

A pobreza das objecções à clonagem humana reprodutiva

John Harris
Tradução de Vítor João Oliveira

A Dolly, a ovelha favorita do planeta, nasceu a 5 de Julho de 1996 e morreu a 14 de Fevereiro de 2003 (descanse em paz). Desde então, inúmeras objecções têm sido apresentadas à ideia de usar o processo de clonagem que a criou para criar seres humanos. Ainda que a clonagem humana reprodutiva tenha provavelmente pouca relevância científica e, excepto em casos raros, um uso limitado enquanto tecnologia reprodutiva, as sugestões de que o uso da tecnologia da clonagem para criar seres humanos é em princípio antiético são inteiramente infundadas.

Quando o nascimento da Dolly foi relatado na Nature, em 27 de Fevereiro de 1997, a surpresa pelo feito e a celebração da ciência foram ultrapassadas pela reacção compreensivelmente hostil à própria ideia de clonagem. Esta hostilidade conduziu ao que é de facto uma proibição planetária à clonagem reprodutiva. Mas será esta proibição justificável? Não acredito que o seja e o que vem a seguir explica porquê.

Sugiro que um princípio fundamental desta sociedade, e de todas as democracias merecedoras desse nome, é que a liberdade humana não seja limitada a não ser que se apresente uma boa razão para isso. Creio que deveria ser perturbador para qualquer pessoa permitir que as nossas sociedades sejam empurradas à força para a oposição à clonagem humana por uma combinação do que só se pode considerar histeria e preconceito.

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Dúvidas?

Haverá algo de errado com a clonagem humana?

Há três tipos principais de argumentos contra a clonagem humana reprodutiva: afirma-se que não é segura; afirma-se que é prejudicial para a criança resultante; ou afirma-se que a duplicação de um dado genoma é de algum modo uma coisa má. Consideremos rapidamente estes argumentos.

Segurança

A questão da segurança, por não ser a mais importante, não nos deve ocupar demasiado. É claro que não devemos clonar humanos se isso não for seguro ou pelo menos não for suficientemente seguro. É importante salientar que este não é um argumento que oferece objecções centrais à clonagem. Trata-se de um argumento que seria bom contra a introdução de qualquer novo tipo de tecnologia. O apelo à segurança, por enquanto cogente, não pode justificar a histeria que referimos. Por exemplo, não exigimos leis globais contra as vacinas para a SIDA, embora, tanto quanto saibamos, ainda não esteja disponível qualquer vacina realmente segura (ou eficaz); nem nos manifestamos contra a perspectiva de permitir que os seres humanos deixem crescer asas, embora não saibamos se isso será algum dia seguro ou eficaz. Ainda que a segurança seja sempre uma preocupação legítima, em questão estão diferenças importantes quanto à nossa preocupação em função do grau de segurança, ou da falta dela. Devemos recordar que dar à luz da forma normal não é um procedimento “seguro” nem para a mãe nem para a criança; é de tal modo inseguro para a mãe que é sabido que é mais seguro, para a mãe, fazer um aborto nas primeiras semanas da gravidez. Apesar disso, não se considera habitualmente que as preocupações de segurança constituam argumentos poderosos contra a procriação. Assim, quando se invoca a questão da segurança enquanto preocupação relativa a qualquer procedimento médico, quando temos realmente de escolher, é preciso colocar a questão concreta relativa aos graus de segurança e às possibilidades alternativas. A “segurança”, em absoluto, não é o argumento decisivo que se pensa. Além disso, considerando que o grau de segurança é inaceitavelmente relativo quanto aos ganhos possíveis, não é um argumento contra a clonagem em si, mas contra todo e qualquer procedimento que tenha uma razão custo-benefício desfavorável. É também por natureza contingente: uma vez resolvidos os problemas de segurança num grau satisfatório, as objecções tornar-se-ão inconsequentes.

O bem-estar da criança

O segundo tipo de argumento contra a clonagem diz respeito ao bem-estar da criança clonada que possa vir a nascer. Os argumentos que não se referem à segurança referem-se ao ónus das expectativas que podem vir a sobrecarregar a criança, ou à ambiguidade do seu estatuto.

Expectativas

A maioria dos pais tem expectativas relativamente aos seus filhos. Com efeito, pode-se pensar que os pais que não têm fortes expectativas relativamente aos seus filhos são muitíssimo irresponsáveis. É improvável que os pais que têm fortes expectativas relativamente aos seus filhos se preocupem apenas com o desporto e com o treino físico, mas não se preocupem com a sua educação, e não cuidem de oferecer um ambiente disciplinado que requeira, por exemplo, educação musical, ou educação noutra arte qualquer. A mãe que passa horas ao piano com o seu filho ou o pai que controla ansioso o treino de hóquei ou de futebol da sua filha não são habitualmente vistos como ameaçadores para os seus filhos, embora possam estar motivados por expectativas e esperanças fortes.

Muitos pais têm filhos na expectativa de que estes venham a assegurar o futuro do negócio ou da quinta da família; outros podem muito bem ter em mente a perspectiva de os seus filhos virem a cuidar deles na reforma ou na doença. As expectativas parentais são normais e normalmente desproporcionadas. Mas não entramos em pânico por isso, nem procuramos regulamentação ou legislação para as controlar. Não há razão para supor que os pais de crianças clonadas sejam radicalmente diferentes dos actuais. É provável que, como a maioria dos pais, acabem por ver as suas expectativas e esperanças evaporar-se no caldeirão da vida e a abalroar contra a rocha da autonomia individual. Não há razão para supor que as crianças clonadas venham a ser menos rebeldes ou independentes do que as outras, nem que os pais de tais filhos venham a conseguir lidar de forma mais formidável com a rebeldia e a independência natural do que a generalidade dos pais actuais. É claro que há aqui o pressuposto de que quem se puder clonar a si próprio será particularmente desqualificado para ser pai ou mãe, talvez devido às falsas expectativas que se presume terem e devido à provável força neurótica dessas expectativas. Ambos os defeitos destes pais ou mães prováveis são possíveis, mas devemos salientar que não é habitual declarar alguém incapaz de ser pai ou mãe com base nas falsas expectativas que tem sobre a parentalidade ou relativamente às virtudes e capacidades prováveis da criança resultante. Nem examinamos a força das suas expectativas iniciais. Aqui, como em todos os casos em que se alega que os estados mentais dos pais são inaceitavelmente prejudiciais, precisamos de mais indícios de que tais estados mentais causam dano, na verdade, precisamos de melhores indícios quanto à probabilidade de o dano ocorrer e quanto ao grau do dano, antes de nos atirarmos para a regulação e o controlo.

Ter ideais quanto à estrutura mental apropriada para a procriação, e quanto aos seus propósitos, está muito longe de constituir um indício de que quem pensa de modo diferente é tão imoral que se deve impedir as suas escolhas procriadoras por meio de legislação. Não devemos confundir os nossos ideais e preferências com princípios morais; nem devemos imaginar que, por estarmos fortemente convictos das nossas preferências, temos necessariamente o direito de obrigar os outros a aceitá-las. A alegada “ambiguidade” das origens dos possíveis clones e dos papéis dos seus “pais” pode constituir uma razão válida para nos preocuparmos, mas não para os condenarmos. Um adulto que se clone a si próprio provavelmente agirá como mãe da irmã gémea que criou; contudo, o cenário em que irmãos mais velhos agem como se fossem pais de irmãos mais novos é bastante comum e, embora não seja frequentemente o ideal, não é o tipo de coisa que cause pânico e indignação generalizada.

Onora O’Neill (2002) faz uma reviravolta em alguns dos velhos argumentos relativos à protecção da criança no contexto da clonagem humana reprodutiva (clonagem) e ao fazê-lo visa de alguma forma alguns dos meus textos sobre este assunto. Salientando que tenho defendido que a clonagem segura é moralmente aceitável, insiste que a clonagem é “algo que nenhuns pais responsáveis planeariam”. Sugere a autora:

Os futuros pais que, pela via da clonagem, usam tecido reprodutivo e material genético de si próprios ou dos seus familiares pretendem dar existência a uma criança com relações familiares confusas e ambíguas. As relações familiares são confusas quando diversos indivíduos desempenham o papel de um; são ambíguas quando um indivíduo desempenha o papel de muitos. (2002: 67-8)

Para O’Neill, essa confusão e ambiguidade é um anátema. É pouco claro por que razão está tão preocupada com a confusão e a ambiguidade. Indícios decorrentes do divórcio, adopção, famílias de acolhimento e reprodução assistida, sugerem que as crianças são capazes de lidar com uma grande quantidade de confusão e ambiguidade nas relações familiares sem que isso cause dano significativo.1

Quando é racional ajuizar que um indivíduo não teria uma vida que valesse a pena se viesse a nascer em circunstâncias particulares, então não só temos razões poderosas para não fazermos nós próprios essas escolhas, como, se isso estiver de facto ao nosso alcance, também temos razões poderosas para impedir que os outros as fizessem — se necessário, por meio de legislação e regulamentação. Contudo, quando consideramos que as circunstâncias de uma pessoa futura são inferiores às ideais, mas não tão más que as privem de uma existência valiosa, então não há justificação moral para impor os nossos ideais aos outros. Isto é particularmente verdadeiro quando não há em absoluto qualquer indício empírico de danos, mas apenas a impressão de que esses danos “poderiam acontecer”.

Há situações em que é difícil generalizar e o recurso a um exemplo pode ajudar-nos. Podemos concordar que é segura a previsão de que a pobreza terá más consequências para os filhos, e que, em circunstâncias ideais, os filhos deveriam ser criados num ambiente sem de pobreza nem carências. Podemos até pensar que se nós próprios fôssemos bastante pobres, não quereríamos ter filhos, ou não teríamos justificação para os ter. Contudo, algo bem diferente seria defender que, por sermos pobres, não nos devia ser permitido ter filhos ou que devia ser-nos negada assistência na reprodução. Também não pareceria uma boa política permitir que aqueles que têm o poder o possam usar à sua discrição para negar assistência na reprodução com base nestes pressupostos gerais.

Sabemos que, no caso da clonagem, a menos que essas tecnologias sejam usadas, a criança particular em questão nunca existirá (Burley e Harris, 1999: 2000a). Uma criança futura clonada racional encararia o risco ligeiro de confusão como o preço justo a pagar pela sua existência, a não ser, claro, que tal confusão transformasse de facto a sua vida num inferno.

O problema da não identidade

Este aspecto foi trazido à atenção filosófica por Derek Parfit (1984: cap. 16) e tem sido frequentemente denominado “o problema da não identidade”. Nesta secção apresento alguns dos argumentos que desenvolvi em conjunto com Justine Burley (Burley e Harris, 1999).

Considere-se os dois casos seguintes. O primeiro é de Parfit e envolve uma possível mãe de 14 anos. Esta rapariga decide ter um filho. Por ser tão nova, acaba por dar à sua criança um mau princípio de vida. Embora isso tenha efeitos negativos na vida da criança, é previsível que a sua vida valerá a pena. Se a rapariga tivesse esperado alguns anos, teria um filho diferente, ao qual daria um início de vida melhor (Parfit, 1984: 358).

Uma analogia com este caso será a seguinte: uma mulher decide ter um filho por meio da clonagem. Porque escolheu conceber desta forma, dá à criança um mau princípio de vida. Embora isso tenha efeitos negativos na vida da criança, é previsível que a sua vida valerá a pena. Se tivesse escolhido procriar por meios alternativos, teria tido um filho diferente, ao qual daria um início de vida melhor.

Em ambos os casos, os dois cursos de acção estão abertos à mãe provável. Ao criticar o curso de acção destas mulheres na primeira opção disponível (a saber, respectivamente, a concepção aos 14 anos e a clonagem reprodutiva), as pessoas poderiam defender que as decisões de ambas as mães seriam provavelmente piores para os seus filhos (Parfit, 1984: 359). Contudo, como refere Parfit, embora as pessoas possam afirmar isso quanto às decisões tomadas, não conseguem explicar o que há de objectável nelas. Não o conseguem porque nenhuma das duas decisões pode ser o pior para cada uma das crianças nascidas; a alternativa para ambas seria não chegar a existir. Se a rapariga de 14 anos esperar para conceber, nascerá uma criança completamente diferente. Do mesmo modo, se a mulher escolher não clonar e em vez disso conceber por meio da procriação natural, a criança a nascer seria completamente diferente. Assim, as teses acerca da incorrecção de optar pelo primeiro curso de acção em cada um dos casos anteriores não podem ser teses sobre a razão pela qual estes filhos foram prejudicados. A possibilidade de estas crianças viverem é melhor do que a possibilidade de não existirem.

Copiar o genoma humano

Será errado ou até mau duplicar o genoma humano? Contrariamente à crença popular e à histeria que tem caracterizado as discussões sobre a clonagem, a clonagem humana reprodutiva é um processo do qual a humanidade tem uma experiência vasta e encorajadora. Os gémeos idênticos são clones naturais. Têm feito parte da natureza e da experiência humana desde os primórdios, e são bastante comuns. Aproximadamente três em cada mil nascimentos são de gémeos idênticos; isto significa que num país com a dimensão da Inglaterra haverá cerca de 200 mil. Onde está o indício de que é cruel produzir genótipos idênticos? Onde está o indício de que aos gémeos falta individualidade ou que são prejudicados pela existência de alguém que tem genes idênticos?

O genótipo não é o fenótipo; os genes influenciam, mas não determinam os traços que as pessoas virão a ter. Qualquer pessoa que tente reproduzir-se a si própria dando origem a um clone estaria equivocada pois isso não é pura e simplesmente possível. Podem ser tolos, mas não serão necessariamente malvados. Temos o direito de impedir a malvadez, mas será que temos o direito de impedir a ingenuidade?

Dignidade humana

Defende-se, por vezes, que a duplicação do genoma humano é contrária à dignidade humana. Esta ideia está frequentemente ligada à ética kantiana. Encontramos um exemplo típico nos textos de Axel Kahn:

A criação de clones humanos apenas pela vida da separação de sequências de células, está, de um ponto de vista filosófico, em óbvia contradição com o princípio expresso por Immanuel Kant: o da dignidade humana. Este princípio exige que um indivíduo — e eu alargaria o conceito para incluir a vida humana — nunca deve ser pensado como meio, mas sempre como fim. Criar vida humana com o propósito exclusivo de preparar material terapêutico não seria claramente em prol da dignidade da vida criada. (1997a: 119)

A ideia de usar indivíduos como meios para fins de outros é por vezes designada de “instrumentalização” (Maclaren, 1997), mas é muito difícil separar usos legítimos e ilegítimos dos outros para alcançar fins próprios. O respeito pela dignidade humana exige que o indivíduo nunca seja usado exclusivamente como meio (ver Harris, 1997: 754; Kahn, 1997a: 320). Podemos então evitar instrumentalizar os outros se a sua participação nos nossos planos fizer também parte dos seus planos — ou seja, se tiverem consentido em ser usados por nós.

Quando, por exemplo, uma criança é concebida para vir a ser “filho ou herdeiro” ou para “tomar conta da quinta ou do negócio da família” (como acontece frequentemente em inúmeras culturas), não é claro em que medida se aplica o princípio de Kant. Ou se atribuem aos pais outros objectivos que possam estar de acordo com o princípio de Kant, ou a eventual autonomia da criança — e o seu claro e substancial interesse na sua própria existência e o benefício que dela colhe — tem precedência sobre a questão trivial dos motivos parentais (Harris, 1998: 121–31; 145-57).

A preservação do genoma humano

“A preservação do genoma humano enquanto herança comum da humanidade” é condição necessária para a UNESCO (1997) e é usada como argumento contra a clonagem. Será que isto significa que o genoma humano deve ser “preservado intacto” — quer dizer, sem variação — ou será que quer dizer simplesmente que não devemos “reproduzir-nos assexualmente”? Não se pode dizer que a clonagem tenha impacto na variabilidade do genoma humano; a clonagem apenas repete um genoma existente, mas isso não reduz a sua variabilidade, apenas não a aumenta. Mesmo que alguém no planeta viesse a usar a clonagem como o seu único método reprodutivo, isso não reduziria a diversidade do genoma humano, apenas deixaria a diversidade como está. Contudo, por causa dos custos e das dificuldades técnicas, para não referir o facto de a reprodução sexual oferecer habitualmente outros incentivos aos que a usam, é improvável que os níveis de clonagem venham alguma vez a ser tão elevados que possam pôr em causa a lotaria dos genes humanos e a sua variabilidade.

O direito dos pais

Defende-se, por vezes, que os filhos têm “direito a ter dois pais” ou “direito a serem o produto da mistura dos genes de dois indivíduos”. Se o direito a ter dois pais for entendido como o direito a ter dois pais sociais, então esse direito só seria violado pela clonagem se a família identificada para a criar fosse monoparental. É claro que isto será tanto o resultado da clonagem como do uso de quaisquer outras técnicas reprodutivas (ou mesmo da reprodução sexual). Além de que se tal direito existe, então tem sido amplamente violado, o que tem originado “inúmeras” vítimas, não havendo indícios significativos de qualquer mal duradouro resultante da violação desse suposto direito. Com efeito, a trágica existência de tantas viúvas de guerra por esse mundo fora, e o sucesso que a maioria delas alcança na educação dos seus filhos, é um testemunho eloquente de que os temores manifestados relativamente à clonagem são exagerados.

Se, por outro lado, interpretarmos o direito a ter dois pais como o direito a ser o produto da mistura dos genes de dois indivíduos, então a suposição de que este direito é violado quando o núcleo da célula de um indivíduo é inserido no óvulo esvaziado de outro indivíduo é falsa no sentido em que é habitualmente entendida. Há pelo menos um sentido em que um direito expresso desta forma pode ser violado pela clonagem, mas não de um modo tal que conduza a uma objecção. Primeiro, é falso pensar que o clone é o filho genético do dador de núcleo. O clone é o irmão ou a irmã gémea do núcleo do dador e o produto genético do núcleo de ambos os pais dadores. Assim, este tipo de indivíduo clonado é, e será sempre, o filho genético de dois genótipos separados, de dois indivíduos geneticamente distintos, independentemente do número de vezes que possam vir a ser clonados ou re-clonados.

Qual é o benefício da clonagem?

A clonagem reprodutiva pode ajudar algumas pessoas a ter filhos geneticamente aparentados que de outra forma não poderiam ter. À parte isso, os objectivos estritamente reprodutivos da clonagem não são nem obviamente importantes nem urgentes; mas isso não equivale a afirmar que a proibição da clonagem é indiferente. Como sugerimos, devemos ter relutância em aceitar restrições à liberdade humana, por mais triviais que sejam os seus propósitos, sem que tenham sido apresentadas razões suficientes para isso. O argumento deste capítulo mostrou que essas razões podem de facto não existir.

Diz-se que uma razão maior para desenvolver a clonagem de animais é o facto de permitir, em particular, o estudo de doenças genéticas e, em geral, o desenvolvimento da genética. Ainda não é claro se a clonagem humana através da substituição do núcleo traz ou não grandes vantagens. Seguramente que permitirá que casais inférteis possam ter filhos geneticamente aparentados; oferece a possibilidade, como salientamos, de prevenir algumas doenças causadas pelo ADN mitocondrial; e pode ajudar “portadores” de doenças ligadas ao cromossoma X e com síndromes de autossomia recessiva a terem os seus próprios filhos genéticos sem correr o risco de lhes transmitir essas doenças. Também é possível que a chamada clonagem terapêutica possa vir ser usada para criar “peças sobressalentes”, por meio, por exemplo, da criação de células estaminais para terapias regenerativas, e possivelmente para terapias que visam a extensão da vida humana (Harris, 2002a, 2002b, a publicar)

A Dolly acaba com a divisão entre células germinais e somáticas

A clonagem por substituição do núcleo tem implicações interessantes (evidentes desde que os sapos foram clonados por meio deste método, na década de 60), e que aparentemente não foram noticiadas.2 Há actualmente uma moratória global sobre a manipulação da linha germinal humana, mas as intervenções terapêuticas da linha somática são, em princípio, permitidas. Contudo, inserir o núcleo desenvolvido de uma célula de um adulto num óvulo enucleado transforma a célula numa linha germinal de células. Isto tem três efeitos importantes. Primeiro, elimina a divisão clara entre linha germinal e linha somática do núcleo, porque cada núcleo da célula de um adulto é em princípio “traduzível” para a linha germinal do núcleo de uma célula por meio da transferência do seu núcleo, o que cria um clone. Segundo, permite que as modificações da linha somática de células humanas se tornem modificações da linha germinal. Suponha o leitor que está permanentemente a introduzir uma cópia normal do gene da adenosina deaminase em células da espinal-medula de um indivíduo que sofra de graves problemas de imunodeficiência (como o que afecta o chamado “rapaz bolha” que tem de viver numa bolha protectora com ar limpo) com óbvios efeitos terapêuticos benéficos. Isto é uma modificação da linha somática. Se uma célula geneticamente modificada da espinal-medula deste indivíduo fosse permanentemente clonada, o genoma modificado passaria para o clone por meio da linha germinal. Trata-se assim de um benefício que pereceria com o recipiente original, não passando para protecção do seu filho, mas que poderia ser dado às gerações futuras por meio da clonagem.3 O terceiro efeito é que mostra que a difundida divisão moral entre linha germinal e terapia da linha somática é ainda mais ridícula do que se supunha previamente.

Imortalidade

É claro que alguns indivíduos podem desejar que a sua descendência não tenha apenas os seus genes, mas o seu genótipo. Contudo, não há forma de virem a fazer um indivíduo que fosse uma cópia de si mesmos. Depois de tantos anos, as influências ambientais seriam radicalmente diferentes, e uma vez que cada escolha, por mais insignificante que seja, dá origem a um ramo novo na árvore da vida com consequências imprevisíveis, o santo graal do uso da clonagem para alcançar a imortalidade estaria condenado a não ser mais do que uma busca infrutífera. Podemos concluir que as pessoas que se clonassem a si mesmas seriam tolas e mal informadas, mas é duvidoso que fossem imorais ou que as suas tentativas prejudicassem a sociedade ou os seus filhos de forma significativa.

A clonagem terapêutica associada à investigação de células estaminais pode permitir que o corpo humano se repare indefinidamente, acabando por conduzir a um tipo de imortalidade. Algumas pessoas temem-no; eu, pela minha parte, creio que os perigos têm sido claramente exagerados, mas uma vez que esta possibilidade, hoje remota, não envolve a clonagem reprodutiva, não a explorarei aqui.4

Os argumentos de Jeremy Rifkin

Jeremy Rifkin apresentou dois argumentos oblíquos contra a clonagem que merecem alguma atenção. O primeiro faz parte da sua preferência geral por um tipo de biotecnologia em detrimento de outro; o segundo diz respeito à introdução, no debate sobre a clonagem, de questões relativas à propriedade intelectual em geral e às patentes em particular.

Curar doenças e prevenir doenças

Em O Século Biotec, Rifkin repete a sua propalada distinção entre usar a biotecnologia “para “corrigir” síndromes e para travar o progresso da doença” e “os esforços concebidos para curar pessoas que ficaram doentes”, por um lado, e, por outro, a tarefa de “explorar as relações entre mutações genéticas e interruptores ambientais com a esperança de apresentar uma abordagem da saúde preventiva mais sofisticada e baseada numa compreensão científica mais ampla” (1998: 228). Conclui que é errado recorrer a ambos os métodos, e julga correctamente que a questão a que temos de responder é sobre qual será preferível: “depois de ponderadas, produzem mais mal do que bem?” (1998: 232). Rifkin pensa saber qual é a resposta para esta pergunta e apresenta-a assim:

“Começar por não causar dano” é um princípio firmemente estabelecido e respeitado na medicina. O facto é que, quanto mais poderosa for a tecnologia quanto a produzir alterações e transformações no mundo natural — quer dizer, reconfigurando o ambiente para fins imediatos, eficientes e de curto prazo — mais provável será que rompa e destrua as redes de relações duradouras e que crie desequilíbrio em alguma parte do meio ambiente. Qual das duas visões rivais da biotecnologia — engenharia genética ou práticas ecológicas e saúde preventiva — é mais radical e aventureira, qual provocará provavelmente maiores desequilíbrios, qual é mais conservadora e qual reduzirá provavelmente os danos imprevistos a níveis próximos do zero? Creio que a resposta é óbvia. (1998: 233-4)

É necessário esclarecer diversos aspectos. O primeiro é que não tenho objecções ao uso da biotecnologia que Rifkin considera preferível; mas creio haver fortes razões para resistir a qualquer tentativa de a tornar uma abordagem única. Precisamos das duas e não de uma só. Porquê? Primeiro, porque quando Rifkin pergunta “Qual das duas visões rivais da biotecnologia [...] reduzirá provavelmente os danos imprevistos a níveis próximos do zero?” não está a colocar a questão central. Embora não apresente qualquer indício que sustente a sua tese (e, de facto, não o possa fazer), esta é radicalmente tendenciosa porque implica que nos tenhamos apenas de preocupar com níveis de dano “próximos do zero”. Recordemos que a engenharia genética que ele desaprova procura desenvolver “esforços para curar pessoas que estão doentes”. Se estes métodos de engenharia genética não forem desenvolvidos, há o perigo sério de que as pessoas que já estejam doentes possam vir a ser negligenciadas e acabem por sofrer ou até morrer. Estes serão os perigos actuais e reais enfrentados pelas pessoas que podem vir a sofrer e a morrer se as suas doenças não forem tratadas e se não se promover a investigação que as possa ajudar. A estratégia preferida de Rifkin de “práticas ecológicas e saúde preventiva” visa prevenir que as pessoas adoeçam no futuro e não ajudar quem está hoje doente. Não sabemos que estratégia salvará mais pessoas, mas não devemos escolher entre elas, porque ambas condenam ao sofrimento e à morte doentes actuais que poderiam ser ajudados, nomeadamente por não provocarem as mudanças ecológicas necessárias para evitar futuras doenças. É óbvio que devemos fazer ambas, no mínimo porque a regra da beneficência requer que não abandonemos quem hoje precisa. Normalmente são boas práticas aquelas que enfrentam primeiro os perigos reais e actuais e só depois os futuros e prováveis; esta ideia é parte do que denominamos regra da beneficência.

Segundo, devemos salientar que Rifkin apresenta outra tese tendenciosa. Diz ele (ver acima): “O facto é que, quanto mais poderosa for a tecnologia quanto a produzir alterações e transformações no mundo natural — quer dizer, reconfigurando o ambiente para fins imediatos, eficientes e de curto prazo — mais provável será que rompa e destrua as redes de relações duradouras e que crie desequilíbrio em alguma parte do meio ambiente”. Rifkin chama “facto” a isto, só que não é mais do que um exemplo de especulação descuidada (e apenas parcialmente coerente); além disso, mesmo que fosse coerente e verdadeiro, seria necessário saber se o “desequilíbrio no meio ambiente”5 provoca um dano que não poderia ser compensado por algum bem produzido por essa tecnologia poderosa. Sem estas duas informações cruciais, não podemos fazer uma escolha racional, e tudo o que resta não é mais do que a continuação do preconceito (Harris e Holm, 2002).

Propriedade intelectual

Num artigo de jornal, Rifkin fez algumas afirmações radicais e radicalmente enganadoras sobre questões de propriedade intelectual no contexto da clonagem. Eis o que afirma:

O Gabinete Inglês de Patentes acabou de atribuir ao Instituto Roslin de Wilmut as patentes sobre o processo de clonagem e sobre todos os animais produzidos por este processo. As patentes foram licenciadas pela Geron, uma empresa americana de biotecnologia situada na Califórnia. Contudo, há mais. A patente também inclui como propriedade intelectual — isto é, como invenções patenteadas — todos os embriões humanos clonados até à fase de blástula, que agrupa aproximadamente 140 células. Pela primeira vez, um governo nacional declarou que se considera que um ser humano específico criado através do processo de clonagem é, na sua fase inicial de desenvolvimento, uma invenção aos olhos de um gabinete de patentes. As implicações são profundas e imprevisíveis.

Foi há menos de 135 anos que os E. U. A. aboliram a escravatura, tornando ilegal para qualquer ser humano ser proprietário de outro que se tenha tornado sua propriedade após o nascimento. Agora o governo inglês abriu a porta a uma nova era em que um ser humano desenvolvido pode ser propriedade de alguém, sob a forma de propriedade intelectual, num estádio de desenvolvimento entre a concepção e o nascimento.

Independentemente de saber como se situam as pessoas quando à questão do aborto, qualquer pessoa ficará chocada com a perspectiva de uma companhia poder ser proprietária de um embrião humano na qualidade de invenção, e como invenção.

Os pais, quando tomarem conhecimento desta extraordinária decisão, devem perguntar-se se os seus filhos e as gerações futuras serão eticamente bem servidos se crescerem num mundo em que podem pensar na vida humana embrionária como propriedade intelectual, controlada por empresas de investigação científica. O que será feito das noções mais fundamentais dos nossos filhos sobre as distinções entre a vida humana e os objectos inanimados, quando esta pode ser encarada pela lei como mera invenção, simples produtos que podem ser negociados como tantas outras coisas na arena comercial?

E se os embriões humanos clonados forem, de facto, considerados invenções humanas, o que sucederá à noção de Deus, o criador? O que dirão as gerações futuras quando os seus filhos lhes perguntarem de onde vêm os bebés? Será que dirão que são invenções de cientistas ou propriedade de empresas de investigação científica? (Rifkin, 2000).

Este artigo é fascinante por diversas razões. A primeira é que mesmo que uma patente do tipo que Rifkin descreve tivesse sido registada,6 não implicaria nem a escravatura nem a possibilidade de posse física de um indivíduo humano. Se uma tal patente tivesse sido registada, não deixaria de ser combatida em tribunal exactamente pelas razões que Rifkin apresenta; nomeadamente, a incompatibilidade com as mais básicas noções dos direitos humanos e com as mais básicas noções da moralidade pública, e assim por diante. Além disso, as decisões do Gabinete de Patentes do Reino Unido não emanam do governo nacional, tal como as regras dos correios americanos não emanam da Sala Oval. Mas a “posse” de propriedade intelectual quanto a algo, incluindo o embrião humano, não implica necessariamente outros casos de posse. Se uma empresa de biotecnologia tiver as patentes de todas as células do meu corpo e de todos os genes no meu genoma, isso não afectaria a minha humanidade, nem os direitos civis, políticos e morais que tenho consagrados. Eu não seria um escravo da empresa de biotecnologia, nem de forma alguma a minha personalidade seria “propriedade” da empresa. Isto é uma mistura de alarmismo com sérias incompreensões. Invocar o paralelismo com a escravatura, como o faz Rifkin, implica quer uma compreensão muitíssimo deficiente do que são as questões da propriedade intelectual, quer pânico em elevado grau.

Em qualquer caso, o pânico é prematuro. A Lei das Patentes de 1977 foi emendada com a introdução do Calendário A2. 7 O Calendário A2 foi introduzido como parte de um conjunto de emendas à Lei Britânica, que foi publicada em 28 de Julho de 2000, e que procurava efectivar a Directiva 98/44/EC da União Europeia sobre invenções biotecnológicas. O Calendário A2 diz, entre outras coisas, o seguinte:

  1. Uma invenção não será considerada não patenteável se for apenas por dizer respeito:
    1. A um produto que consista ou contenha material biológico; ou
    2. A um processo pelo qual o material biológico seja produzido, processado ou usado.
  2. Material biológico que tenha sido isolado do seu ambiente natural ou produzido por meio de um processo técnico que possa ser considerado uma invenção, mesmo que tenha ocorrência anterior na natureza.
  3. Os exemplos seguintes não são invenções patenteáveis:
    1. O corpo humano, nas diversas fases da sua formação e desenvolvimento, e a simples descoberta de um dos seus elementos, incluindo a sequência ou a sequência parcial de um gene;
    2. O processo de clonagem de seres humanos;
    3. Processos de modificação da linha germinal da identidade genética de um ser humano.

Quanto ao floreado retórico final de Rifkin (como citei antes):

E se os embriões humanos clonados forem, de facto, considerados invenções humanas, o que sucederá à noção de Deus, o criador? O que dirão as gerações futuras quando os seus filhos lhes perguntarem de onde vêm os bebés? Será que dirão que são invenções de cientistas ou propriedade de empresas de investigação científica?

Aqui, devo confessar que por mim sentiria que as futuras gerações teriam uma compreensão melhor da realidade se tivessem uma explicação biológica e social sobre a origem dos bebés, uma explicação sociojurídica sobre quem são os seus pais e uma avaliação ética sobre quem devem ser considerados os seus pais. Quanto à questão “o que será sucederá à noção de Deus, o criador?” espero que siga o caminho de todas as teorias que são completamente injustificadas, além de manifestamente implausíveis.

John Harris
Contemporary Debates in Applied Ethics, ed. Andrew I. Cohen e Christopher H. Wellman (Oxford: Blackwell, 2005), pp. 145–155.

Notas

  1. Há uma bibliografia vasta sobre os riscos de dano às crianças em virtude de diversos factores relativos às suas origens; a maior parte da qual é céptica quanto aos efeitos negativos da ambiguidade, confusão, uso de tecnologias reprodutivas, adopção, famílias de acolhimento, divórcio, etc. Veja-se a secção “Leituras Complementares”.
  2. A não ser por Pedro Lowenstein, que mo indicou.
  3. Estas possibilidades foram-me indicadas por Pedro Lowenstein, que trabalha actualmente nas implicações da terapia genética humana.
  4. Para saber mais sobre a questão da imortalidade, veja-se Harris (2000b, 2002c).
  5. Para que se saiba, este é o pedaço incoerente! O que conta como desequilíbrio, e quando e porquê poderá ser mau desequilibrar o meio, são boas causas.
  6. Fui incapaz de confirmar esta afirmação de Rifkin. Pode ser que a patente tenha sido inicial e erradamente atribuída pelo Gabinete de Patentes do Reino Unido, mas, como veremos na discussão que se segue, essa patente é agora ilegal e deverá ter sido revogada, se é que existiu.
  7. Patents Act 1977, Schedule A2, parágrafo 3 (a). Agradeço ao meu colega David Bootom por este valioso conselho sobre a lei da propriedade intelectual.

Referências

Leitura complementar

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ISSN 1749-8457